A
aritmética básica consiste nas habilidades de contar, fazer contas e memorizar
os fatos aritméticos. A maioria das crianças adquire essas habilidades de modo
intuitivo e às custas de muita prática.
CONTAR
Contar
é a primeira atividade explicitamente matemática demonstrada pelas crianças. A
contagem começa a partir dos dois ou três anos. Primeiro as crianças aprendem a
recitar a série dos numerais verbais, p. ex., um, dois, três... até dez ou mais.
Inicialmente isso é feito de forma não quantitativa. Ou seja, a criança não
associa os numerais verbais a quantidades. A série de numerais verbais funciona
como uma espécie de moldura seqüencial que vai gradualmente sendo associada às
respectivas magnitudes numéricas. A criança vai aprendendo a contar aos pouquinhos.
Apesar de poder recitar os números até dez, no início a criança pode fazer um
uso quantitativo do numeral um apenas. Depois do dois, do três, até o quatro. À
razão de um numeral por ano. A partir do cinco a criança começa a entender que
cada número a mais acrescenta uma unidade numérica (princípio sucessor) e que o
número final resultante da contagem corresponde à quantidade de itens no
conjunto (princípio cardinal). A
contagem é geralmente efetuada com a ajuda dos dedos. As crianças aprendem a
mostrar a idade com auxílio dos dedos e a série vai aumentando, à medida que os
anos passam, que a habilidade sensoriomotor se aperfeiçoa e que a criança
desenvolve o conceito de número. Os dedos constituem uma importante ferramenta
para contar. Os dedos ajudam a estabelecer uma ordem fixa, a criar
correspondências um para um entre os dedos e numerais e, à medida que se fixa o
padrão de contagem nos dedos prevalente em um cultura, a ordem canônica, os
dedos adquirem uma dimensão simbólica, passando a representar os números. As
crianças com dificuldades de aprendizagem da aritmética são mais lentas para
aprender a contar.
FAZER
CONTAS
A
partir do momento em que a criança intui o princípio de cardinalidade, ela está
em posição para usar esse conhecimento na realização de operações aritméticas, iniciando
pela adição. As operações começam a ser resolvidas no momento em que a criança
entende que, além de acrescentar, somar significa contar dois ou mais conjuntos
em sucessão. Uma série de estratégias é empregada de forma mais ou menos
sistemática porém temporãmente sobreposta na resolução dos problemas por meio
da contagem. No início a criança começa a contar a partir de qualquer número,
independentemente da sua magnitude. Depois a criança aprende que é mais
vantajoso contar a partir do maior. Algumas crianças passam por uma fase de
contar sistematicamente a partir do primeiro, independentemente de ser o maior
ou o menor. Inicialmente a resolução por contagem também se serve dos dedos. Na
maioria das crianças o uso dos dedos fornece um apoio concreto à realização das
operações, aliviando a carga de memória de trabalho. Numa segunda fase as
crianças não precisam mais usar os dedos e contam verbalmente para resolver os
problemas. Adquirida a adição simples, a conseqüência lógica é intuir a
multiplicação (adição repetida) e a subtração (inverso da adição). Com a
experiência a criança começa a memorizar as associações entre problemas e
soluções, adquirindo os fatos aritméticos para as operações simples de adição e
multiplicação. A expansão dos repertório de operações aritméticas conhecidas
permite utilizar a estratégia de decomposição para resolver problemas mais
complexos. A divisão é mais difícil e sua aprendizagem geralmente requer algum
tipo de intervenção pedagógica. As crianças com dificuldades de aprendizagem da
aritmética começam a usar a contagem para resolver problemas mais tarde e
persistem usando a contagem por mais tempo.
FATOS
ARITMÉTICOS
A
prática com a resolução de problemas aritméticos simples com um algarismo leva
à memorização das associações entre problemas e respostas como fatos
aritméticos. Apenas os fatos de adição e subtração são memorizados. Não existem
fatos de subtração e de divisão porque essas operações não são comutativas. Ou
seja, para realizar a subtração e divisão é sempre necessário determinar qual
número é o maior. Assim as associações problemas-respostas para subtração e
divisão não podem ser armazenadas em formato puramente verbal.
Os
fatos aritméticos passam então a constituir um domínio especializado da memória
semântica verbal. Quando automatizados, podem ser resgatados rapidamente e
auxiliar na resolução de problemas progressivamente mais complexos.
Os
fatos aritméticos ou tabuadas constituem uma das maiores realizações
civilizatórias. A aprendizagem dos fatos exige algum tipo de intervenção
pedagógica porque requer muita prática e motivação. A aquisição dos fatos é um
processo difícil, laborioso e lento. Para ter uma idéia da dificuldade
envolvida na tarefa, tente memorizar a lista abaixo:
João
é carteiro e mora na rua das Hortênsias
Pedro
é padeiro e mora na rua das Camélias
Pedro
é professor e mora na rua das Hortênsias
José
é pedreiro e mora na rua das Rosas
Roberto
é padeiro e mora na rua das Margaridas
Paulo
é carteiro e mora na rua das Camélias
Joaquim
é padeiro e mora na rua das Rosas
Mário
é padeiro e mora na rua das Rosas
Tiago
é professor e mora na rua das Margaridas
Samuel
é professor e mora na rua das Rosas
Manuel
é pedreiro e mora na rua das Rosas
Pedro
é pedreiro e mora na rua das Hortênsias
É
extremamente difícil memorizar essa lista. A tarefa demandaria horas e dias de
trabalho exaustivo. A dificuldade deriva do fato de que os itens ocorrem de
forma recorrente e não se associam a um significado inerente. A memorização dos
fatos é uma situação parecida. As associações problemas-respostas não são
arbitrárias apenas porque resultam dos procedimentos de contagem. O significado
então é inferido a partir dos conceitos e procedimentos envolvidos em cada
operação. E o processo pecisa ser repetido inúmeras vezes até que as associações
se consolidem na memória de longo prazo.
A
alternativa ao exercício é a decoreba verbal. A qual é mais difícil ainda.
Estudos de neuroimagem mostram que a aprendizagem estratégica, resolvendo os
problemas, é mais eficiente do que a decoreba. Entretanto, os padrões de
ativação cerebral entre as duas são complementares. A decoreba ativa um padrão
mais localizado de áreas corticais em torno da região perisilviana esquerda da
linguagem. A aprendizagem estratégica ativa uma rede mais complexa de áreas
corticais, incluindo áreas parietas envolvidas na imaginação e representação
visoespacial. A utilização dos dois métodos de forma complementar pode ser
vantajosa.
A
dificuldade na aquisição dos fatos aritméticos é causada pelas demandas
impostas ao processamento na memória de trabalho. Como os itens dos problemas e
de muitas soluções são recorrentes, além de manter as associações
problemas-respostas na memória é preciso inibir as respostas concorrentes
errôneas. A aprendizagem ineficiente ou errônea dos fatos é um dos principais
empecilhos à aprendizagem da aritmética e constitui o sintoma cardeal da
discalculia do desenvolvimento.
As
pesquisas neurocognitivas estão permitindo desenvolver um modelo da
aprendizagem dos fatos aritméticos pela criança. Inicialmente a aprendizagem
demanda processamento controlado. O processo é lanto, laborioso, exige atenção
consciente, é muito propenso a erro e demanda esforço mental. O processamento
controlado inicial ativa áreas do córtex pré-frontal esquerdo, principalmente
na superfície dorsolateral.
Nessa
fase inicial ocorre ainda ativação de áreas do sulco parietal esquerdo
responsáveis pela avaliação da magnitude numérica e manipulação dos símbolos
numéricos.
A
consolidação das associações entre problemas e respostas depende de sua
elaboração no hipocampo. A ativação hipocampal durante a aquisição dos fatos
aritméticos tem sido obsevada apenas em crianças e não em adultos.
Finalmente,
com a experiência o processo vai se automatizando, tornando-se mais rápido,
eficiente, menos laborioso e menos sujeito a erro. Com a automatização o foco
de ativação cerebral move-se para áreas corticais posteriores, concentrando-se
na região do giro angular.
BOOTSTRAPPING
CONCEITUAL
Como
as crianças aprendem a aritmética? Ninguém sabe. Os conhecimentos disponíveis
são apenas descritivos e não explicativos. É possível afirmar que a
aprendizagem da aritmética envolve intuição e prática. O papel desempenhado
pela prática é fácil de compreender. A prática automatiza um procedimentos, transformando-o em segunda
natureza.
O
papel da intuição é mais difícil de compreender. Um modelo especulativo para o
desenvolvimento do coneito de número e muitas outras categorias é o bootstrapping
conceitual. Literalmente, bootstrapping significa erguer-se levantando-se pelos
cadarços das próprias botas. O termo é usado em ciência cognitiva para
descrever processos auto-organizatórios, nos quais um sistema vai se
construindo à medida que funciona. O desenvolvimetno cognitivo pode ser
comparado a um avião que vai sendo construído em pleno vôo.
De
acordo com a hipótese de bootsrapping conceitual, a aprendizagem da aritmética
resulta da interação entre primitivos conceituais e procedimentais. As
operações realizadas com os conceitos levam à emergência de novos conceitos e
novas operações e assim sucessivamente. De uma certa forma, a hipótese de
bootstrapping representa uma solução de compromisso entre a perspectiva
inatista e construtivista.
Os
primitivos conceituais são a habilidade de quantificar de forma precisa pequenos
conjuntos (subitizing) e a habilidade de estimar de forma aproximada grandezas
maiores (sistema numérico aproximado). O primitivo operacional é a habilidade
de adquirir a recitação da série dos numerais
verbais.
Com
a prática, a criança vai aprendendo a associar a série dos numerais verbais com
o seu significado quantitativo. Isso ocorre de forma lenta, à razão de um algarismo
por ano, e envolve apenas as grandezas pequenas. Até chegar ao número cinco,
quando ocorre uma explosão conceitual e a criança capta os princípios da
sucessão e cardinalidade, generalizando-os e associando o processo com todas as
grandezas numéricas possíveis. Assim, o significado numérico representado no
sistema numérico aproximado vai sendo conectado aos numerais simbólicos e
tornadno o conceito de número progressivamente mais exato e abstrato.
Um
processo semalhante ocorre com as operações e os fatos aritméticos. A criança
pratica com primitivos conceituais inatos. Pratica e pratica até que ocorre uma
mudança qualitativa e ela intui um princípio novo, um conceito derivado, o qual
é generalizado para outras situações. Outras situações essas que são praticadas
e praticadas até que...
Segundo
a perspectiva do bootstrapping conceitual não existe oposição entre
conhecimento conceitual e conhecimento procedimental. Um leva ao outro. A
interação de primitivos conceituais e operacionais leva à emergência de uma série
sucessiva e integrativa de conceitos e procedimentos derivados cada vez mais
complexos.
Segundo
essa perspectiva não existe, então, incompatibilidade entre a compreensão
conceitual aritmética e a aprendizagem dos algoritmos e fatos. Uma leva a
outra. Uma depende da outra. Executar os algoritmos ou memorizar os fatos sem
compreendê-los é de pouca utilidade. Mas apenas compreender também não tem
utilidade prática alguma.
REFERÊNCIAS
CONSULTADAS
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Oxford University Press.
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