Sunday, March 05, 2017

POR QUE SE IMPORTAR COM AS DOENÇAS RARAS?

As doenças raras são definidas na Europa como aquelas que têm uma freqüência populacional menor do que 1/2000 (1/2500 nos EUA). Essas doenças são raras quando consideradas isoladamente. Em conjunto, entretanto, elas comprometem cerca de 5% da população. Então, acabam não sendo raras e constituem um problema significativo de saúde com relevância epidemiológica.

A importância demográfica das doenças raras cresce à medida que diminui a importância das doenças infecciosas e parasitárias mais tradicionais. Nos últimos séculos ocorreu uma transição epidemiológica. Com exceção das viroses emergentes, as doenças infecto-parasitárias não se revestem da importância que tinham antigamente. Em compensação, cresceu a importância das doenças crônicas. A maioria dessas doenças crônicas tem um componente genético na sua etiologia, inclui doenças raras entre suas causas e. como é incurável e multisintomática, exige tratamentos complexos, multidisciplinares e caros.

Um exemplo muito ilustrativo é o da prevalência da esclerose múltipla em alguns países em desenvolvimento como a Martinica. Há apenas algumas décadas, a esclerose múltipla era quase desconhecida na Martinica. A maioria da população era infestada, entretanto, por parasitas. À medida que as condições de higiene da população foram melhorando e a prevalência de doenças parasitárias diminuindo, foi aumentando a incidência e a prevalência de esclerose múltipla. Será que a melhoria das condições de higiene favorece o surgimento de doenças auto-imunes quando o sistema imune fica “desocupado” e não precisa mais lidar com parasitas?

A maioria das doenças raras é de causa genética, como p. ex., síndromes genéticas. Existem mais de oito mil doenças genéticas catalogadas. E uma maioria preponderante delas afeta o sistema nervoso. Isso causa deficiência intelectual, dificuldades de aprendizagem e problemas psiquiátricos, agravando a sua morbidade e impondo necessidades adicionais de cuidado de saúde e educação.



A pesquisa sobre doenças raras é muito importante também. O objetivo principal é, obviamente, desenvolver métodos diagnósticos e terapêuticos eficazes. Mas as doenças raras podem ser usadas como modelos para a compreensão dos mecanismos das doenças comuns. P. ex., muitas síndromes genéticas, tais como a síndrome de Turner, síndrome velocardiofacial e síndrome de Williams se caracterizam por dificuldades relativamente específicas na aprendizagem da matemática. Outras síndromes, tais como as  síndromes de Klinefelter e de Noonan se associam com dificuldades na linguagem e aprendizagem da leitura. O estudo dessas síndromes pode ser relevante então para a compreensão dos mecanismos neurocognitivos implicados na discalculia e dislexia do desenvolvimento.


DIAGNÓSTICO

O diagnóstico das doenças raras é difícil. A experiência relatada dos pacientes, em um grande número de casos, é de ficar sofrendo anos a fio e correndo atrás de um diagnóstico sem resultados. As razões para isso são múltiplas. Os profissionais de saúde, incluindo os médicos, não conhecem muito bem as doenças raras. As manifestações clinicas são multiformes, havendo fenótipos atenuados ou formas frustras que dificultam o seu reconhecimento. Como as doenças são raras, a maioria dos profissionais não tem experiência suficiente, de modo a levantar uma suspeita e encaminhar para um centro especializado.

Um problema adicional é o custo dos exames diagnósticos. O diagnóstico depende em um grande número de casos de exames genéticos, os quais costumavam ser caríssimos. Felizmente, essa situação está mudando. Os avanços na genética estão perimitidno o desenvolvimetno de técnicas de diagnóstico genético-molecular que possiblitam a identificação da etiologia de um número crescente de doenças a um custo progressivamente menor.

Muitos profissionais e até mesmo familiares não reconhecem a importância do diagnóstico. O raciocínio subjacente expressa um ceticismo quanto ao diagnóstico em função do fato de que, com algumas raras exceções, não há tratamentos específicos disponíveis.

Novamente, esse ceticismo é injustificado. É crescente o número de doenças genéticas raras que são tratáveis com razoável sucesso, tais como fenilcetonúria, síndrome de Turner, distrofia muscular progressiva tipo Duchenne, síndrome de Prader-Willi, mucopolissacaridoses etc. Os tratamentos podem, muitas vezes, não ser curativos. Mas fazem uma diferença para os pacientes e famílis. P. ex., antigamente os pacientes com Duchenne raramente sobreviviam até a terceira década de vida. Graças à introdução do uso de ventiladores durante a noite, é crescente o número de indivíduos com Duchenne que está chegado à quarta década de vida e com produtividade e qualidade de vida.

Mas o diagnóstico não é importante apenas para o tratamento. O diagnóstico é fundamental para o reconhecimento precoce e prevenção de complicações. Conhecido o perfil de complicações da doença, screenings periódicos ajudam no diagnóstico e tratamento precoce das complicações com melhores resultados.

A partir do diagnóstico surgem demandas por atendimento com a formação de grupos de pacientes e familiares com vistas à troca de experiências e auto-ajuda. Não menos importante é o fato de que para desenvolver e testar terapias os pesquisadores necessitam ter acesso a grupos grandes de pacientes. O que é notoriamente difícil no caso dessas doenças, justamente em função da sua raridade.

O diagnóstico é relevante também do ponto de vista psicológico. As pesquisas mostram que o diagnóstico pode ter impacto distinto sobre o funcionamento familiar, dependendo do momento em que é feito. O diagnóstico precoce, realizado p. ex. logo após o tratamento, quando a família não está esperando por um evento dessa natureza, pode ter efeitos devastadores. É muito importante, então, que os profissionais sejam cuidadosos na transmissão do diagnóstico, associando-o a aconselhamento e suporte psicológico.

Por outro lado, quando o diagnóstico é feito mais tarde, muitas vezes após anos de luta da família, correndo atrás de uma explicação para os dificuldades da criança, o diagnóstico pode ser recebido com alívio. Como se representasse uma espécie de certificado de que a mãe não é louca e que, sim, a criança tem uma dificuldade, a qual é conhecida e reconhecida.

O conhecimento do perfil de complicações associado a cada doença rara específica ajuda a família a desenvolver expectativas e antecipar problemas que podem ocorrer, inclusive do ponto de vista psicológico. Algumas doenças predispõem os indivíduos afetados a problemas psiquiátricos. As pesquisas mostram, entretanto, que os problemas podem, muitas vezes, ser prevenidos através de suporte psicológico, familiar e social adequado.

No planejamento educacional o diagnóstico desempenha também um papel fundamental. Muitas síndromes genéticas, p. ex., se se associam a perfis comportamentais e cognitivos específicos, os chamados fenótipos cognitivo-comportamentais. O conhecimento dessas manifestações fenotípicas ajuda as famílias e professoras a melhor compreender o funcionamento das crianças, ajustando os métodos disciplinares e pedagógicos conforme a necessidade. A desconsideração pelas características comportamentais típicas de muitas doenças pode levar à adoção de estratégias disciplinares coercivas, baseadas na punição, as quais podem agravar ao invés de aliviar as manifestações sintomáticas.

Assim, vemos que são vários os motivos pelos quais devemos nos importar com as doenças raras, seu diagnóstico e seu tratamento. A próxima questão é como estabelecer uma agenda para a assistência às doenças raras. Essa, obviamente, é uma questão complexa e eu não tenho a pretensão de oferecer soluções definitivas. Mas algumas necessidades e possibilidades podem ser apontadas. Elas passam quase que invariavelmente pela necessidade de mais pesquisa e de associação dos pacientes e familiares em grupos de interesse.


AGENDA POSITIVA

A primeira necessidade diz respeito ao diagnóstico. Os exames genético-moleculares não são mais tão caros quanto eram antes. Entretanto, não são cobertos pelo SUS. O SUS também não oferece serviços de médicos geneticistas especializados nessas doenças, que pudessem diagnósticar, aconselhar e tratar os pacientes e sua famílias. Uma maneira de melhorar essa situação passa pela auto-organização dos pacientes e familiares em grupos de lobby, com o intuito de pressionar as  autoridades, exigindo  que seus direitos constitucionais sejam assegurados.

A necessidade seguinte mais óbvia é de pesquisas para o desenvolvimento de terapias eficazes. O desenvolvimento e pesquisa da eficácia de novas terapias específicas requer grandes grupos de pacientes para conduzir ensaios clínicos. Esse é um dos maiores problemas no caso das doenças raras. Essa dificuldade pode ser enfrentada também através da organização dos pacientes e familiares em grupos de advocacia e desenvolvimento de parecerias entre esses grupos e centros idôneos de pesquisa.

Finalmente, os pacientes com doenças raras e suas famílias necessitam atendimento especializado psicossocial em áreas tais como enferemagem, assistência social, psicologia, fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, nutrição, educação etc. Esses tratamentos são caros e complexos, havendo necessidade de priorização, uma vez que é impossível realizar muitos tratamentos simultaneamente. Outra vez: O SUS não oferece esste tipo de serviço.

Uma dificuldade no que se refere ao planejamento de tratamentos psicossociais se prende ao fato de que cada uma das doenças pode apresentar necessidades bem específicas, não compartilhadas com outras condições de saúde. Ao mesmo tempo, várias condições raras podem compartilhar necessidades de  assistência. Então ´há necessidade de pesquisas visando identificar necessidades específicas e necessidades compartilhadas. Só assim seria possível formular políticas fundamentadas de assistência.

Esse texto aqui corre o risco de virar um samba de uma nota só. Porém, mais uma vez somos obrigados a reconhecer o papel que as associações em defesa de interesses mútuos podem desempenhar. Os grupos auto-organizados de pacientes e familiares podem se beneficiar, em primeiro lugar, fazendo lobby.

Mas os grupos auto-organizados desempenham um papel extremamente importante na pesquisa. Nós vivemos numa era de assistência a saúde baseada em evidências. Queremos que nosso atendimento de saúde seja fundamentado nas melhores evidências empíricas disponíveis. Para isso são necessárias pesquisas. Pesquisas essas que necessitam de grupos de pacientes, os quais podem ser formados a partir da cooperação entre essas associações e os pesquisadores. Chegamos então, novamente, ao associativismo.

Finalmente, o associativismo desempenha um papel fundamental do ponto de vista psicológico. A convivência e o reconhecimento mútuo exerce efeitos extremamente benéficos sobre as famílias e sobre os pacientes. Não apenas pela troca de experiências e informações, mas, principalmente, pelo reconhecimento mútuo.

Uma das maiores alegrias que já tive na vida foi testemunhar o contentamento com o qual crianças e jovens com síndrome de Williams se reconhecem uns aos outros. Identificam características semelhantes, desenvolvem um sentimento de pertinência a um grupo, uma identidade, o orgulho de ser Williams.


RESUMJO E CONCLUSÕES

Em resumo, importarmo-nos com as doenças raras não é apenas uma questão humanitária ou curiosidade científica, mas uma questão pratica e cientificamente relevante. Essas doenças podem ser raras isoladamente, mas constituem um importante problema de saúde pública.

As principais áreas problema parecem ser relacionadas com o diagnóstico, tratamento específico e tratamento psicossocial multiprofissional e educação.

As associações de pacientes e familiares representam um papel fundamental no exercício de lobby, na promoção das pesquisas necessárias para melhorar o atendimento, e não menos importante, através do benefício prático e subjetivo conferido pela convivência e reconhecimento mútuo.

O capital social, humano e cognitivo de uma sociedade pode ser medido pelo seu grau de associativismo. Um dos maiores desafios para melhorar a qualidade de vida de pessoas com doenças raras e suas famílias é a auto-organização de pacientes e familiares e o trabalho cooperativo com profissionais e pesquisadores. 


DISCLAIMER

Sou altamente suspeito. várias décadas sou apaixonado por uma geneticista e pela neuropsicologia das síndromes genéticas. 

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