Estou lendo a segunda edição do livro de Fletcher e cols. (2019) sobre Learning Disabilities. E estou aprendendo adoidado. A primeira edição (Fletcher et al., 2007) foi traduzida para o português e publicada pela ARTMED (Fletcher et al., 2009). Recomendo fortemente a tradução da segunda edição. Acho que seria uma grande contribuição à neuropsicologia e educação brasileiras.
Ao invés de uma revisão sistemática da literatura, os autores optaram por fazer uma reflexão sobre os avanços conceituais, metodológicos e empíricos da última década e apresentar um modelo de suporte às dificuldades de aprendizagem. Eles têm experiência e autoridade para isso.
Basicamente, o modelo consiste em procurar resolver o problema das dificuldades de aprendizagem no âmbito da escola, evitando ao máximo recorrer a especialistas externos, tais como neuropsicólogos. Isso reflete a tendência atual de "desmedicalização" do ensino escolar e de adoção de uma filosofia de resposta à intervenção (RTI) de reconhecimento e intervenção através de um sistema multinível de suporte (Multi-tiered System of Supports).
De acordo com essa filosofia, nunca é cedo demais para reconhecer e intervir. O sistema pressupõe a adoção de procedimentos de triagem para identificar o mais precocemente possível as crianças com dificuldades ou em risco de apresentarem dificuldades de aprendizagem. A seguir, essas crianças passam por até três níveis de intervenção crescentemente intensivas. Após cada nível de intervenção a reavaliação indica se as dificuldades persistem. Quando as dificuldades persistem, a criança é encaminhada para o nível subseqüente de intervenção. Quando as dificuldades desaparecem, isso é interpretado como sucesso terapêutico e/ou prevenção dos transtornos.
O sistema proposto é atraente por vários motivos: a) O problema e sua solução ficam restritos ao ambiente escolar; b) O uso de rótulos diagnósticos e a identificação da etiologia das dificuldades tornam-se irrelevantes; c) O reconhecimento e intervenção precoces aumentam a chance de sucesso e impedem que o problema se cronifique, evitando assim todas as conseqüências secundárias das dificuldades persistentes de aprendizagem.
Ao mesmo tempo, o sistema multinível de suporte se associa com uma série de dificuldades: a) O sistema é complexo e caro para implementar, exigindo uma política pública resoluta para sua concretização; b) O sistema depende crucialmente da adoção de uma filosofia de educação baseada em evidências, divergindo radicalmente das filosofias pedagógicas que concebem as dificuldades de aprendizagem como um problema político; c) A validade do diagnóstico de dificuldades de aprendizagem é transferida para a qualidade e aderência por professores e alunos às intervenções; d) O sistema exige qualificação maciça dos profissionais de educação, muito acima dos níveis atualmente praticados; e) O reconhecimento dos processos cognitivos implicados e caracterização de subtipos pode não ser irrelevante para a intervenção; f) O diagnóstico de comorbidades e agravos potencialmente significativos à saúde pode ser postergado se os educadores não dispuserem de um sistema eficiente de triagem para os problemas neuropsicológicos associados.
Talvez o obstáculo maior à implantação desse tipo de sistema multinível seja a própria episteme educacional contemporânea. A implementação válida do sistema exige uma sólida fundamentação em evidências científicas e um esforço para melhorar a qualidade metodológica da pesquisa e das evidências disponíveis. Conforme demonstrado por Fletcher e cols., esse esforço ocorreu de forma impressionante na última década. A pesquisa sobre dificuldades de aprendizagem está cada vez mais rigorosa e sofisticada, tanto do ponto de vista conceitual quanto metodológico. Infelizmente, esse esforço ainda tem sido ignorado pelo mainstream educacional. E não apenas no Brasil.
Há, sim, um interesse enorme dos educadores (mas não por parte dos professores de pedagogia) pela chamada neurociência educacional. Mas se há uma coisa que Fletcher e cols. deixam claro no livro é que esse interesse pode ser prematuro. Os métodos de neuroimagem funcional ainda não trouxeram contribuições tão importantes a ponto de serem relevantes para o reconhecimento e intervenção precoces dos problemas de aprendizagem escolar. A neurociência cognitiva se restringe, em grande parte, ao teste empírico de modelos e hipóteses originários da boa e velha psicologia (cognitiva e comportamental). Os resultados dos estudos de neuroimagem contribuem para demonstrar o envolvimento de disfunções cerebrais nas dificuldades de aprendizagem e para adjudicar entre modelos teóricos e hipóteses psicológicas concorrentes. Mas a contribuição heurística e a relevância para a sala de aula ainda são pífias. Pessoalmente, fico com a impressão de que a pedagogia está querendo comprar hoje , sob uma roupagem neurocolorida, evidências que a psicologia já vinha oferecendo há décadas e que eram solenemente ignoradas ou agressivamente combatidas.
Há décadas a psicologia vem oferecendo à educação evidências quanto à importância a) do conhecimento prévio na aprendizagem, b) dos métodos instrucionais explicitos e estruturados, c) da redução da sobrecarga de memória de trabalho, c) da prática e treinamento intensivos, e) dos exemplos demonstrados, f) do engajamento pessoal e atividade cognitiva (externamente não observáveis) em contraposição ao mero engajamento comportamental (externamente observável); g) da dependência entre motivação e aprendizagem e importância dos métodos de aprendizagem sem erro; h) do manejo comportamental da motivação e dificuldades disciplinares etc. Uma belíssima exposição didática desses avanços psicológicos relevantes para a educação pode ser encontrada no livro de Willingham (2011).
A implementação de um sistema multinível de suporte depende crucialmente da disponibilidade de evidências científicas, obtidas a partir de métodos quantitativos de pesquisa, incluindo o teste de hipóteses. Fletcher e cols. (2019) comentam, p. ex., que qualquer intervenção só pode ser adotada se houver ao menos um ensaio controlado randomizado de boa qualidade. E olhem que essa exigência é bem baixa, considerando que em outras áreas há a necessidade de evidências mais sólidas, como a disponibilidade de meta-análises. Por razões que, em última análise, remetem a divergências epistemológicas, a pedagogia tem tradicionalmente evitado se envolver na medida necessária com esse tipo de pesquisa.
Mas o sistema multinível de suporte preconizado por Fletcher e cols. (2019) não constitui um desafio apenas para a pedagogia mas também para a neuropsicologia. E é justamente isso que mais me interessa aqui. A própria noção de transtornos específicos de aprendizagem se desenvolveu no último século a partir de uma concepção neuropsicológica. O conceito de transtorno específico de aprendizagem pressupõe a idéia de que algumas crianças sem deficiência intelectual apresentam dificuldades de aprendizagem relacionadas a comprometimentos intrínsecos e seletivos de determinados processos psicológicos. Comprometimentos esses que refletem um desenvolvimento cerebral atípico de origem epigenética. No caso da dislexia (dificuldade de reconhecimento visual de palavras isoladas), o suspeito número 1 é o processamento fonológico. No caso da discalculia o suspeito número 1 é o processamento numérico (não-simbólico ou simbólico?).
Muito progresso foi alcançado com a abordagem neuropsicológica. A ponto de a sua existência ser atualmente inquestionável e a ponto de o assunto ter perdido a áurea de mistério. Mas vários problemas não foram solucionados pela neuropsicologia. Fletcher e cols. (2019) transmitem a impressão de que a pesquisa neuropsicológica rendeu o que tinha para render. Ao menos no momento. Eu não acredito que isso seja verdade. Mas não posso deixar de admitir que as suas críticas são extremamente pertinentes.
A dificuldade maior com o conceito advém da natureza inobservável e distribuição gaussiana dos processos cognitivos supostamente envolvidos com as dificuldades de aprendizagem. A aprendizagem escolar depende de uma multiplicidade de processos psicológicos tais como inteligência, memória de trabalho, funções executivas, processamento visoespacial, processamento fonológico, processamento numérico, motivação etc. Cada um desses processos se distribui normalmente na população e depende de influências epigenéticas complexas.
As influências etiológicas sobre as dificuldades de aprendizagem são, portanto, de natureza dimensional e não categorial. Não há diferenças qualitativas no processamento de informação entre crianças com e sem dificuldades de aprendizagem. O diagnóstico categorial se justifica pela associação desfechos negativos quanto mais graves forem as dificuldades e pela necessidade de intervenção e planejamento de políticas públicas.
A relação entre os múltiplos processos psicológicos envolvidos nas diferentes manifestações e subtipos de dificuldades de aprendizagem é complexa e multidimensional, originado o fenômeno da co-ocorrência (comorbidade) de diferentes tipos de dificuldades em uma mesma criança. P. ex., se uma criança tem dislexia, ela tem um risco maior do que a população de apresentar também discalculia e/ou TDAH. A existência de comorbidades e as evidências de que essas comorbidades se originam de influências etiológicas compartilhadas e não-compartilhadas é um sério risco à validade interna do construto transtornos de aprendizagem.
Como os processos psicológicos subjacentes aos transtornos de aprendizagem não são observáveis e como não há marcadores cognitivos ou biológicos das mesmas, o diagnóstico depende crucialmente dos testes de desempenho escolar. Isso cria uma circularidade. O construto passa a ser operacionalizado pelo instrumento de medida. E os testes de desempenho, na sua grande maioria, são definidos pelo currículo e não pela estrutura estrutura de habilidades psicológicas subjacente. Não é surpreendente, portanto, que o mapeamento entre o tipo de dificuldades e os processos psicológicos subjacentes seja muito menos do que perfeito.
Nesse sentido, também não deixa de ser surpreendente que se obtenha um mapeamento bastante razoável entre o tipo de dificuldades e os processos psicológicos específicos supostamente comprometidos, descontados os casos de comorbidade. No caso da dislexia (dificuldade de reconhecimento visual de palavras), p. ex., há evidências de que o processamento fonológico (acesso lexical, memória fonológica e consciência fonêmica) está comprometido em um grande número de indivíduos. Mas há evidências de que uma porção menor porém significativa de indivíduos com dislexia apresentem dificuldades em outros tipos de processos psicológicos. P. ex., Friedmann e Coltheart (2018) caracterizaram 19 subtipos de dislexia, cada um demandando estratégias de intervenção distinta. Já no que se refere à discalculia, o progresso está ocorrendo, mas ainda não há evidências conclusivas e relevantes para a prática educacional.
O caso das dificuldades de compreensão da leitura parece ser mais complexo ainda, dada a multiplicidade de processos e sistemas psicológicos envolvidos com o sucesso nessa habilidades. A compreensão de leitura depende do QI, vocabulário, memória de trabalho, habilidades lingüísticas mais básicas (fonologia, morfologia, semântica, sintaxe), habilidades lingüísticas especificamente textuais (coerência, coesão), habilidades de teoria da mente etc.
É preciso reconhecer, portanto, que a abordagem neuropsicológica, que consiste em identificar o comprometimento de processos psicológicos específicos subjacentes às dificuldades, encontra uma série de dificuldades e limitações. Nesse sentido, a busca de alternativas é mais do que bem vinda.
O modelo multinível de suporte proposto por Fletcher e cols. (2019) se baseia crucialmente em três linhas principais de argumentação: a) Até o momento não há evidências sólidas de que o treinamento de processos psicológicos supostamente comprometidos (p. ex., memória de trabalho ou senso numérico) possa contribuir para a melhoria das dificuldades; b) Os melhores resultados terapêuticos são obtidos com o engajamento maciço dos alunos com os domínios curriculares em que apresentam resultados; c) Os métodos instucionais e o manejo cogitivo-comportamental são cruciais para o sucesso terapêutico.
Observando a Table 5.1 de Fletcher e cols. (2019) é possível constatar como suas recomendações para o planejamento de intervenções concordam com as evidência quanto à importância dos métodos instrucionais (Christodoulou, 2014, Haase et al., 2015, Hattie, 2009, Kirshner, 2018, Kirshner et al., 2006, Mayer, 2004, Sweller et al., 2011, Willingham, 2011) e, ao mesmo tempo, discordam radicalmente da ênfase excessiva atribuída às abordagens construtivistas (aprendizagem por descoberta e cooperação, problem-based learning, classe invertida etc.). A adoção do modelo proposto por Fletcher e cols. (2019) implicaria em uma reviravolta na pesquisa e na prática pedagógica.
Fonte: Fletcher et al. (2019)
E quais são as implicações para a neuropsicologia? Acredito que o investimento maciço que está sendo realizado na pesquisa em neurociência educacional acabará resultando em algum breakthrough. A esperança é de que a melhor compreensão dos mecanismos cerebrais subjacentes à aprendizagem dos diversos domínios curriculares resulte em insight para a sala de aula e para o manejo das dificuldades de aprendizagem. Enquanto isso, apesar da sua complexidade de implementação, o modelo multinível de suporte parece ser uma alternativa viável e eficiente no nível populacional para minorar o problema das dificuldades de aprendizagem. O diagnóstico neuropsicológico continuará tendo importância em casos individuais, nos quais as dificuldades sejam resistentes às intervenções-padrão, bem como para a identificacão de comorbidades e avaliação e manejo do impacto psicossocial das dificuldades.
Um desafio é conciliar essas duas abordagens. Evidentemente, a neuropsicologia não é recurso que possa ser aplicado em massa. O foco da neuropsicologia é o indivíduo. Assim ela é indispensável para para o planejamento mais eficiente das intervenções para os casos mais graves, para os subtipos menos freqüentes e para o reconhecimento e manejo de outros problemas de saúde mental associados. Um exemplo pertinente é a dislexia (Friedmann e Coltheart, 2019). A multiplicidade de subtipo indica que uma abordagem tamanho único poderá resolver as dificuldades da maioria mas não de todas as crianças. Um risco importante do modelo multinível é retardar o acesso a um diagnóstico mais aprofundado e abrangente. Diagnóstico esse, que de qualquer forma, não pode e não precisa ser oferecido a todas as crianças com dificuldades de aprendizagem.
Os maiores méritos do livro de Fletcher e cols. (2019) podem então ser resumidos como: a) um chamado à humildade por parte dos neuropsicológos e neurocientistas; b) a proposta de um modelo para reconhecimento e intervenção nas dificuldades de aprendizagem com viabilidade de aplicação em escala populacional; c) um desafio para a neuropsicologia e neurociência intensificarem suas pesquisas e para a pedagogia repensar seus pressupostos conceituais e metodológicos, aproximando-se cada vez mais de uma filosofia de educação baseada em evidências.
Referências
Christodoulou, D. (2014). Seven myths about education. London: Routledge / The Curriculum Centre.
Fletcher, J. M., Lyon, G. R., Fuchs, L. S., and Barnes, M. A. (2007). Learning disabilities. From identification to intervention. New York: Guilford.
Fletcher, J. M., Lyon, G. R., Fuchs, L. S., e Barnes, M. A.(2007). Transtornos de aprendizagem. Da identificação à intervenção. Nova Iorque: Guilford.
Fletcher, J. M., Lyon, G. R., Fuchs, L. S. and Barnes, M. A. (2019). Learning disabilities. From identification to intervention (2nd ed.). New York: Guilford.
Friedmann, N. & Coltheart, M. (2018). Types of developmental dyslexia. In A. Bar-On and D. Ravid (eds.) Handbook of communication disorders. Theoretical, empirical and applied linguistic perspectives (pp. 721-751). Berlin: DeGruyter/Mouton.
Haase, V. G., Júlio-Costa, A., & Lopes-Silva, J. (2015). Por que o construtivismo não funciona? Evolução, processamento de informação e aprendizagem escolar. Psicologia em Pesquisa UFJF, 9, 62-71.
Hattie, J. A. C. (2009). Visible learning. A synthesis of over 800 meta-analyses relating to achievement. London: Routedge.
Kirshner, P. (2018). Inquiry learning isn't - a call for direct explicit instruction. ResearchED, July.
Kirschner, P. A., Sweller, J., & Clark, R. (2006). Why minimal guidance during instruction does not work: An analysis of the failure of constructivist, discovery, problem-based, experiential and inquiry-based teaching. Educational Psychologist, 41, 75–86.
Mayer, R. E. (2004). Should there be a three-strike rule against pure discovery learning? the case for guided methods of instruction. American Psychologist, 59, 14-19.
Sweller, J., Ayres, P., & Kalyuga, S. (2011). Cognitive load theory. New York: Springer.
Willingham, D. T. (2011). Por que os alunos não gosta da escola. Porto Alegre: ARTMED.
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