Friday, May 31, 2019

A neurociência afetiva de Jaak Panksepp

Jaak Panksep (1943-2017) foi um neuroscientista americano de origem estoniana, que cunhou o termo neurociência afetiva (Davis & Panksepp, 2017, Panksepp e Biven, 2012). Durante 50 anos, Panksepp investigou o comportamento emocional de diversos tipos de animais, usando métodos de estimulação elétrica cerebral, manipulações farmacológicas e lesões. A partir desse trabalho, ele desenvolveu uma teoria neurocientífica das emoões. A seguir resumo alguns dos fundamentos dessa teoria.


Emoções primárias são implementadas por sistemas cerebrais arcaicos, conservados em diversas espécies de vertebrados. Esses sistemas cerebrais correspondem a estratégias evolutivamente estáveis que promoveram a sobrevivência e reprodução no ambiente ancestral de diversas espécies.

Os sistemas mais arcaicos - presentes em répteis e, talvez, em peixes - são relacionados a SEEKING (exploração de recursos ambientais), LUST (identificação de parceiros potenciais e reprodução), RAGE (competição por e defesa de recursos) e FEAR (fuga e evitação de ameaças à integridade física).

Nos mamíferos evoluiram sistemas emocionais sociais relacionados a CARE (cuidado parental), PANIC (manutenção do contato e vínculos sociais) e PLAY (atividades sociais relacionadas à formação de vínculos). 

Cada uma dessas emoções é implementada por um sistema "arcaico" neuroanatomica e neuroquimicamente bem caracterizado e integrado no nível subcortical de organização do SNC. Pankepp utiliza letras maiúsculas para designar os nomes desses sistemas, de forma a indicar que se trata de um sistema neural específico, distinto do uso folk-psicológico dos termos relacionados a emoções.

A ativação de cada um desses sistemas corresponde a um estado de consciência, um sentimento, por mais primitivo que seja em mamíferos não-humanos. Tanto em humanos quanto em outros mamíferos, as evidências para a existência de sentimentos são indiretas. Em humanos, os sentimentos são expressados verbalmente. Nos outros mamíferos, a existência de sentimentos é inferida a partir de estudos com auto-estimulação elétrica, condicionamento de preferência ou aversão por locais e vocalizações específicas (1). 

Três níveis de consciência emocional podem ser diferenciados. Os processos primários correspondem a processos não-noéticos (não-cognitivos), provavelmente de caráter difuso e rudimentar, mas dotados de uma valência específica (positiva ou negativa). Os processos secundários são noéticos e se referem ao papel das amoções na aprendizagem por recompensa ou punição. Finalmente, os processos secundários são auto-noéticos e correspondem à capacidade auto-reflexiva dos humanos, dependente de uma linha do tempo mental que permite recuperar o passado, manter o presente (ainda que por alguns instantes) e antecipar o futuro, bem como refletir sobre os próprios pensamentos e sentimentos (Wheeler et al., 1997). 

A teoria não apenas propõe que os animais não-humanos são dotados de consciência e sentimentos, ela propõe também que as emoções estão na origem da consciência e de toda atividade mental. Os processos cognitivos são derivativos de processos emocionais arcaicos,  drivados dos sistemas accionais e implementados por estruturas subcorticais, os quais são integrados e elaborados de forma mais abstrata no córtex.

Os sistemas emocionais são inatos, mas também são sistemas adaptativos, que permitem a aprendizagem e promovem a fitness. As manifestações emocionais primárias são inatas no sentido de que sua expressão é independente da experiência prévia do organismo. A valência emocional permite a aprendizagem por meio de condicionamento, através do qual novos estímulos e eventos são associados a significados emocionais específicos.

As emoções primárias são integradas em níveis subcorticais. As manifestações emocionais persistem após decorticação em animais e podem ser eliciadas de forma seletiva por estimulação de localizações subcorticais ou manipulações farmacológicas específicas. Em humanos, há evidências de que crianças com malformações graves do neoencéfalo exibem manifestações emocionais primárias (Shewmon et al., 1999). A propósito, as manifestações emocionais de uma criança com uma malformação neocortical grave foram registradas pela família em um blog. As fotos do sorriso social da menina são enternecedoras.

Panksepp considera também que, ao nascimento, o neocórtex é uma tabula rasa. Essa afirmação precisa, na minha opinião, ser reformalda. Panksepp baseia sua afirmação em evidências obtidas por Sur de que o neocórtex visual e auditivo pode ser reorganizado em função de transposições das vias sensoriais correspondentes ao nascimento (Sur e Rubinstein, 2005). Por outro lado, há evidências de que a celularidade e conectividade do neocórtex sofrem influências de um protomapa genético que especifica padrões relativamente específicos de organização (Rakic, 2009). As evidências indicando tanto plasticidade quanto um protomapa do desenvolvimento neocortical indicam que esse processo ocorre de forma epigenética. Ou seja, o desenvolvimento do neocórtex é um processo resultante da interação entre uma blueprint genética e a experiência.

A abertura relativa do desenvolvimento neocortical à experiência tem conseqüências importantíssimas. Correspondendo ao processo de neotenia, o cérebro humano nasce relativamente imaturo. As últimas etapas do desenvolvimento cerebral, relacionadas, principalmente, ao estabelecimento da arquitetura cortical (celularidade e conecitividade) ocorrem após o nascimento. Dessa forma, são susceptíveis não apenas a variações interindividuais genéticas mas também experienciais. 

Ou seja, a experiência e a cultura influenciam o desenvolvimento do neocórtex. Isso pode explicar porque é tão difícil detectar a assinatura neural das emoções primárias em humanos através dos métodos de relato verbal ou de neuroimagem atualmente disponíveis (Barrett, 2017). 

Então, segundo a narrativa de Panksepp, as emoções são implementadas por sistemas neurais inatos, de origem filogenética muito antiga, os quais são implementados por estruturas subcorticias. Mas, apesar de corresponderem a estratégias evolutivamente estáveis, ou justamente por causa disso, os sistemais emocionais são adaptativos. Um função importante das emoções é conferir valência emocional aos novos eventos, permitindo a aprendizagem associativa. 

A intensa evolução da socialidade em mamíferos e do neocórtex em primatas, principalmente humanos, confere possibilidades de refinamento, regulação mais reflexiva da atividade emocinal, sob a forma de sentimentos nuançados. O controle cortical permite refinar e expressar ou não os sentimentos, direcionando sua expressão de forma estratégica, promotora da fitness.

Finalmente, ocorrem variações interindividuais na expressão desses sistemas emocionais, as quais emergem a partir de complexas interações epigenéicas (Montag et al., 2016). Essa variabilidade interindividual pode estar na origem das diversas manifestações psicopatológicas.

Segunda essa perspectiva, as diversas entidades psicopatológicas podem ser concebidas como redes de endofenótipos emocionais. Ou seja, como redes de fenótipos intermediários epigeneticamente desenvolvidos que influenciam de forma estável ao longo do ciclo vital padrões de expressividade emocional e susceptibilidade a eventos estressores (Burgdorf et al., 2011, 2017). O estudo das bases neurais desses sistemas emocionais está contribuindo para uma melhor compreensão da fisiopatogenia e nosologia das doenças mentais e desenvolvimento de tratamentos biológicos mais eficientes (processos emocionais primários). Ao mesmo tempo, a teoria fundamenta as práticas psicoterápicas baseadas em estratégias comportamentais de condicionamento (processos emocionais seduncários) e de reestruturação cognitiva (processos emocionais terciários).


(1) Uma dos assuntos mais interessantes investigados por Panksepp são as vocalizações ultrasônicas de 50 Khz ou chirps, emitidas por roedores em situações com valência emocional negativa ou, principalmente, positiva (Burgdorf et al., 2011, 2017). Quando separados da mãe, os bebês roedores emitem vocalizações de distress, as quais são atenuadas por baixas doses de opióides. Quando estão brincando, sendo acariciados ou recebendo cosquinhas, os filhotes emitem risinhos ultrasônicos. A freqüência desses risinhos ultrasônicos é preditiva do desempenho cognitivo na idade adulta.


Referências

Barrett,  L. F. (2017). The theory of constructed emotion: an active inference account of interoception and categorization. Social, Cognitive and Affective Neuroscience, 12(11):1833. (doi: 10.1093/scan/nsx060..

Burgdorf, J., Panksepp, J., Moskal, J. R. (2011). Frequency-modulated 50 kHz ultrasonic vocalizations: a tool for uncovering the molecular substrates of positive affect. Neuroscience and Biobehavioral Reviews, 35, 1831-1836.

Burgdorf J., Colechio E.M., Stanton P., Panksepp J..  (2017). Positive Emotional Learning Induces Resilience to Depression: A Role for NMDA Receptor-mediated Synaptic Plasticity. Current Neuropharmacology, .15, 13-10.

Davis, L. K. Panksepp, J. (2017). The emotional foundations of personality: a neurobiological and evolutionary approach. New York: Norton.

Panksepp, J. Biven, L. (2012). The Archeology of Mind. New York, NY. 
Rakic, P. (2009). Evolution of the neocortex: a perspective from developmental biology. Nature Reviews Neuroscience, 10, 1724-1735.
Montag C, Hahn E, Reuter M, Spinath FM, Davis K, Panksepp J. The Role of Nature and Nurture for Individual Differences in Primary Emotional Systems: Evidence from a Twin Study. PLoS One. 2016 Mar 21;11(3):e0151405. doi: 10.1371/journal.pone.0151405.
Shewmon, D. A., Homes, G. L., Byrne, P. A. (1999). Consciousness in congenitally decorticate children: developmental vegetative state as self-fulfilling prophecy. Developmental Medicine and Child Neurology, 41, 364-374.
Sur, M., Rubinstein, J. L. (2005). Patterning and plasticity of the cerebral cortex. Science, 310, 805-810.
Wheeler, M. A., Stuss, D. T., Tulving, E. (1997). Toward a theory of episodic memory: the frontal lobes and autonoetic consciousness. Psychological Bulletin, 121, 331-354.


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