Friday, October 19, 2018

BEETHOVEN TINHA DISCALCULIA?

Um dos esportes prediletos dos médicos e neuropsicológos é furungar na vida das pessoas famosas e mineirar informação sobre suas doenças. 

Na maioria das vezezes isso não leva a nada. Mas é divertido. Pode ser útil também para jovens com dificuldades de aprendizagem e suas famílias saber, p. ex., que o Padre Vieira e o Churchill tinham dislexia e que o Érico Veríssimo tinha discalculia. Acho que ajuda entender que a vida da pessoa não se resume à difficuldade de aprendizagem. Que é possível ter muito sucesso na vida, apesar das dificuldades de aprendizaegm.

Hoje descobri que, muito provavelmente, o Beethoven tinha discalculia. Vejam o que fala um dos seus biógrafos:

“In school he learned to add but never to divide or multiply. To the end of his life, if he needed to multiply 62 by 50, he did it by writing 62 in a column 50 times and adding it up” (Swafford, 2014).

O Beethoven saiu da escola com 11 anos, sem aprender a dividir e multiplicar. Nunca aprendeu isso. Há especulações de que essas dificuldades com a matemática tenham contribuído para suas dificuldades financeiras.



Esse detalhe da vida do Beethoven tem uma outra implicação. O povo fala muito que música tem a ver com matemática. Isso é verdade em um certo sentido. A música tem a ver com a matemática se essa última disciplina for definida como ciência dos padrões. Ou seja, se compreendermos a matemática em um sentido amplo como uma disciplina interessada em descrever padrões abstratos, ordenados e lógicos.

Por outro lado, se considerarmos as dificuldades de Beethoven com a aritmética, constatamos que o gênio musical pode não ter nada a ver com a proficiência nessa parte da matemática.

Referência


Swafford, J. (2014). Beethoven: anguish and triumph. A biography. Boston: Houghton, Mifflin, Harcourt

Tuesday, October 16, 2018

EX-CLUSÃO EM CLASSE REGULAR: Exemplo de uma política sem fundamentação em evidências

Allison F. Gilmour, uma professora de educação especial na Temple University teve a coragem de questionar as atuais políticas de educação inclusiva, para jovens com deficiências, em escolas regular.
Allison Gilmour
Temple University

Gilmour publicou um artigo na revista EducationNext (Gilmour, 2018a), ligada à Brookings Institution, o qual foi seguido de uma réplica (Shifter and Hehir, 2018) e de uma tréplica (Gilmour, 2018b).

Basta conversar com qualquer pai ou mãe de alguma criança ou adolescente com deficiência intelectual e/ou autismo, "incluído" em classe regular, para saber que o negócio não funciona. Os problemas com a tal "inclusão" são vários. Vou mencionar apenas alguns, levantados na minha prática clinica.



Em primeiro lugar, as crianças não aprendem. As disparidades curriculares só aumentam com o tempo. As crianças com deficiência vão ficando para trás

Em segundo lugar, o convívio com crianças típicas propicia a realização de comparações sociais ascendentes, diminuindo a auto-eficácia e, conseqüentemente, a motivação das crianças com dificuldades.

Em terceiro lugar, o convívio com crianças típicas aumenta o risco de exposição a abuso (hoje em dia chamado de "bullying"). As pessoas com deficiências são vítimas preferenciais de tudo quanto é tipo de abuso moral (ostracismo, desmoralização), físico (agressão), financeiro (furto de merenda, de dinheiro) e sexual (assédio ou até mesmo coisa pior). É raro conversar com um mãe que não tenha um episódio para contar.

Em quarto lugar, as professoras regulares e os "tutores" não têm formação e motivação para trabalhar com as crianças especiais. Essa missão é percebida como uma sobrecarga e um estressor.

Em quinto lugar, a política de inclusão em escolas regulares é implementada sem levar em consideração as necessidades dos alunos, pais e professores. Não existe sistema sem efeitos colaterais. A escola especial é boa para certas coisas e ruim para outras. O mesmo acontece com a escola regular. Um tipo de escola pode ser melhor para uma criança, outro tipo para outra. Um tipo de escola pode ser melhor em uma fase do desenvolvimento da criança, o outro tipo pode ser melhor noutra fase etc.

Finalmente, a política de inclusão em escolas regulares é implantada de forma autoritária, rígida, burra, privando as famílias e professoras da possibilidade de tomar decisões que melhor se adequem ao seu perfil e necessidades.

Eu sempure desconfiei que essa política de "inclusão" em escolas regulares se fundamenta mais em motivações ideológicas e econômicas. A motivação ideológica é claramente a correção política. A motivação econômica também é clara. Escola especial custa caro e dá mais trabalho para administrar. Formação decente para as professoras nem pensar. Isso também é contra a ideologia paulofreiriana, além de exigir uma competência que não abunda por aí.

Pois bem, sob esse pano de fundo das coisas que eu vivi e que eu penso, vou fazer um resumo daquilo que aprendi lendo o artigo da Profa. Gilmour. Ela chamou atenção para vários aspectos. Um deles foi inusitado para mim.

Em primeiro lugar, a política de inclusão em escolas regulares não tem uma base empírica. Os estudos que mostram melhor resultado das crianças em escolas regulares não controlam para o viés de seleção. Ou seja, ignoram o fato de que as crianças mais comprometidas acabam tendo menos oportunidade de participar em classes regulares.

Em segundo lugar, as pesquisas comprovam que as crianças especiais não aprendem nas classes regulares. A disparidade em relacão aos pares típicos só aumenta com o tempo. Elas são "expostas" (seja lá o que isso signifique) ao currículo regular mas não o acompanham.

Em terceiro lugar, e aqui vem o inusitado, Gilmour ressalta que quase não existe pesquisa sobre os efeitos das crianças especiais sobre os colegas típicos e sobre as professoras. É interessante esse lapso, já que as correntes contextualistas ou ecológicas são muito influentes na educação. Mas a autora apresenta evidências importantes de que: a) a presença de crianças com dificuldades de aprendizagem e/ou de comportamento na classe compromete a aprendizagem e o comportamento dos colegas típicos; e b) as professoras  regulares não são preparadas e motivadas para trabalhar com esse tipo de aluno e, têm uma probabilidade maior de sair da sala de aula ou da carreira de magistério.

Eu nunca tinha visto alguém preocupado com o efeito das crianças especiais em salas regulares sobre os colegas e professoras. É um ovo de Colombo. Impressionante como ninguém tinha pensado nisso antes. Ainda mais considerando que na área de educação o determinismo sociológico é fortíssimo. Será que é prudente colocar crianças especiais nas classes regulares sem analisar os efeitos que isso pode ter sobre os colegas típicos e professoras? Pois foi exatamente isso que o povo fez. Sem nenhuma pesquisa. A pressuposição subjacente é sempre de que a "diversidade" favorece Deus e todo o mundo. Como? Existem evidências para isso?

A honestidade intelectual exige que mais pesquisas sejam realizadas sobre os efeitos das crianças especiais nos colegas e professoras regulares. Se isso não for feito, se não for demonstrado que os efeitos são mais positivos do que negativos, vamos continuar aderindo a uma prática que parece maravilhosa, que tem toda uma justificativa (ideológica), mas que, na realidade, pode estar mais prejudicando do que ajudando. Dá o que pensar.

Adorei o artigo. Corajosa a Profa. Gilmour. Principalmente por estar colocando perguntas incômodas para suas colegas. Vou atrás das pesquisas que ela menciona. Quem tiver interesse pode baixar vários artigos no seu ResearchGate (Gilmour, 2018c). 

Uma das coisas que a Gilmour pisa e repisa é que essa história de inclusão na classe regular confunde o local de ensino/aprendizagem com a filosofia. Obviamente, a filosofia educacional deve ser a mais inclusiva possível. A idéia é normalizar ao máximo. Mas isso pode ser feito de diversas maneiras, em locais distintos. E pessoas diferentes nem sempre têm as mesmas necessidades. Não existe um modelo tamanho-único de educação. Grande parte do que se chama de "educação inclusiva" atualmente não passa de uma farsa politicamente correta. Basta se dar ao trabalho de conversar com as famílias para ver isso. A Profa. Gilmour mostra que essa experiência anedótica é corroborada pelas pesquisas (ou pela falta delas). 

A atual prática é mais ex- do que in-clusiva. Será que isso vai mudar com o próximo ministro da educação?


Referências

Gilmour, A. F. (2018a). Has inclusion gone to far? Weighing its effects on students with disabilities, their peers and teachers. EducationNext.

Gilmour, A. F. (2018b). How can we improve special education without asking uncomfortable questions? A response to "The better question". EducationNext.

Gilmour, A. F. (2018c). ResearchGate.

Schifter, L. A. and Hehir, T. (2018). The better question: how can we improve the quality of inclusive education. A response to "Has inclusion gone to far"? EducationNext.