Com a neuropsicologia parece acontecer uma coisa semelhante ao que acontecia até algum tempo com certas especialidades médicas como a neurologia e a psiquiatria: diagnósticos brilhantes e nenhum tratamento eficaz.
O que fazer depois que uma criança ou adolescente é diagnosticado com discalculia do desenvolvimento? Honestamente, eu não sei muito bem. Ou melhor, a resposta que eu tenho não é satisfatória. O melhor que nós neuropsicólogos podemos fazer é:
- Aconselhar a família, a professora e o cliente quanto à natureza da dificuldade. Importa muito saber que a inteligência é normal. Ou que o problema não é relacionado à “preguiça" ou a alguma "falha de caráter”. Também é importante compreender e manejar as conseqüências motivacionais e emocionais, ou seja a ansiedade matemática;
- Quando necessário, implementar um programa de terapia cognitivo-comportamental que pode auxiliar a criança a desenvolver motivação e uma atitude mais positiva em relação à matemática. Isso pode ser feito promovendo a auto-eficácia através de estratégias de modelagem e aprendizagem sem erro (experiências programadas de sucesso) ou treinamento em auto-instrução em solução de problemas, de modo que a criança possa desenvolver estratégias compensatórias etc.
O sonho dos neuropsicólogos é desenvolver intervenções cientificamente fundamentadas e eficazes. Idealmente baseadas nos conhecimentos adquiridos sobre os aspectos cognitivos, motivacionais, emocionais e comportamentais envolvidos na discalculia.
Há uma série de iniciativas nesses sentido. Nós mesmos, no LND-UFMG, temos alguma experiência com a implementação de intervenções para discalculia. O problema é que essas intervenções ainda são muito experimentais e sua eficácia limitada. Intervenções pontuais e descontextualizadas melhoram temporariamente a habilidade treinada mas seus efeitos não se transferem para outros domínios cognitivos nem para o contexto de sala de aula. Essas intervenções permanecem sendo experimentais. Não surgiu nada que seja eficaz o suficiente para indicar como uma diretriz para tratamento.
É compreensível o desespero de familiares e profissionais: O que fazer? Algumas tentativas de responder a essa questão consistem no desenvolvimento de jogos de computador e no treinamento de habilidades cognitivas gerais, tais como a memória de trabalho. Ambas possibilidades merecem consideração.
JOGUINHOS DE COMPUTADOR
Os joguinhos de computador são muito atraentes. Mas, no momento atual, prometem mais do que entregam. Atenção, vou criticar os joguinhos. Mas nós mesmos estamos envolvidos em um projeto de pesquisa para desenvolver joguinhos que possibilitem colaborar no tratamento da discalculia.
Infelizmente, até agora, não apareceu nenhum joguinho que tenha se mostrado eficaz. Alguns são, até mesmo, contraproducentes. Alguns jogos são tão bobos que acabam tendo um efeito motivacional adverso. É o caso de jogos debilóides, com baixa jogabilidade.
Repito, não é o que o joguinho seja inútil ou contraindicado. Ao contrário, o futuro está nos joguinhos. Mas é preciso saber o quê e como fazer. O que esperar de um joguinho. Não dá pra pensar que você vai colocar a criança na frente de um joguinho algumas vezes por semana durante algumas semanas e achar que ela vai aprender matemática.
É preciso calibrar as expectativas em relação aos joguinhos e saber usá-los de forma experta. Um joguinho atraente pode ter um efeito motivacional fantástico. Um joguinho atraente e usado de forma adaptava pode garantir motivação suficiente para treinar atividades inicialmente percebidas como aborrecidas. Mas o uso o joguinho precisa ser inserido em um contexto terapêutico. Precisa fazer sentido para a criança. A criança precisa atender o quê e porquê está fazendo.
Muito mais promissores me parecem ser os softwares que possibilitam à criança programar suas próprias solucões. O conceito envolve primeiramente conscientizar a criança quanto à natureza do problema. Desenvolver um conhecimento conceitual a respeito de um determinado aspecto da aritmética. A seguir, a criança pode aprender a desenvolver ferramentas computacionais que lhe permitam resolver o problema. Isso envolveria a aquisição de habilidades mínimas de programação. Já existem softwares user-friendly que permitem fazê-lo. Essa proposta é compatível com os pressupostos construtivistas. Seria necessário, entretanto, verificar os pré-requisitos cognitivos (QI, memória de trabalho etc.) para que essa abordagem funcione. Vamos então discutir o papel do treinamento de habilidades cognitivas gerais, tais como a memória de trabalho.
MEMÓRIA DE TRABALHO
As habilidades cognitivas gerais, tais como a inteligência e a memória de trabalho, indubitavelmente desempenham um papel importante na aprendizagem da aritmética. A associação entre aritmética e inteligência é fortíssima. Tanto que muitos testes de inteligência, tais como o WISC incorporam items aritméticos.
As habilidades cognitivas gerais não explicam, entretanto, a especificidade de domínio da discalculia. Crianças com dislexia, TDAH, autismo etc. também têm dificuldades com a memória de trabalho. Por que algumas apresentam discalculia e outras dislexia? Há necessidade de considerar o comprometimento de algum fator cognitivo mais específico, modularmente organizado no cérebro-mente.
Um modelo interessante para compreender os mecanismos subjacentes aos transtornos específicos de aprendizagem foi proposto por Mark Johnson (2012). Segundo esse modelo, um transtorno específico de aprendizagem resulta de uma interação entre déficits cognitivos específicos (tais como no senso numérico ou processamento fonológico) e déficits cognitivos mais gerais (tais como na inteligência ou memória de trabalho).
Se a criança apresenta um déficit específico mas dispõe de bons recursos cognitivos gerais, ela pode se utilizar desses recursos cognitivos gerais para compensar suas dificuldades. E, assim, às custas de esforço ela pode progredir de forma adequada não sendo o seu desempenho caracterizado como deficiente.
Por outro lado, se a criança tem um déficit cognitivos modular e não dispõe de recursos cognitivos gerais para compensá-lo, aumenta a probabilidade de que tenha problemas com o desempenho escolar e receba algum diagnóstico.
O modelo de Johnson (2012) sugere imediatamente que talvez ser útil desenvolver programas de treinamento e habilidades cognitivas gerais, com o intuito de melhorar o desempenho de crianças com déficits específicos, tais como a discalculia.
O construto memória de trabalho é correlacionado ao fator g da inteligência e tem recebido muita atenção como foco de intervenção. Diversos programas de treinamento de memória de trabalho, alguns inclusive usando computadores, foram desenvolvidos. A esperança é que a criança treine algum aspecto da memória de trabalho e isso se reflita em ganhos de desempenho cognitivo específicos. Alguns programas são bem caros, sendo vendidos por um pessoal simpático que fica nos congressos usando jaleco branco com a bandeirinha do Brasil no ombro.
Diversos são os problemas com esses programas: a) Seu uso é experimental. Não há eficácia comprovada que justifique seu uso na prática clinica e que, ainda por cima, se cobre para empregá-los; b) A eficácia é limitada. O uso dessas ferramentas pode ser justificado, p. ex., a partir de uma abordagem de programação de atividades em um contexto terapêutico específico. Sem o contexto psicoterapêutico ou a necessidade de adquirir e treinar uma habilidade específica não há como justificar seu uso.
Mas será que não existe mesmo pesquisa demonstrando o benefício dos programas computadorizados de treinamento da memória de trabalho no contexto da aprendizagem da aritmética?
O ESTUDO DE HONORÉ E NOËL (2017)
Honoré e Noël (2017) conduziram um estudo bem bacaninha para investigar a eficácia de um programa de treinamento computadorizado (CogMed) na aprendizagem da aritmética por pré-escolares.
As crianças tinham cinco anos de idade e foram aleatorizadas em dois grupos, cada um com 23 participantes. O grupo experimental recebeu treinamento adaptativo em habilidades de memória de trabalho visoespacial. A partir de uma linha de base, a dificuldade das tarefas era aumentada progressivamente. O grupo de controle também trabalhou com as tarefas mas o nível de dificuldade não era aumentado. O treinamento foi realizado diariamente por cinco semanas.
O desempenho em aritmética foi avaliado através de uma série de tarefas que se mostraram sensíveis, uma vez que até as crianças do grupo controle progrediram significativamente.
Os resultados mostraram que, após cinco semanas o treinamento em memória de trabalho visoespacial melhorou o desempenho em memória de trabalho visoespacial mas não em memória de trabalho fonológica. Dez semanas após o fim do treinamento, os efeitos sobre a memória de trabalho visoespacial tinham desaparecido.
Mas o resultado mais importante é que o treinamento de memória de trabalho não teve qualquer efeito sobre a aprendizagem da aritmética, quer seja no curto ou no médio prazo. Nem poderia. Quem trabalha seriamente com inteligência, sabe que o fator g não pode ser ensinado. Não existe mágica.
CONCLUSÕES
O resultados do estudo de Honoré e Noël (2017) mostram que o treinamento computadorizado de memória de trabalho não tem efeitos sequer sobre a própria memória de trabalho em pré-escolares. Que dirá sobre a aprendizagem da aritmética…
Quer dizer então que eu não recomendo o uso de programas computadorizados? Ao contrário. Longe disso. Sou fã do computador, da internet etc. Acho que já mudou o mundo e vai mudar mais ainda. Só que programa de computador não faz mágica. Sou contra o uso bobo, mecânico dos programas de computadores. Aliás, nenhuma conduta clinica mecânica funciona. A clínica não se reduz a um algoritmo.
A coisa toda tem que fazer sentido para a criança. A criança precisa entender o que está fazendo e o que pode ganhar. A criança precisa se divertir. A mensagem é: “Aprender é divertido. Você pode aprender. Você pode aprender a gostar de aprender, apesar das dificuldades. Você dá conta!”
Hoje os programas de computador podem desempenhar papéis importantes em um programa mais amplo de intervenção, psicoterapeuticamente concebido. Podem auxiliar a motivar, a perder o medo, a compreender conceitos e procedimentos, a adquirir novas habilidades (inclusive de programação), a treinar e consolidar habilidades adquiridas, a se divertir etc. Precisamos aprender a usar esses programas de computador.
REFERÊNCIAS
Honoré, N., & Noël, M. P. (2017). Can working memory training improve preschoolers’ numerical abilities. Journal of Numerical Cognition, 3(2), 516-539.
Johnson, M. H. (2012). Executive fucntion and developmental disorders: the flip side of the coin. Trends in Cognitive Sciences, 16, 454-457.
No comments:
Post a Comment