Wednesday, October 11, 2017

PARA QUE SERVEM OS MODELOS COGNITIVOS DA DISLEXIA?

A neuropsicologia cognitiva se caracteriza, entre outras coisas, pela utilização de modelos de processamento de informação no diagnóstico neuropsicológico. Além de serem localizados anatomicamente, inclusive no nível genético-molecular, os comprometimentos neuropsicológicos podem ser localizados virtualmente, através dos modelos.

Os modelos nos ajudam a identificar os processos psicológicos comprometidos e preservados, contribuindo então para o diagnóstico e planejamento das intervenções. A relação entre os modelos e o diagnóstico é, em grande parte tautológica. Os modelos  auxiliam no diagnóstico mas, ao mesmo tempo, os diagnósticos são úteis para validar e aperfeiçoar os modelos. É  um processo iterativo, de aproximações e modificações sucessivas. A natureza tautológica do processo requer alguma fonte externa de validação, geralmente algum critério biológico, tal como uma dissociação nos sistemas neurais comprometidos e preservados ou a identificação de algum endofenótipo correlacionado a especificidades genético-moleculares.

Um dos modelos neuropsicológicos mais bem sucedidos é o modelo de dupla-rota da leitura. O modelo de dupla-rota foi construído a partir do estudo das alexias adquiridas em adultos. Mas é perfeitamente aplicável ao estudo da dislexia do desenvolvimento. O modelo da dupla-rota postula a existência de mecanismos fonológicos e lexicais para a leitura. A aprendizagem começa utilizando-se de processos fonológicos e, gradualmente, à medida que o processo se automatiza, preponderam os processos lexicais.

O modelo foi validado por inúmeros estudos comportamentais e neurofuncionais, mas se presta também a análise da dislexia do desenvolvimento. Talvez seja Na’ama Friedman a pesquisadora que mais explorou as possibilidades do modelo de dupla-rota para a compreensão da dislexia do desenvolvimento. Trabalhando com falantes nativos de hebraico e árabe, Friedman mostrou que o modelo de dupla rota pode tanto ser usado para validar subtipos de dislexia como, e o que é  mais interessante ainda, prever a existência de novos subtipos que posteriormente foram descobertos. Se você quiser ler um pouco mais sobe isso, veja o meu post sobre os dezenove subtipos de dislexia.

É bom lembrar que esse valor heurístico, preditivo da neuropsicologia já havia sido explorado por Wernicke e Lichtheim nos tempos heróicos da disciplina. Com base no seu modelo anatômico da linguagem, Wernicke previu a existência de uma afasia de condução, a qual foi posteriormente descoberta por Lichtheim. Ou seja, a neuropsicologia não é apenas uma disciplina descritiva, mas contribui também com predições e explicações. Contemporameneamente são os modelos que nos ajudam a fazer essas predições e a buscar as explicações nos limites do que conseguimos.





Saturday, October 07, 2017

OS MEUS POSTS SOBRE DISLEXIA


Em março de 2018 próximo vou re-editar o curso de verão sobre dislexia, que ocorreu em 2015. Fiz 24 posts sobre o assunto.

O iceberg da dislexia


























COMO O CÉREBRO APRENDE A LER AS PALAVRAS?

Como o cérebro aprende a ler as palavras? Uma tentativa de responder a essa questão é a hipótese da reciclagem neuronal. As habilidades cognitivas podem ser classificadas em biologicamente primárias e secundárias. As habilidades primárias são ilustradas pela linguagem oral, cuja aquisição ocorre de forma intuitiva, baseada na experiência social, sem requerer uma pedagogia formal (Geary, 2008). Um dos principais exemplos de habilidades secundárias é a literácia. Nosso cérebro não foi pré-programado para aprender a ler. A aprendizagem da leitura requer uma pedagogia e, principalmente, muito esforço por parte da criança. A leitura é um artefato cultural inventando há apenas cinco mil anos. Nesse tempo não deu pra evoluir mecanismos inatos que permitissem a aprendizagem da leitura de forma intuitiva.

Segundo a hipótese da reciclagem neuronal (Dehaene, 2012, veja também Scliar-Cabral, 2012), a aprendizagem da leitura depende da capacidade de estabelecer e automatizar conexões sinápticas entre o giro fusiforme do hemisfério esquerdo e os circuitos que representam os sons, a forma lexical e o significado das palavras. O giro fusiforme esquerdo situa-se na superfície ífero-lateral, na transição entre os córtex occipital e temporal. Essa região corresponde à área 37 de Brodmann e, em função do seu papel no reconhecimento de visual de caracteres gráficas ela foi denominada por Dehaene de Letterbox ou Visual Word Form Area (VWFA).


Originalmente, a Letterbox parece ter evoluído para reconhecer os objetos visuais mais complexos de relevância social para os humanos: as faces. Com a invenção da lectoescrita, ou seja, representação visual dos fonemas, sílabas e morfemas através de caracteres visuais, surgiu a necessidade de estabelecer e automatizar conexões entre áreas visuais e áreas da linguagem.

O giro fusiforme esquerdo foi reciclado, especializando-se no processamento de caracteres gráficos. O processamento de faces ficou então a cargo do giro fusiforme direito. Por que o “escolhido” foi o giro fusiforme? Provavelmente porque era a área mais a mão, a área cujas características computacionais e potencial conectivo melhor se coadunava a essa necessicidade de conectar a percepção visual com a linguagem..

Não parece ter sido à toa, então, que o giro fusiforme foi incorporado ao circuito da linguagem. O mais provável é que restrições de ordem informacional e conexional tenham direcionado a construção da rede da leitura. A aprendizagem da leitura representa então um belo exemplo de interação entre a criação (modificação neuroplástica do cérebro pela experiência) e natureza (pré-programação genética para processar determinados tipos de informação).

Essa hipótese é reforçada pelo fato de que a rede cerebral da leitura é universal. Ou ao menos é muito parecida entre ocidentais e chineses. (Não sabemos ainda como é a rede neuronal da leitura dos marcianos.). A chave para compreender a neurobiologia da leitura parece ser então a compreensão dos mecanismos epigenéticos que regulam o estabelecimento deasas conexões. Por outro lado, a elucidação da neurologia da dislexia poderá se fundamentar no conhecimentos dos mecanismos que interferem com o estabelecimento de conexões entre a Letterbox, o circuito Wernicke-Broca do processamento fonológico e outras áreas dispersas pelo córtex temporal, responsáveis pelo processamento semântico-lexical.

Referências

Dehaene, S. (2012). Os neurônios da leitura. Como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso.

Geary, D. C. (2008). An evolutionary informed education science. Educational Psychologist, 43, 179-195.

Scliar-Cabral, L. (2010). Evidências a favor da reciclagem neuronal para a alfabetização. Letras de Hoje, 45, 43-47

Wednesday, October 04, 2017

JÁ TEMOS UM LIVRO SOBRE DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO



Vejam o prefácio que tive a honra de escrever para o belo livro da Profa. Flávia Heloísa dos Santos (2017) sobre discalculia do desenvolvimento.

O mercado editorial brasileiro anda aquecido na área de neuropsicologia. Além de manuais consagrados, estão começando a aparecer cada vez mais obras monográficas que permitem aprofundar o conhecimento em tópicos específicos.

 Érico Veríssimo é um dos meus personagens prediletos com discalculia 


Prefácio

O interesse neuropsicológico pelas dificuldades de aprendizagem da aritmética é relativamente recente, contando com pouco mais de meio século de existência. O interesse pelas dificuldades de aprendizagem da leitura é muito mais antigo, remontando à virada do Século XIX para o XX. Pode se ter uma idéia do estado atual do conhecimento quanto a esses dois tipos de problemas fazendo uma pesquisa na PubMed. No dia 20 de outubro de 2016 a PubMed registrava 125 ocorrências para “developmental dyscalculia” e 1131 ocorrências para “developmental dyslexia”.

A demora em despertar o interesse dos neuropsicólogos pelas dificuldades de aprendizagem da aritmética pode estar relacionada às representações sociais da matemática. A matemática é sabidamente um domínio do conhecimento muito difícil. Talvez o mais abstrato e difícil de todos. Assim sendo, é até certo ponto “natural” que as pessoas experimentem dificuldades com a aprendizagem da matemática e que essas dificuldades não despertem maiores preocupações em pais e professores.

Uma outra influência social que pode ter contribuído para despertar o interesse neuropsicológico pela aritmética é a informatização e tecnificação crescente da nossa vida. Podemos dizer que vivemos na era cognitiva, na qual a formação matemática é um ativo econômico importantíssimo. Isso se traduz em empregabilidade e renda maior proporcionalmente à formação matemática. O acrônimo STEM foi criado para designar o conjunto de disciplinas ligadas à matemática e tecnologia, as quais transformam radicalmente a nossa existência: Science, technology, engineering, and mathematics. Pais, professores e pesquisadores estão voltando então seu interesse para as dificuldades de aprendizagem da aritmética, em busca de diagnóstico e intervenções eficazes.

Uma parte do interesse pelas dificuldades de aprendizagem da aritmética pode ser atribuído também ao progresso inerente à psicologia e ciências cognitivas, incluindo neurociências. Uma nova área interdisciplinar de pesquisa surgiu, a cognição numérica. A cognição numérica está fornecendo os instrumentos conceituais e metodológicos que permitem investigar de forma científica as dificuldades de aprendizagem da aritmética, descrevendo suas manifestações estabelecendo critérios diagnósticos, identificando os mecanismos cognitivos, neurais e genéticos subjacentes e permitindo desenvolver intervenções empiricamente fundamentadas.

Entretanto, se a pesquisa cognitivo-neuropsicológica sobre as dificuldades de aprendizagem da aritmética começou com um certo atraso relativamente às dificuldades de aprendizagem de leitura, ela está correndo a passos largos para compensar o atraso. O descritor MESH “dyscalculia” foi introduzido na PubMed apenas em 2012, mas desde então o número de publicações é crescente.

A comunidade de pesquisadores sobre cognição numérica no Brasil ainda é pequena, mas se caracteriza pela excelência. Há grupos estabelecidos de pesquisa nas principais universidades do País e esses pesquisadores mantém intenso contato entre si e com pesquisadores internacionais. Apesar desses esforços e das perspectivas promissoras, ainda há uma carência enorme de pesquisa sobre cognição numérica no Brasil, tanto teórica quanto aplicada. É urgente, por exemplo, o desenvolvimento de mais instrumentos de diagnóstico e intervenção.

Nesse sentido, o livro da Profa. Flávia Heloísa dos Santos sobre “Discalculia do desenvolvimento” é uma contribuição valiosíssima, tanto para a pesquisa quanto para a prática profissional. É uma monografia atualizada, erudita e fundamentada nos avanços mais recentes da cognição numérica, refletindo a sólida formação da Profa. Flávia e o seu envolvimento de anos com a pesquisa sobre cognição numérica e dificuldades de aprendizagem da matemática. Merecem destaque também a qualidade didática e a sistematicidade da exposição.

É uma alegria muito grande e uma honra poder prefaciar o livro da Profa. Flávia sobre discalculia. Agora já dispomos de uma monografia em português que associaoa a escelência acadêmica com a aplicabilidade clinica e educacional e que poderá ser usada em disciplinas sobre o assunto, consultada por neuropsicólogos clínicos, educadores buscando comensar as dificuldades de seus alunos e servir também de introdução para os que têm interesse em pesquisar sobre o assunto.

A monografia da Profa. Flávia é tão mais oportuna quanto oferece uma visão geral e sistemática do acúmulo de informação bem como da qualidade e validade das evidências disponíveis para caracterizar as diversas formas de dificuldades de aprendizagem da matemática como uma entidade diagnosticável, para a qual são necessárias medidas específicas. Dessa forma, o livro da Profa. Flávia Heloísa dos Santos sobre discalculia do desenvolvimento pode ser considerado também uma contribuição ímpar para a educação no Brasil. É reconfortante também saber que, mesmo do outro lado do Atlântico, a Profa. Flávia continua com seu olhar e o seu carinho voltados para o Brasil e para as dificuldades de aprendizagem das nossas crianças.

Referência

Santos, F. H. (2017). Discalculia do desenvolvimento. São Paulo Pearson.