As doenças raras são definidas na Europa como aquelas que
têm uma freqüência populacional menor do que 1/2000 (1/2500 nos EUA). Essas
doenças são raras quando consideradas isoladamente. Em conjunto, entretanto, elas
comprometem cerca de 5% da população. Então, acabam não sendo raras e
constituem um problema significativo de saúde com relevância epidemiológica.
A importância demográfica das doenças raras cresce à medida
que diminui a importância das doenças infecciosas e parasitárias mais
tradicionais. Nos últimos séculos ocorreu uma transição epidemiológica. Com exceção
das viroses emergentes, as doenças infecto-parasitárias não se revestem da
importância que tinham antigamente. Em compensação, cresceu a importância das doenças
crônicas. A maioria dessas doenças crônicas tem um componente genético na sua
etiologia, inclui doenças raras entre suas causas e. como é incurável e
multisintomática, exige tratamentos complexos, multidisciplinares e caros.
Um exemplo muito ilustrativo é o da prevalência da esclerose
múltipla em alguns países em desenvolvimento como a Martinica. Há apenas algumas
décadas, a esclerose múltipla era quase desconhecida na Martinica. A maioria da
população era infestada, entretanto, por parasitas. À medida que as condições
de higiene da população foram melhorando e a prevalência de doenças
parasitárias diminuindo, foi aumentando a incidência e a prevalência de esclerose
múltipla. Será que a melhoria das condições de higiene favorece o surgimento de
doenças auto-imunes quando o sistema imune fica “desocupado” e não precisa mais
lidar com parasitas?
A maioria das doenças raras é de causa genética, como p.
ex., síndromes genéticas. Existem mais de oito mil doenças genéticas
catalogadas. E uma maioria preponderante delas afeta o sistema nervoso. Isso
causa deficiência intelectual, dificuldades de aprendizagem e problemas
psiquiátricos, agravando a sua morbidade e impondo necessidades adicionais de
cuidado de saúde e educação.
A pesquisa sobre doenças raras é muito importante também. O
objetivo principal é, obviamente, desenvolver métodos diagnósticos e
terapêuticos eficazes. Mas as doenças raras podem ser usadas como modelos para
a compreensão dos mecanismos das doenças comuns. P. ex., muitas síndromes genéticas,
tais como a síndrome de Turner, síndrome velocardiofacial e síndrome de
Williams se caracterizam por dificuldades relativamente específicas na
aprendizagem da matemática. Outras síndromes, tais como as síndromes de Klinefelter e de Noonan se
associam com dificuldades na linguagem e aprendizagem da leitura. O estudo
dessas síndromes pode ser relevante então para a compreensão dos mecanismos
neurocognitivos implicados na discalculia e dislexia do desenvolvimento.
DIAGNÓSTICO
O diagnóstico das doenças raras é difícil. A experiência
relatada dos pacientes, em um grande número de casos, é de ficar sofrendo anos
a fio e correndo atrás de um diagnóstico sem resultados. As razões para isso
são múltiplas. Os profissionais de saúde, incluindo os médicos, não conhecem
muito bem as doenças raras. As manifestações clinicas são multiformes, havendo fenótipos
atenuados ou formas frustras que dificultam o seu reconhecimento. Como as
doenças são raras, a maioria dos profissionais não tem experiência suficiente,
de modo a levantar uma suspeita e encaminhar para um centro especializado.
Um problema adicional é o custo dos exames diagnósticos. O
diagnóstico depende em um grande número de casos de exames genéticos, os quais
costumavam ser caríssimos. Felizmente, essa situação está mudando. Os avanços
na genética estão perimitidno o desenvolvimetno de técnicas de diagnóstico
genético-molecular que possiblitam a identificação da etiologia de um número
crescente de doenças a um custo progressivamente menor.
Muitos profissionais e até mesmo familiares não reconhecem a
importância do diagnóstico. O raciocínio subjacente expressa um ceticismo
quanto ao diagnóstico em função do fato de que, com algumas raras exceções, não
há tratamentos específicos disponíveis.
Novamente, esse ceticismo é injustificado. É crescente o
número de doenças genéticas raras que são tratáveis com razoável sucesso, tais
como fenilcetonúria, síndrome de Turner, distrofia muscular progressiva tipo
Duchenne, síndrome de Prader-Willi, mucopolissacaridoses etc. Os tratamentos
podem, muitas vezes, não ser curativos. Mas fazem uma diferença para os
pacientes e famílis. P. ex., antigamente os pacientes com Duchenne raramente
sobreviviam até a terceira década de vida. Graças à introdução do uso de
ventiladores durante a noite, é crescente o número de indivíduos com Duchenne
que está chegado à quarta década de vida e com produtividade e qualidade de
vida.
Mas o diagnóstico não é importante apenas para o tratamento.
O diagnóstico é fundamental para o reconhecimento precoce e prevenção de
complicações. Conhecido o perfil de complicações da doença, screenings
periódicos ajudam no diagnóstico e tratamento precoce das complicações com
melhores resultados.
A partir do diagnóstico surgem demandas por atendimento com a
formação de grupos de pacientes e familiares com vistas à troca de experiências
e auto-ajuda. Não menos importante é o fato de que para desenvolver e testar
terapias os pesquisadores necessitam ter acesso a grupos grandes de pacientes.
O que é notoriamente difícil no caso dessas doenças, justamente em função da
sua raridade.
O diagnóstico é relevante também do ponto de vista
psicológico. As pesquisas mostram que o diagnóstico pode ter impacto distinto
sobre o funcionamento familiar, dependendo do momento em que é feito. O
diagnóstico precoce, realizado p. ex. logo após o tratamento, quando a família
não está esperando por um evento dessa natureza, pode ter efeitos devastadores.
É muito importante, então, que os profissionais sejam cuidadosos na transmissão
do diagnóstico, associando-o a aconselhamento e suporte psicológico.
Por outro lado, quando o diagnóstico é feito mais tarde,
muitas vezes após anos de luta da família, correndo atrás de uma explicação
para os dificuldades da criança, o diagnóstico pode ser recebido com alívio.
Como se representasse uma espécie de certificado de que a mãe não é louca e
que, sim, a criança tem uma dificuldade, a qual é conhecida e reconhecida.
O conhecimento do perfil de complicações associado a cada
doença rara específica ajuda a família a desenvolver expectativas e antecipar
problemas que podem ocorrer, inclusive do ponto de vista psicológico. Algumas
doenças predispõem os indivíduos afetados a problemas psiquiátricos. As
pesquisas mostram, entretanto, que os problemas podem, muitas vezes, ser prevenidos
através de suporte psicológico, familiar e social adequado.
No planejamento educacional o diagnóstico desempenha também
um papel fundamental. Muitas síndromes genéticas, p. ex., se se associam a
perfis comportamentais e cognitivos específicos, os chamados fenótipos
cognitivo-comportamentais. O conhecimento dessas manifestações fenotípicas
ajuda as famílias e professoras a melhor compreender o funcionamento das
crianças, ajustando os métodos disciplinares e pedagógicos conforme a
necessidade. A desconsideração pelas características comportamentais típicas de
muitas doenças pode levar à adoção de estratégias disciplinares coercivas,
baseadas na punição, as quais podem agravar ao invés de aliviar as
manifestações sintomáticas.
Assim, vemos que são vários os motivos pelos quais devemos
nos importar com as doenças raras, seu diagnóstico e seu tratamento. A próxima
questão é como estabelecer uma agenda para a assistência às doenças raras.
Essa, obviamente, é uma questão complexa e eu não tenho a pretensão de oferecer
soluções definitivas. Mas algumas necessidades e possibilidades podem ser
apontadas. Elas passam quase que invariavelmente pela necessidade de mais
pesquisa e de associação dos pacientes e familiares em grupos de interesse.
AGENDA POSITIVA
A primeira necessidade diz respeito ao diagnóstico. Os
exames genético-moleculares não são mais tão caros quanto eram antes.
Entretanto, não são cobertos pelo SUS. O SUS também não oferece serviços de
médicos geneticistas especializados nessas doenças, que pudessem diagnósticar,
aconselhar e tratar os pacientes e sua famílias. Uma maneira de melhorar essa
situação passa pela auto-organização dos pacientes e familiares em grupos de
lobby, com o intuito de pressionar as
autoridades, exigindo que seus
direitos constitucionais sejam assegurados.
A necessidade seguinte mais óbvia é de pesquisas para o
desenvolvimento de terapias eficazes. O desenvolvimento e pesquisa da eficácia
de novas terapias específicas requer grandes grupos de pacientes para conduzir
ensaios clínicos. Esse é um dos maiores problemas no caso das doenças raras.
Essa dificuldade pode ser enfrentada também através da organização dos
pacientes e familiares em grupos de advocacia e desenvolvimento de parecerias
entre esses grupos e centros idôneos de pesquisa.
Finalmente, os pacientes com doenças raras e suas famílias
necessitam atendimento especializado psicossocial em áreas tais como enferemagem,
assistência social, psicologia, fisioterapia, terapia ocupacional,
fonoaudiologia, nutrição, educação etc. Esses tratamentos são caros e
complexos, havendo necessidade de priorização, uma vez que é impossível
realizar muitos tratamentos simultaneamente. Outra vez: O SUS não oferece esste
tipo de serviço.
Uma dificuldade no que se refere ao planejamento de
tratamentos psicossociais se prende ao fato de que cada uma das doenças pode apresentar
necessidades bem específicas, não compartilhadas com outras condições de saúde.
Ao mesmo tempo, várias condições raras podem compartilhar necessidades de assistência. Então ´há necessidade de pesquisas
visando identificar necessidades específicas e necessidades compartilhadas. Só
assim seria possível formular políticas fundamentadas de assistência.
Esse texto aqui corre o risco de virar um samba de uma nota
só. Porém, mais uma vez somos obrigados a reconhecer o papel que as associações
em defesa de interesses mútuos podem desempenhar. Os grupos auto-organizados de
pacientes e familiares podem se beneficiar, em primeiro lugar, fazendo lobby.
Mas os grupos auto-organizados desempenham um papel
extremamente importante na pesquisa. Nós vivemos numa era de assistência a
saúde baseada em evidências. Queremos que nosso atendimento de saúde seja
fundamentado nas melhores evidências empíricas disponíveis. Para isso são
necessárias pesquisas. Pesquisas essas que necessitam de grupos de pacientes,
os quais podem ser formados a partir da cooperação entre essas associações e os
pesquisadores. Chegamos então, novamente, ao associativismo.
Finalmente, o associativismo desempenha um papel fundamental
do ponto de vista psicológico. A convivência e o reconhecimento mútuo exerce
efeitos extremamente benéficos sobre as famílias e sobre os pacientes. Não
apenas pela troca de experiências e informações, mas, principalmente, pelo
reconhecimento mútuo.
Uma das maiores alegrias que já tive na vida foi testemunhar
o contentamento com o qual crianças e jovens com síndrome de Williams se
reconhecem uns aos outros. Identificam características semelhantes, desenvolvem
um sentimento de pertinência a um grupo, uma identidade, o orgulho de ser
Williams.
RESUMJO E CONCLUSÕES
Em resumo, importarmo-nos com as doenças raras não é apenas
uma questão humanitária ou curiosidade científica, mas uma questão pratica e cientificamente relevante. Essas
doenças podem ser raras isoladamente, mas constituem um importante problema de
saúde pública.
As principais áreas problema parecem ser relacionadas com o
diagnóstico, tratamento específico e tratamento psicossocial multiprofissional
e educação.
As associações de pacientes e familiares representam um
papel fundamental no exercício de lobby, na promoção das pesquisas necessárias
para melhorar o atendimento, e não menos importante, através do benefício
prático e subjetivo conferido pela convivência e reconhecimento mútuo.
O capital social, humano e cognitivo de uma sociedade
pode ser medido pelo seu grau de associativismo. Um dos maiores desafios para
melhorar a qualidade de vida de pessoas com doenças raras e suas famílias é a
auto-organização de pacientes e familiares e o trabalho cooperativo com
profissionais e pesquisadores.
DISCLAIMER
Sou altamente suspeito. Há várias décadas sou apaixonado por uma geneticista e pela neuropsicologia das síndromes genéticas.
DISCLAIMER
Sou altamente suspeito. Há várias décadas sou apaixonado por uma geneticista e pela neuropsicologia das síndromes genéticas.
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