Há quem não
concorde. São poucos, mas existem. Na minha opinião o tchan da neuropsicologia
é a correlação anátomo-clinica ou estrutura-função (Haase et al., 2009, 2010).
Apesar do charme dos testes, a atividade do neuropsicológo não se restringe ao
uso do testes. Existe todo um arsenal de outros conhecimentos que são
indispensáveis para o exercício profissional na área. Os testes
neuropsicológicos constituem apenas atalhos, métodos padronizados de observação
do comportamento, que nos permitem fazer observações clinicas mais precisas e
válidas. Mas tem todo um lado neurológico da neuropsicologia (Cytowic, 1996). O
seu lado neurológico consiste da epidemiologia clinica das doenças do sistema
nervoso e dos princípios anátomo-funcionais que organizam o cérebro e permitem
o estabelecimento de correlações anátomo-clínicas. Não tem como fazer
neuropsicologia sem conhecer neurociência e neuropatologia (Pliszka, 2004).
O IX Curso de
Férias de Neuropsicologia promovido pelo Laboratório de Neuropsicologia do
Desenvolvimento da UFMG (http://www.cursoseeventos.ufmg.br/CAE/DetalharCae.aspx?CAE=5677)
terá como tema central o lado neurológico da neuroposicologia do
desenvolvimento. Serão abordados os aspectos neuropsicológicos das condições
neurológicas mais comuns na infância e adolescência, tais como epilepsia,
enxaqueca, transtornos de aprendizagem, deficiência intelectual e paralisia
cerebral. Estas entidades constituem o feijão-com-arroz da atividade
profissional de neurologistas e neuropsicológicos. O curso visa subsidiar
profissionais de outras áreas com os conhecimentos neurológicos indispensáveis
ao exercício da neuropsicologia coma população infanto-juvenil.
Neste pequeno
ensaio vou discutir a relevância do exame do sistema motor para o
neuropsicólogo. O método anátomo-clinico ocupa uma posição central no exame
neurológico. Desde o início do século XIX os neurologistas se baseiam no fato
de que existem relações sistemáticas entre determinadas alterações funcionais e
a localização cerebral das lesões ou disfunções (Haase et al., 2008, 2010). O
diagnóstico de localização ou topográfico fornece informações preciosas quanto
à etiologia ou pelo menos nosologia de uma determinada condição mórbida do
sistema nervoso.
E a
localização em termos de nível de comprometimento do sistema motor é um dos
caminhos mais eficazes para o diagnóstico neurológico. Como já foi dito, isto é
sabido há muito tempo. Uma síntese da doutrina neurológica clássica da
localização lesional e organização hierárquica do sistema motor foi a obra
monumental da vida do neurologista John Hughlings Jackson (Catani, 2011). Segundo Jackson, o sistema nervoso é
organizados em níveis hierárquicos integrados. Cada nível de organização do
sistema regula o nível imediatamente inferior, sendo por sua vez controlado
pelo nível imediatamente superior. As relações entre os níveis são de inibição
e excitação. Os sintomas neurológicos podem, portanto, assumir uma dupla
natureza. Podem ser irritativos, quando causados por excesso de atividade
neural tal como nas epilepsias, ou podem ser deficitários, quando seqüelares a
lesões, tais como uma paralisa ou anestesia.
Mas as lesões
não causam apenas sintomas deficitários. Os sintomas decorrentes de lesões
podem ser negativos (deficitários) ou positivos (de liberação). Os sintomas de
liberação decorrem da perda de controle em um determinado nível hierárquico em
decorrência da lesão do nível imediatamente superior. Exemplos de sintomas de
liberação são os automatismos, tais como a persistência de reflexos próprios do
recém nascido em crianças com lesão cerebral perinatal. O trabalho clinico e
teórico de Jackson legou aos neurologistas uma concepção do sistema nervoso
como uma entidade maravilhosamente integrada, que é ao mesmo tempo modular e
sistemicamente organizada. A herança prática de Jackson e de outros é o método
de localização lesional que permite aos neurologistas restringir o campo de
busca por uma etiologia a partir do diagnóstico topográfico.
O sistema
motor, um dos mais conhecidos e acessíveis clinicamente, desempenha um papel
primordial no diagnóstico neurológico e neuropsicológico. Segundo Martha
Denckla (1997), o exame do sistema motor constitui uma espécie de arqueologia
do sistema nervoso. Identificando o nível de comprometimento motor é possível
inferir a fase do desenvolvimento cerebral em que um processo patológico se
instalou. Os princípios de organização do sistema motor são válidos também para
o cérebro em desenvolvimento, como veremos a seguir.
A fotografia
que ilustra este ensaio mostra Ernst Moro (1874-1951), demonstrando a reação de
endireitamento e a marcha reflexa em um recém nascido (Weirich & Hofmann,
2005). Um dos precursores da neuropediatria, Moro foi um pediatra de língua
alemã, nascido em Graz e posteriormente professor em Heidelberg até que sua
carreira fosse abortada pelo Nazismo. Seu nome ficou associado ao famoso
reflexo de Moro ou de sobressalto. Mas a fotografia mostra como ele já conhecia
toda uma gama de reações motoras próprias do recém nascido e sabia valorizar
sua importância clinica.
A partir da
década de 1960 com a introdução do tratamento intensivo e o aumento da
sobrevida de bebês cada vez mais
prematuros, os neurologistas foram aprendendo a valorizar o
desenvolvimento do sistema motor como um indicativo da maturidade fetal.
Diversos pesquisadores, tais como Claudine Amiel-Tison (1968) descobriram que
existe uma espécide de blueprint genética que regula o desenvolvimento do
sistema motor. E que o ritmo de desenvolvimento é o mesmo independentemente do
momento em que o bebê nasce. Assim, uma brincadeira que se faz freqüentemte é
dizer que se o sorriso social no recém-nascido de termo ocorre após 21 dias de
vida extra-uterina, então o sorriso social de um prematuro de 27 semanas deve
ocorrer exatamente após 81 dias de vida. O exame neurológico, junto com outros
parâmetros clínicos bem como métodos eletroencefalográficos é usado, portanto,
para determinar a maturidade fetal.
Pesquisas mais
recentes mostram que esta blueprint genética não vale apenas para o
desenvolvimento motor, mas pode também ser observada em outras áreas tais como
a linguagem. A percepção categorial é o fenômeno através do qual os humanos
conseguem perceber quaisquer realizações fonéticas como pertencentes a uma
determinada categoria fonêmica, independentemente da sua variabilidade dentro
de um espectro de características psicoacústicas. Os recém-nascidos humanos
exibem percepção categorial para praticamente todos os possíveis contrastes
fonêmicos existentes nas mais diversas línguas. Esta habilidade é perdida até o
final do primeiro ano de vida. No último trimestre do primeiro ano o bebê retém
apenas a percepção categorial dos pares de fonemas que são contrastivos em sua
língua materna. Um pesquisa muito interessante foi conduzida com bebês
prematuros por Peña, Werker & Dehaene-Lambertz (2012). Estas autoras
demonstraram que a prematuridade não acelera o desenvolvimento da seletividade
na percepção categorial de fonemas. Ou seja, bebês prematuros não desenvolvem a
seletividade na idade cronológica de 12 meses, mas na idade correspondente,
corrigida para sua prematuridade.
Será que
ocorre alguma coisa semelhante em relação à prontidão escolar dos prematuros?
Será que é preciso dar um desconto para os prematuros e entender que eles podem
ainda não estar prontos para enfrentar determinados currículos que são
propostos na escola? Um caso clássico são as crianças que fazem aniversário no
meio do ano e que entram no primeiro ano mais cedo do que os seus pares. Morrow
e cols. (2012) demonstraram que estas crianças têm um risco relativo 1,3 vezes
maior de serem diagnosticadas e receberem tratamento medicamentoso para TDAH.
Este resultados pode ser interpretado como um sinal de alerta para pais e professores.
Muitas dificuldades iniciais de aprendizagem escolar podem resultar de um
descompasso entre as exigências curriculares e a maturidade da criança. Muitas
vezes precisamos assegurar as famílias e professoras de que crianças que não
dão conta de parar quietinhas na sala de aula ou de aprender a ler hoje, podem
vir a fazê-lo sem maiores dificuldades daqui a seis meses.
Crianças que
apresentam problemas de comportamento ou dificuldades de aprendizagem têm o
direito de realizarem uma avaliação neurológica. Este direito precisa ser
garantido pelo estado para os mais carentes e não pode lhes ser sonegado com
base em argumentos ideológicos relacionados a uma suposta “medicalização do
ensino”. Quase todas as crianças com transtornos do desenvolvimento, da
aprendizagem e de comportamento apresentam transtornos motores. As dificuldades
motoras são observadas na deficiência intelectual, autismo, TDAH, dislexia,
discalculia etc. O exame neurológico de grandes grupos de crianças demonstra
que as alterações motoras são preditivas de problemas de aprendizagem e
comportamentais (Baatstra et al., 2003).
E o
neurologista e o neuropsicólogo estão em condições de identificar estas dificuldades,
desde que as conheçam. As dificuldades práxicas são indicativas de
comprometimentos corticais, as alterações posturais e movimentos involuntários
anormais indicam disfunções dos gânglios da base a incoordenação motora sugere
déficits cerebelares (Tavano et al., 2010). As alterações motoras são tão
importantes que Martha Denckla (2003) propôs utilizá-las de forma sistemática
como critério clinico para o diagnóstico de TDAH. Na sua opinião, se a criança
ou jovem não apresenta alterações motoras, diminui muito a probabilidade de que
os seus sintomas sejam causados por um verdadeiro TDAH. E aumenta a
probabilidade de que os sintomas de impulsividade, hiperatividade e desatenção
sejam causados por outros fatores, tais como ansiedade ou inadequação das
exigências parentais e escolares. Nesta perspectiva, nas palavras de Denckla, o
exame do sistema motor constitui uma verdadeira arqueologia do desenvolvimento
cerebral. Os déficits motores funcionam como marcadores da intensidade e
extensão do agravo que causou os problemas da criança e, ao mesmo tempo,
permitem localizar as disfunções na hierarquia sistêmica do desenvolvimento
cerebral. As consequências clinicas e ducacionais disto estão longe de ser
triviais.
Se você ficou
interessado neste assunto, não perca o IX Curso de Férias de Neuropsicologia,
promovido pelo Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG e que
ocorrerá entre os dias 15 e 19 de julho de 2013 na FAFICH – UFMG (http://www.cursoseeventos.ufmg.br/CAE/DetalharCae.aspx?CAE=5677).
Referências
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