Quando
o paciente está em coma, hemiplégico e cachimbando, até o porteiro da Santa
Casa sabe que se trata de um AVC hemorrágico. Quando o paciente tem miose e
incoordenação motora de um lado e um sinal de Babinski do outro, é preciso um
neurologista para reconhecer uma síndrome de Wallenberg, ou infarto lateral do
bulbo.
As síndromes neuropsicológicas clássicas
são relevantes por si próprias. As “síndromes” consistem em padrões
co-ocorrentes de alterações do comportamento observados sistematicamente em
adultos com lesões cerebrais adquiridas em determinadas localizações.
Através da investigação clínica, os
neurologistas da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX
descobriram relações sistemáticas entre uma série de síndromes e uma meia dúzia
de sistemas neurais distintos.
Entre os principais feitos da
neuropsicologia clássica podem ser mencionados a identificação do papel
desempenhado pelas áreas perisilvianas esquerdas na linguagem, pelo lobo
parietal esquerdo na aritmética, pelas áreas occípito-temporais ventrais no
reconhecimento visual de objetos, pelas áreas occipito-parietais dorsais na
localização espacial de objetos e programação da ação, pelas áreas temporais
mediais na memória de longo prazo e emoções, pelas áreas frontais na
auto-regulação etc.
As descobertas neuropsicológicas
clássicas têm sido confirmadas, ampliadas e reinterpretadas pelos métodos
contemporâneos de investigação, principalmente de neuroimagem funcional. Elas
constituem o legado e o fundamento de um campo interdisciplinar que está
atingindo sua maturidade.
Poucos fenômenos escaparam à atenção dos
neuropsicólogos clássicos. Um dos mais notáveis é a memória semântica. Os
neurologistas clássicos investigavam primordialmente o comportamento de
pacientes com AVC. É raro encontrar lesões seletivas das áreas neocorticais
temporais inferiores em pacientes com AVC. Dessa forma, foi necessária aguardar
a caracterização das seqüelas de encefalite por Herpes e a descoberta da
demência semântica para começar a compreender a representação de conhecimentos factuais
e conceituais no cérebro.
Outro fenômeno com o qual os
neuropsicólogos clássicos nem sonhavam é o chamado modo default de
funcionamento do cérebro. Os estudos de neuroimagem funcional em repouso
demonstraram que quando a atenção não é requerida por estímulos externos, ela
se volta para o ambiente interno, para o self e para a sociabilidade. Enquanto
a atenção ao mundo externo ativa áreas laterais dos hemisférios cerebrais, a
atenção ao mundo interno ativa as áreas mediais.
A atenção ao mundo interno constitui o
modo default de funcionamento do cérebro. Ou seja, aquele modo ao qual o
cérebro recorre quando não existe uma tarefa mais premente a ser resolvida. A
atividade na rede default aumenta de coerência à medida que o indivíduo
amadurece, diminundo os padrões de atividade sincronizada com o envelhecimento
e com os diversos transtornos psiquiátricos. O modo default pode estar relacionado
à capacidade de insight, desempenhando um importante papel na cognição e saúde
mental.
O conhecimento em neuropsicologia não estagnou
na época clássica. Mas não deixa de ser surpreendente o modo como as novas
descobertas são consilientes com os fatos tradicionalmente estabelecidos.
Significa que estamos ampliando nossos horizontes em cima de uma base sólida,
em cima dos ombros de gigantes, para usar uma metáfora gasta porém útil.
A neuropsicologia e o método
anátomo-clinico muito contribuíram para o desenvolvimento da chamada “psiquiatria
biológica”. Os neurologistas do século XIX observaram, p. ex., que pacientes
com lesões prefrontais ventromediais apresentavam alterações do comportamento
social, principalmente sob a forma de impulsividade e dificuldade para prever
as conseqüências do comportamento.
Os psiquiatras também observaram
síndromes comportamentais fenomenologicamente semelhantes em diversos tipos de
doenças mentais, como p. ex., o transtorno bipolar. Surgiu então a hipótese de
que muitos sintomas psiquiátricos pudessem refletir disfunções mais sutis de redes
neurais que se encontram lesionadas em pacientes neurológicos. Essa hipótese
somente pode ser verificada a partir do momento em que os exames de neuroimagem
funcional se tornaram disponíveis. Mas sua origem pode ser encontrada na
neuropsicologia.
O argumento que eu defendo então é que o
conhecimento das síndromes clássicas é relevante não apenas para os
neuropsicólogos que trabalham com doentes neurológicos, mas também para aqueles
que trabalham com doentes psiquiátricos ou com crianças e jovens com
transtornos do desenvolviemtno. As síndromes clássicas têm esse papel
fundacional na nossa disciplina.
E o motivo é muito simples. Diagnosticar
significa reconhecer padrões. Esse conceito pode ser ilustrado através de um
tipo de figuras fragmentárias chamadas de figuras de Gollin (vide ilustrações).
A familiaridade com os estímulos torna o reconhecimento mais fácil e rápido.
Kurt Goldstein sentenciou que os
sintomas são respostas às nossas perguntas. Somente constitui um sintoma
neuropsicológico ou uma síndrome um padrão que é reconhecido como associado a
um determinado significado. A uma determinada localização lesional ou ao
comprometimento de um certo componente em um modelo de processamento de
informação.
Muitas vezes o reconhecimento de padrões precisa ser efetuado a partir de fragmentos. A partir de formas incompletas ou frustras de uma determinada síndrome. São esses os casos mais desafiadores, os que exigem maior experiência e habilidade por parte do clinico.
Muitas vezes o reconhecimento de padrões precisa ser efetuado a partir de fragmentos. A partir de formas incompletas ou frustras de uma determinada síndrome. São esses os casos mais desafiadores, os que exigem maior experiência e habilidade por parte do clinico.
Quando os déficits neuropsicológicos são
nítidos e típicos, os escores dos testes como que falam por si mesmos. A
realidade constitui-se, entretanto, de uma maçaroca de informações que é
preciso destrinchar. O desempenho em alguns testes pode ser normal ou
deficitário, mas isso pode constituir erro de medida. Por outro lado, em outras
tarefas cognitivas o desempenho pode se situar no limte inferior da
normalidade. É nesses casos que há necessidade de reconhecer um padrão que
permita selecionar fenômenos clinicamente relevantes de ruído causado por erro
de medida.
Isso é especialmente relevante no caso das doenças psiquiátricas e transtornos do desenvolvimento. Nessas duas situações é que o diagnóstico neuropsicológico se reveste da características primordial de completação de padrões a partir de fragmentos. Sem conhecimento prévio dos padrões sindrômicos não há como reconhecer seus fragmentos.
Isso é especialmente relevante no caso das doenças psiquiátricas e transtornos do desenvolvimento. Nessas duas situações é que o diagnóstico neuropsicológico se reveste da características primordial de completação de padrões a partir de fragmentos. Sem conhecimento prévio dos padrões sindrômicos não há como reconhecer seus fragmentos.
Poder-se-ia questionar a relevância do conhecimento
das síndromes clássicas, identificadas em adultos, para a caracterização dos
problemas neuropsicológicos do cérebro em desenvolvimento. Afinal o cérebro em
desenvolvimento é muito mais plástico e dinâmico do que o cérebro adulto.
Uma posição teórica denominada
construtivismo neural defende a hipótese de que o cérebro do bebê seria uma
espécie de tábula rasa na qual a cultura e a experiência inscrevem as
correlações estrutura-função observadas no adulto. As funções nãos eriam
localizáveis no cérebro do bebê, apenas no adulto e como conseqüência do
processo de desenvolvimento. Segundo essa posição os padrões sindrômicos
neuropsicológicos observados em adultos corresponderiam à lesão de atratores.
Ao comprometimento de padrões atividade para os quais o sistema convergiu
epigeneticamente em função da experiência e aprendizagem cultural.
Assim sendo, conforme o construtivismo neural
seria um nonsense total querer aplicar conhecimentos derivados da
neuropsicologia de adultos à caracterização das relações estrutura-função do
cérebro em desenvolvmento. Segundo essa perspectiva, a neuropsicologia
cognitiva seria muito estática para ser aplicada ao cérebro em desenvolvimento.
O exame neuropsicológico forneceria apenas quadros instantâneos de um processo dinâmico,
os quais poderiam levar a inferências falsas.
Até hoje os trabalhos de inspiração
neuroconstrutivista foram incapazes de mostrar situações nas quais a aplicação
dos princípios de correlação anátomo-clinica derivados da neuropsicologia de
adultos desviasse os pesquisadores da rota correta. Obviamente, o cérebro em
desenvolvimento é mais plástico e dinâmico. Portanto, os métodos clássicos da
neuropsicologia nem sempre acertam no alvo de forma precisa. Sempre existe uma
margem de erro e necessidade de correções. Mas as correlações anátomo-clincas
observadas no adulto permanecem como um arcabouço, como um referencial
extremamente útil.
Diversos resultados de pesquisa
contemporâneos salientam a relevância das síndromes neuropsicológicas clássicas
para a neuropsicologia do desenvolvimento.
Algumas vezes a neuroplasticidade falha
e podem ser observadas síndromes neuropsicológicas clássicas adquiridas muito
cedo na infância. E essas síndromes adquiridas precocemente se caracterizam por
padrões anátomo-clinicos muito semelhantes àqueles observados nos adultos. É o
caso, p. ex., de blindsight após lesões occipitais primárias, agnosia visual
para objetos após lesões occipiti-temorais ventrais, síndrome de Bálint,
simultanagnosia e ataxia óptica após lesões parietais superiores,
heminegligência visoespacial após lesões da encruzilhada
têmporo-parieto-occipitial direita, afasias sutis porém persistentes após lesões
perislivianas esquerdas e transtors graves e persistentes de conduta após
lesões prefrontais ventromediais.
A possibilidade de ocorrência dessas
síndromes em bebês e crianças pequenas sugere que existe uma blueprint genética
que especifica, dentro de determinados limites epigenéticos, as correlações anátomo-clinicas
possíveis de cada estrutura cerebral. Quando a neuroplasticidade funciona,
essas correlações são mascaradas. Quando ela falha essas correlações são
evidenciadas.
Adicionalmente, as pesquisas
genético-moleculares têm mostrado que os mecanismos de regulação da
plasticidade sináptica são susceptíveis a uma enorme variabilidade interindividual.
Os processos sinápticos envolvidos no desenvolvimento cerebral, aprendizagem e
recuperação lesional são regulados pelos mesmos mecanismos gênicos. E a falha
desses mecanismos gênicos está implicada na origem de diversos ranstornos do
desenvolvimento, tais como deficiência intelectual, síndromes genéticas e
transtornos de aprendizagem.
Uma outra linha de evidências relevantes
vem dos estudos com as correlações de atividade cerebral em repouso, uma
técnica de neuroimagem recentemente desenvolvida. O participante permanece na
máquina de ressonância magnética funcional por alguns minutos, em repouso. Ou
seja, ativando mais pronunciadamente apenas sua rede default.
A seguir os pesquisadores se utilizam de
algoritmos poderosos para identificar padrões de correlação cruzada em repouso
entre as diversas áreas cerebrais. Os estudos de análise da conectividade
funcional demostraram que aquela meia dúzia de redes neurais identificadas pelos
neuropsicólogos clássicos exibe padrões de correlação de atividade tão
poderosos, que os mesmos podem ser detectados em repouso.
Ao contrário do que supunham os
neuroconstrutivistas, o cérebro do bebê não é uma tábula rasa. A blueprint está
lá desde o inicio. A mesma meia dúzia de redes neurais que caracteriza o cérebro
adulto também pode ser identificada pela conectividade em repouso do cérebro
bebê. A diferença é que a atividade no bebê é mais localizada. O processo de
desenvolvimento não consiste então em uma localização progressiva das funções
cerebrais, mas sim em uma integração progressiva de um conjuntos de redes que
funcionam inicialmente de um modo mais independente.
O cérebro do bebê não é menos, mas mais
localizacionista doque o cérebro do adulto. O desenvolvimento e a aprendizagem
permitem integrar de forma progressiva e hierárquica esses diversos módulos. A
diferença entre o bebê e o adulto é que a diminuição da plasticidade sináptica
dificulta a reconfiguração do sistema em caso de lesão no cérebro maduro.
O localizacionismo é outro ponto
contencioso. Muitas vezes se ouve dizer que “o localizacionismo caiu”. Não caiu
nada. O que caiu foi o localizacionismo estrito. Mas nenhum pesquisador sério
desde Carl Wernicke defende posições localizacionistas estritas. Wernicke já
tinha uma concepção do cérebro como um rede integrada e plástica. “Localizacionismo
estrito” é um espantalho, um recurso retórico usado pelos inimigos da
neuropsicologia.
A concepção de localizacionismo que
prevalece na neuropsicologia é aquela de um localizacionismo distribuído. Luria
falava em sistemas funcionais. Um sistema funcional, como p. ex., a expressão
ou a compreensão verbal, tem uma determinada função adaptativa e recruta
determinadas redes neurais. Diferentes configurações de atividade dessas redes correspondem
a sistemas funcionais distintos. Muitas redes são compartilhadas por mais de um
sistema funcional. Mas as configurações espaço-temporais de atividade dos
diversos sistemas funcionais são singulares, únicas. Essa concepção tem sido
reforçada a partir dos estudos contemporâneos de neuroimagem que investigam a
conectividade estrutural e funcional do cérebro.
A caracterização neuropsicológica dos
transtornos de aprendizagem como dislexia e discalculia serviu-se das síndromes
observadas nos adultos como modelos. Correções, ampliações e reinterpretações
se fizeram necessárias. Mas não houve nenhuma mudança radical de rumo. Até
agora, tudo indica que a neuropsicologia sempre esteve no caminho certo.
Vejamos o caso da dislexia. A
recodificação fonológica é o mecanismo primordial de aprendizagem da leitura de
palavras isoladas. Mas os mecanismos lexicais de leitura passam a ter importância
crescente a partir do momento em que a correlação grafema-fonema é
automatizada. Assim, sendo o modelo de dupla rota, fonológica e lexical, do
adulto permenece sendo o modelo descritivo mais completo das dificuldades de
leitura associadas ao desenvolvimento. E mais ainda, o modelo de dupla rota
demonstra valor heurístico na medida em que previu a existência de uma série de
subtipos de dislexia que não eram clinicamente reconhecidas.
Finalmente, examinemos o que acontece
com a cognição numérica. Os fatores cognitivos subjacentes à aprendizagem da
aritmética em crianças são os mesmos relevantes para a acalculia dos adultos:
memória de trabalho, memória semântica, processamento fonológico, habilidades
visoespaciais e senso numérico. Da mesma forma que na acalculia do adulto, o
lobo parietal, principalmente esquerdo, também foi implicado na discalculia do
desenvolvimento.
Os padrões de ativação cerebral observados
em crianças ao aprenderem operações aritméticas simples são um pouco diferentes
daqueles observados nos adultos. As crianças, p. ex., ativam mais fortemente o córtex
pré-frontal do que o giro angular esquerdo. Mas a rede parieto-frontal ativada
em crianças é idêntica à rede parieto-frontal ativada em adultos.
Uma outra diferença entre adultos e
crianças na aprendizagem de operações aritméticas simples é que as crianças
ativam o hipocampo quando estão memorizando fatos aritméticos novos e os
adultos não. Fica claro então, que há diferenças entre crianças e adultos. Mas
o significado da ativação do hipocampo em crianças aprendendo fatos aritméticos
somente pode ser inferido se considerarmos o papel do hipocampo na aprendizagem
a longo prazo, o qual foi elucidado em adultos há mais de sessenta anos.
Acredito então que o estudo das
síndromes neuropsicológicas clássicas, as grandes síndromes, é relevante não
apenas para a neuropsicologia de adultos, mas também para a neuropsicologia
aplicada a transtornos do desenvolvimento cerebral. A Profa. Marilena Chauí uma
vez declarou que “Toda vez que o Lula fala, o mundo se ilumina”. Eu falo assim:
“O conhecimento das síndromes neuropsicológicas ilumina o cérebro”. O Lula não ilumina mais o mundo, mas continua enchendo a paciência. A neuropsicologia não é mais a única fonte de luz. mas continua sendo um facho poderoso.
Referência das figuras de Gollin
Goldenberg, G. (2007). Neuropsychologie.
Grundlagen, Klinik, Rehabilitation. München:
Urban & Fischer.
No comments:
Post a Comment