Em 2015
participei de um evento na Academia Brasileira de Ciências sobre ensino de
ciências. Uma das palestras mais interessantes a que assisti foi de um chinês.
Os chineses descobriram o construtivismo e resolveram estruturar todo o ensino
de física do ensino médio utilizando os princípios dessa abordagem. Eles estão
preparando centenas de atividades, cobrindo todo o currículo, de forma tal que
os alunos aprendam pela descoberta, ou seja, induzam os conceitos, princípios e
fatos da física por conta própria.
A seriedade
com que os chineses estão encarando a aprendizagem por descoberta me fez
lembrar da minha época do colegial. Na Década de 1970 eu gostava de ler uma HQ
bagaceira chamada Fritz the Cat. Um dos episódios era delirante. A CIA teria
descoberto um complô dos chineses para invadir os EUA. Eles estariam construindo
um foguete para milhares de chineses. Cada chinês sentaria em frente a um cano
e assopraria. A força dos assopros chineses propulsionaria então a nave até os
EUA e seria o fim do Capitalismo.
A palestra e
essas lembranças juvenis me chamaram atenção para um quê de paradoxal do qual
se reveste a seriedade e diligência com que os chineses estão encarando o
construtivismo, ou seja, o construtivismo “alla chinese”. O paradoxo é o
seguinte: Os pedagogos precisam ter uma trabalheira danada, investindo um
tempão e um dinheirão para construtir um currículo que permita aos jovens
aprender quase que brincando. Aprender sem dor. Será isso possível? Quem viver
verá. O projeto chinês vai permitir testar essa hipótese numa escala jamais
vista. Nas últimas décadas os chineses têm dado um banho nos ocidentais no que
se refere à aprendizagem da matemática e ciências. Se, após a introdução do
construtivismo, as notas dos chineses não baixarem ou continuarem subindo, será
uma vitória e tanto do construtivismo. Paradoxalmente será uma vitória também
do Ocidente, uma vez que o construtivismo é
uma criação ocidental.
O projeto é
paradoxal também porque implica em que os físicos tenham descoberto os fatos,
conceitos e princípios dessa disciplina, os quais serão, por sua vez debulhados
pelos pedagogos de modo que os alunos possam aprender “sem dor”. O projeto
chinês me parece uma contradição em termos. Se o construtivismo visa estimular
a criatividade dos alunos, encorajá-los a descobrir novas soluções e problemas,
que criatividade é essa, a qual consiste em levar o aluno a induzir justamente
aquilo que havia sido pré-programado pelos pedagogos? A coisa toda é muito
divertida.
Cada um se
diverte como pode. A diversão exerce um papel crucial na aprendizagem. A
brincadeira é a atividade por excelência das crianças, principalmente mas não
exclusivamente na idade pré-escolar. Quanto maior for a disponibilidade de
brinquedos na infância, melhor será o desempenho acadêmico futuro. A
brincadeira aguça a curiosidade, estimula a imaginação e desenvolve a imitação
e as habilidades sociais etc. A brincadeira é uma estratégia evolutivamente
estável em todos os mamíferos sociais, a qual cumpre a importante função de
preparar o indivíduo para a vida adulta.
Influenciada
por autores como Rousseau, Dewey,
Vygotsky e Piaget, a pedagogia sempre perseguiu o ideal da aprendizagem pela
brincadeira, descoberta e interação social. Os chineses nada mais estão fazendo
do que levar esse ideal às suas últimas conseqüências. À sua maneira, é claro.
Considerando sua diligência, escala demográfica e capacidade do estado de
mobilizar recursos para uma dada finalidade. Se a coisa funcionar, como disse
acima, vão dar um banho.
Mas, vai
funcionar? Funciona muito bem nas sociedades tecnologicamente menos
sofisticadas. Tudo que um indivíduo precisa aprender para viver em uma
sociedade iletrada, uma tribo indígena por exemplo, ele pode fazê-lo brincando.
Ou seja, em situações ecologicamente cotidianas de interação com pares e
adultos, a quais são plenamente revestidas de um significado pessoal e cultural
imediato e, portanto, intrinsecamente motivadoras.
Esse contexto
informal é suficiente para adquirir uma série de habilidades fundamentais, tais
como cozinhar, discriminar entre plantas comestíveis e não-comestíveis, fabricar
utensílios e adornos, construir arcos e flechas, caçar, guerrear etc. Isso não
quer dizer que a aquisição dessas e outras habilidades não exija esforço. Ao
contrário. Um exemplo muito ilustrativo é o dos arqueólogos cognitivos
contemporâneos que se dedicam a reproduzir o processo de fabricação dos
machados de pedra lascada dos nossos ancestrais. Os caras dedicam anos de
trabalho intenso para tentar se aproximar da perfeição com a qual nossos
ancestrais produziam seus artefatos.
Processo de fabriçação do machado de pedra ancestral
(cf. Mithen, 1996, "The prehistory of the mind", London: Thames & Hudson).
Será que os
nossos curumins ancestrais tinham problemas
motivacionais? Será que eles tinham “preguiça” de aprender a fabricar
seus artefatos? Difícil saber. Mas é plausível que alguns tivessem mais
habilidade com os machados de pedra e, portanto, se engajassem mais nessa
atividade. E outros tivessem menos habilidade e, portanto, fossem menos
diligentes na fabricação dos seus machados. Imagino que poderia haver uma
divisão rudimentar do trabalho. Alguém que tivesse boa mira poderia trocar o
produto da sua caça por um bom machado de pedra etc.
Imagino
também que não havia um currículo
obrigatório mínimo que coagisse todos os indivíduos a adquirir perícia com os
machados de pedra. Será que a educação pela pedra realmente ocorria de forma
mais natural, menos coerciva? Excetuando-se a coerção das agruras da própria
vida, é claro. Se não havia um currículo obrigatório mínimo provavelmente não
havia uma régua única que medisse todos os indivíduos. Cada um poderia
encontrar seu próprio caminho para florescer e se reproduzir. O currículo da
pedra compreendia apenas aquelas habilidades consideradas por David C. Geary
como biologicamente primárias. Ou seja, habilidades que fazem parte do
repertório cognitivo da espécie e que estão ao alcance de quase todos com algum
esforço mas de modo informal e ecologicamente contextualizado.
A situação
contemporânea é completamente diferente. Nós temos um currículo mínimo
universal e obrigatório. Medimos todos os indivíduos através da mesma régua, a
qual avalia habilidades biologicamente secundárias, tais como a leitura,
escrita, aritmética, geometria, álgebra etc. Independentemente da inteligência,
temperamento, habilidades ou interesses específicos. Escreveu, não leu, pau
comeu.
Aprender a
ler e escrever é diferente de aprender a catar feijão, apesar ou justamente por
causa da analogia proposta pelo poeta:
Catar feijão
João Cabral
de Melo Neto (1965)
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
Se o cara tiver
dificuldade ou preguiça de catar feijão, acabará quebrando um dente e vai
aprender, pelas conseqüências, a importância de catar e bem catado.Ou sua
patroa poderá catar por ele. Se o cara tiver dificuldade ou preguiça de
aprender a ler, vai se dar mal na prova e terá dificuldades para arrumar um
emprego ou se manter empregado.
As
habilidades biologicamente secundárias, tais como ler, escrever e fazer contas,
não fazem parte do aparelho psíquico ou repertório cognitivo natural humano.
São frutos da evolução cultural. Sua aprendizagem é possibilitada mas não
garantida pelas nossas habilidades cognitivas. Como esses artefatis culturais
não passaram pelo crivo da seleção natural e sexual, sua aprendizagem é sujeita
a enorme variabilidade interindividual. Simplesmente não eram critério para a
sobrevivência e reprodução dos nossos ancestrais.
A motivação
para a aquisição de habilidades biologicamente secundárias também não passou
pelo crivo da seleção. A motivação para estudar precisa ser aprendida, sendo
derivada de uma motivação mais básica de exercer controle sobre o ambiente, mas
de forma muito indireta, mediada por uma
série de passos cognitivos intermediários.
Para adquirir
gosto pelo estudo, a criança preciso obter resultado com o mesmo. Não se adquire
gosto por aquilo no que não se obtém sucesso. Aprender a ler e a escrever as
palavras e os números demandam de três a quatro anos de trabalho muito árduo
pela criança. A recompensa é projetada em um futuro muito abstrato: “Se você
aprender na escola, vai passar no ENEM, fazer uma boa faculdade e ter um bom
salário etc.” Além de inteligência e habilidade nos conteúdos específicos, a
aprendizagem escolar exige também capacidade de auto-regulação, ou seja,
capacidade de controlar o comportamento por recompensas de natureza abstrata e
projetadas no futuro.
Não surpreende,
portanto, que um sem-número de alunos considere a escola chata e não se motive
para o estudo. Seria surpreendente se fosse de outra maneira. O que fazer
então? Como tornar a escola menos chata? É possível isso? O projeto chinês de
construtivização do ensino da física está perseguindo justamente isso. Ou seja,
tornar o ensino mais lúdico, mais atraente. É um esforço louvável. Mas talvez
tenha seus limites. Será que é possível ensinar tudo que as crianças precisam
aprender para se adaptar à Sociedade do Conhecimento apenas na farra? Sem um
investimento de tempo e esforço? Sem se confrontar com a complexidade e
tediosidade dos muitos passos intermediários que levam à perícia e ao gosto por
um ofício?
O ideal da
aprendizagem pela brincadeira é meritório, mas me parece comportar uma série de
riscos. Se nem tudo puder ser aprendido apenas pela brincadeira, limitar à
aprendizagem à farra, pode limitar o currículo, reduzindo-o àquilo que as
crianças podem aprender sem esforço deliberado. Ou seja, àquilo que as crianças
aprenderiam por conta própria na sua ecologia cotidiana, sem auxílio de uma
pedagogia formal.
Atualmente, muitos
jovens inteligentes, brilhantes mesmo, desdenham a leitura em função de outras
mídias, tais como o YouTube. O YouTube é a principal fonte de informação para
muitos jovens. Quando o cara não sabe uma coisa, vai lá no YouTube e encontra
uma aula sobre o assunto. Quando o cara quer estudar cálculo, vai lá no YouTube
e tem um curso completo de cálculo. A leitura se ressente da competição com
mídias que são intrinsecamente muito mais atraentes.
O que fazer
então? YouTubizar todo o ensino? Desistir da leitura assim como estamos
desistindo da caligrafia? Talvez essa seja uma opção para capturar o interesse
da massa de descontentes. Mas isso certamente criará outros problemas. É
duvidoso que possamos abrir mão do grau de abstração e logicidade proporcionado
apenas pela linguagem escrita. A escrita organiza o nosso pensamento e nos leva
a um grau de abstração e precisão do qual não podemos prescindir.
Talvez
resolvêssemos e levássemos a sério a idéia de midiatirzar todo o ensino. Ao
invés de pagar lentes coloridas para as crianças com dificuldades para ler, o
estado dispensaria um tablet para cada criança com acesso irrestrito à internet
e todos os conteúdos curriculares seriam administrados de forma multimidiática.
Mas, será que conseguíriamos realmente ministrar dessa forma todos os conteúdos
e habilidades que constituem a nossa herança cultural e que permitem sua
evolução ulterior? Acho duvidoso. Sou chato. Mas acho que tem coisas às quais
temos acesso apenas através da escrita. Mesmo que a maioria dos alunos se
YouTubize, sempre vai continuar existindo uma galerinha que continuará
cultivando a leitura.
Talvez essa
minoria que continue cultivando a leitura se restrinja ao estimado 1% da
população que na Antigüidade Judaica sabia ler e escrever e compilou a Bíblia
por escrito por volta do ano 600 AC. Será que a maioria da população composta
por YouTubers vai precisar então de um equivalente aos levitas, que lhes
traduzam em linguagem midiática o conhecimento abstruso encerrado pela língua
escrita?
Tornar a
aprendizagem escolar mais lúdica e atraente para as crianças é, sem dúvida
alguma, muito importante. Mas pode ter seus limites. Levada ao seu extremo pode
representar uma nova forma de segregação social, entre os iniciados e os
não-iniciados na leitura. A midiatização do ensino não exterminará os nerds da
vida, aquele 1% da população que adora ler ou fazer listas de cálculo. Um dos
objetivos do ensino universal obrigatório é justamente diminuir as diferenças
cognitivas entre os diversos segmentos da população. Isso pode ser feito
nivelando por baixo ou pelo alto. Isso pode ser feito aumentando ou diminuindo
o contingente da população que tenha acesso a formas superiores de cultura e
tecnologia. O contingente de nerds na espécie humana pode aumentar ou diminuir,
mas não se extinguirá. A nerdice confere vantagens adaptativas em uma espécie
que ocupa o nicho ecológico cognitivo.
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