Haase, V. G. & Salles, J. F. (2011). A neuropsicologia
no conflito das faculdades. Boletim da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia
(SBNp), Dezembro.
O estudo psicológico da
criatividade científica tem mostrado como em muitos casos as descobertas
originais e mudanças de paradigma dependem de um longo período de gestação no
qual evidências oriundas de diversas disciplinas são integradas, múltiplas
hipóteses e modelos concorrentes são gerados e testados, sendo retidos aqueles
que resistem ao teste de hipóteses (Simonton, 2002). O caso de Charles Darwin e
da teoria da evolução por seleção natural é emblemático, conforme investigado
por Gruber (Gruber & Wallace, 2001). Darwin trabalhou na fronteira entre
disciplinas, principalmente nos limites entre o que hoje chamamos de Geologia e
Biologia. Apesar de, provavelmente, ter experimentado alguma espécie de
insight, foi apenas através do árduo trabalho de geração e teste de hipóteses
concorrentes ao longo de mais de 20 anos que Darwin conseguiu dar forma à sua
teoria.
A história da Neuropsicologia também ilustra a importância do trabalho
interdisciplinar para o progresso científico (Shallice, 1988). Apesar de a
denominação ser posterior, a Neuropsicologia surgiu com a descoberta de que o método
anátomo-clínico também podia ser utilizado para encontrar associações
sistemáticas entre localizações lesionais e alterações do comportamento/cognição.
Inicialmente a neuropsicologia era praticada por médicos, que estudavam casos
isolados e testavam suas hipóteses localizacionistas através da observação clínica
e de tarefas psicologicamente rudimentares, criadas ad hoc. A partir de 1865, os estudos de Paul Broca sobre a
representação cerebral da linguagem no hemisfério esquerdo fundaram a
disciplina e constituem uma grande influência até os dias de hoje para a Neuropsicologia.
Ainda, profissionais de reabilitação das lesões cerebrais/comunicação no
pós-guerra (Décadas de 1930 e 1940) tratavam dos pacientes com sequelas,
especialmente de linguagem (afasias). Por conta destes fatores, a
Neuropsicologia era denominada Afasiologia. A partir dos anos 1930 iniciou-se
de forma mais sistemática a colaboração interdisciplinar. A contribuição de
outras disciplinas levou a um refinamento da caracterização dos processos
neuropsicológicos, p. ex., através do uso de métodos psicométricos e de
análises linguísticas (Alajouanine, Ombredane & Durand, 1939, McBryde &
Weisenburg, 1935, Ombredane, 1929). Um marco da interdisciplinaridade foi a
publicação em 1939 da obra Le syndrome de
désintégration phonétique dans l’aphasie, cujos autores eram um neurologista (Alajouanine), uma linguista (Durand) e um psicólogo (Ombredane).
A neuropsicologia ganhou
novo impulso interdisciplinar nos anos 1960 com a chamada Revolução Cognitiva (Gardner,
1996). Os modelos de processamento de informação e a abordagem
quase-experimental de casos isolados permitiram que as hipóteses de correlação
estrutura-função fossem formuladas de forma mais precisa e empiricamente
testável, contribuindo para aumentar seu poder descritivo e validade preditiva.
No entanto, o ímpeto interdisciplinar foi adiante. Desde meados dos anos 1990,
uma nova e poderosa ferramenta tecnológica/metodológica, a neuroimagem
funcional (especialmente a fMRI) permite que os modelos cognitivos (de
processamento de informação ou PPD/PDP) e seus correlatos neurais sejam
testados in vivo e de forma
não-invasiva. O escopo interdisciplinar foi então expandido e surgiu a Neurociência
Cognitiva (Posner & DiGirolamo, 2000).
A Neuropsicologia que já
era interdisciplinar, congregando esforços de psicólogos, médicos,
fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, linguistas, etc., passou a fazer parte
de um programa mais amplo de pesquisa e clínica, a Ciência Cognitiva, a qual abarca
um leque de especialistas que vai da Física e Informática à Filosofia e Antropologia.
A trajetória da Neuropsicologia e da Neurociência Cognitiva são ilustrativas de
um movimento que vai da multidisciplinaridade (diferentes profissionais
trabalhando em equipe) para a interdisciplinaridade (diferentes profissionais
trabalhando com objetivos comuns) e desta para a transdisciplinaridade, na qual
um fundo comum de pressuposições teóricas e métodos é compartilhado por
profissionais de diferentes extrações formativas (Drechsler, 1999).
E quais são as
características mais evoluídas e transdisciplinares da Neuropsicologia? Uma das
bases teóricas mais sólidas da Neuropsicologia é o pressuposto da modularidade.
O cerne metodológico é a avaliação das correlações anátomo-clínicas, ou
estrutura-função no jargão contemporâneo, e das dissociações entre funções e
tarefas. Mas a Neuropsicologia ainda não evoluiu a ponto de se constituir em
uma faculdade autônoma. Pode-se fazer uma analogia entre o estado atual da
neuropsicologia com a evolução do Pokémon Pikachu. O personagem se originou de
uma forma bebê denominada Pichu e hesita em evoluir para Raiochu. A Neuropsicologia
ainda é aprendida na pós-graduação e praticada por profissionais oriundos de
faculdades distintas e congregados em diferentes corporações de artes e
ofícios. A situação é paradoxal. Se por um lado, o desenvolvimento é
gigantesco, por outro ainda não foi o suficiente para lhe conferir a força e o
status de uma corporação própria, resguardando-a do conflito das faculdades[1].
O conflito das faculdades
se instala no momento em que uma corporação de artes e ofícios declara que a Neuropsicologia
lhe pertence. E que profissionais de outras áreas não podem “brincar” com ela.
Quando uma corporação diz assim: “só os meus afiliados podem utilizar instrumentos
de exame dos processos neuropsicológicos, mesmo nos casos em que esses outros profissionais
de outras áreas tenham sido os responsáveis pelas pesquisas de normatização e validação
de tais instrumentos”. Além de ignorar a evolução histórica e a natureza inter-
e transdisciplinar do conhecimento neuropsicológico, esta posição negligencia a
longa tradição de exame do estado mental em Neurologia e Psiquiatria (Hodges,
1994, Strub & Black, 1993) e da linguagem e funções cognitivas relacionadas
em Fonoaudiologia. A qual, em última análise, remonta ao próprio Hipócrates (Todman,
2008). Profissionais de Medicina, fonoaudiologia, Terapia Ocupacional e outras
profissões trabalham no seu dia a dia com pacientes que precisam ter seu estado
mental avaliado a partir de uma perspectiva neuropsicológica. Perspectiva esta
que se baseia no conhecimento cumulativo sobre correlação anátomo-clínica e não
primordialmente em construtos psicológicos. Nós vivemos em uma época de
assistência à saúde baseada em evidências, na qual a validação e normatização
de procedimentos diagnósticos é um imperativo ético (Porter, 2004). Os
profissionais de saúde não têm apenas o direito, eles têm o dever de validar
seus instrumentos avaliativos/diagnósticos.
O Conselho Federal de
Psicologia tem se pronunciado de maneira reiterada no sentido de tentar impedir
que profissionais de outras áreas utilizem os instrumentos de diagnóstico
validados e normatizados por esses mesmo profissionais de outras áreas que não
a psicologia. Se este conselho defende que sua legislação contempla os
trabalhos com todas as funções neuropsicológicas, é bem verdade que a
legislação de outras profissões da área da saúde também contempla. É de se
perguntar se os melhores interesses dos pacientes neuropsicológicos estão sendo
contemplados com esta atitude. Também pode-se perguntar se os próprios
interesses corporativos dos psicólogos são atendidos por esta resolução. Que
benefícios podem auferir os psicólogos do isolamento de outros profissionais
que atuam no campo interdisciplinar da Neuropsicologia, atendendo crianças,
adultos e idosos com dificuldades de aprendizagem, transtornos de
desenvolvimento e doenças neurológicas e psiquiátricas? Além de refletir
esforços interdisciplinares, o interesse atual por Neuropsicologia e Neurociência
Cognitiva pode ser tomado como uma medida do sucesso da própria Psicologia. Do
exame sistemático e validado do estado mental pelos mais diferentes
profissionais resultará um aumento e não uma diminuição da demanda pelos
serviços dos profissionais de Psicologia.
A atual disputa das
faculdades que vivenciamos no Brasil é reminiscente de uma mais antiga, que foi
objeto do último livro publicado por Immanuel Kant, em 1798 (Kant, 1993). Na
obra intitulada “O conflito das faculdades”, Kant procura salientar a
importância da Filosofia frente às faculdades mais estabelecidas, como a
Teologia, o Direito e a Medicina. Aos interesses pragmáticos dos quais derivava
o poder das faculdades mais estabelecidas à época, Kant contrapôs a defesa da
racionalidade e da busca da verdade, as quais ele associava à Filosofia.
Sabidamente, Kant era um idealista e no mundo contemporâneo prevalecem os
interesses pragmáticos. Não seria o caso então de nos perguntarmos, para além
dos interesses corporativos, como os interesses pragmáticos dos pacientes
neuropsicológicos serão mais bem atendidos?
Referências
Alajouanine T., Ombredane A.
& Durand M. (1939). Le syndrome de désintégration
phonétique dans l’aphasie. Paris: Masson.
Drechsler, R. (1999).
Interdisziplinäre Teamarbeit in der Neurorehabilitation. In P. Frommelt &
H. Grötzbach (Orgs.) Neurorehabilitation.
Grundlagen, Praxis, Dokimentation (pp. 54-64). Berlin: Blackwell.
Gardner, H. (1996). A nova ciência da mente. Uma história da
revolução cognitiva. São Paulo: EDUSP.
Gruber, H. E. &
Wallace, D. B. (2001), Creative work. The
case of Charles Darwin. American
Psychologist, 56, 346-349.
Hodges,
J. R. (1994). Cognitive assessment for
clinicians. Oxford: Oxford University Press.
Kant, I. (1993). O conflito das faculdades. Lisboa:
Edições 70.
McBride, K. & Weisenburg, T. (1935). Aphasia.
New York: Commonwealth Fund.
Ombredane, A. G. (1929). Les
troubles mentaux de la sclérose en plaques. Paris: PUF.
Porter, R. (2004). Das tripas coração. Uma breve história da medicina. Rio de Janeiro:
Record.
Posner, M. I., &
DiGirolamo, G. J. (2000). Cognitive neuroscience: origins and promise. Psychological Bulletin, 126, 873-889.
Simonton, D. K. (2002). A origem do gênio. Perspectivas darwinianas
sobre a criatividade. Rio de
Janeiro: Record.
Strub, R. L. & Black,
F. W. (1993). The mental status
examination in neurology (3rd. ed.). Philadelphia: Davis.
Todman, D. (2008). Epilepsy in the Graeco-Roman world: Hippocratic
medicine and Asklepian temple medicine compared. Journal of the History of Neuroscience, 17, 435-441.
[1]
É preciso salientar aqui, entretanto, que não estamos defendendo que a
Neuropsicologia se constitua em uma faculdade autônoma. Apenas registramos o
fato de que não é.