Não percam mais uma atividade do II Congresso Mineiro de Neuropsicologia, que
acontecerá entre 17 e 20 de abril de 2013 na UFMG. A Andressa Moreira Antunes,
pesquisadora do Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND-UFMG)
vai falar sobre funcionalidade na síndrome de Turner, a partir da perspectiva
biopsicossocial da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade
e Saúde (CIF-OMS).
A síndrome de Turner é uma condição decorrente de alterações
do segundo cromossoma sexual feminino, cromossoma X. Pode ser causada por uma
deleção completa ou parcial de um cromossoma X, bem como por outros tipos de
anomalias, tais como translocações ou cromossoma X em anel. As anomalias podem
estar presentes apenas em uma fracção das células (mosaicismo). Além do fenótipo somático, caracterizado por
diversos graus de baixa estatura, alterações hormonais, malformações somáticas
etc., o fenótipo cognitivo e comportamental é bastante característico (vide
revisões em Kesler, 2007, Ross et al.,
2000). Um dos achados mais salientes é uma discrepância entre o QI verbal e o
QI de execução. Estas pessoas apresentam geralmente uma inteligência verbal normal
associada a dificuldades cognitivas específicas no domínio visoespacial,
funções executivas e na aprendizagem da matemática. Dificuldades relacionadas a
timidez e ansiedade social são também classicamente mencionadas (Kesler, 2007, Ross
et al., 2000).
Para compreender o interesse pela funcionalidade na síndrome
de Turner podemos começar por uma historinha acontecida há quase trinta anos. Um
professor estava falando sobre deficiência intelectual numa daquelas
disciplinas introdutórias à psicologia (PSY
101) nos Estados Unidos, com centenas de alunos em um auditório. Uma moça
levantou o dedo e disse que tinha um erro no livro escrito e adotado pelo
professor. Lá no livro dizia que a síndrome de Turner seria uma causa de
deficiência intelectual. A moça chamou atenção para o fato de que ela tinha
síndrome de Turner e estava na faculdade. Ela acabou passando com conceito A. O
professor teve que corrigir o livro na edição seguinte.
Se isto já era verdade há quase trinta anos atrás, imaginem hoje
em dia. Mas não é verdade apenas para a síndrome de Turner. É verdade para
todas as síndromes genéticas e para os fenômenos biológicos de um modo em
geral. Uma característica distintiva dos fenômenos biológicos é a variabilidade
interindividual. E isto vale também para as síndromes genéticas. Não existem
dois indivíduos iguais. A variabilidade é imensa e este é um dos principais
motivos pelos quais é muito difícil estabelecer um diagnóstico. Os
profissionais fixam na cabeça um protótipo e só pensam no diagnóstico quando os
sinais e sintomas são muito evidentes. Isto contribui para que a prevalência
das síndromes genéticas pareça ser muito menor do que realmente é. Um grande
número de casos simplesmente não é diagnosticado. E como não são
diagnosticados, os indivíduos afetados, suas famílias e suas educadoras não se
beneficiam dos conhecimentos advindos do diagnóstico. A síndrome de Turner (e
outras) constituem um fator de risco para deficiência intelectual. Mas nem
todos os indivíduos vão ser afetados e no mesmo grau. E a probabilidade de
realizar um diagnóstico é menor quando o indivíduo não apresenta malformações
graves ou deficiência intelectual.
Esta questão da variabilidade é mais verdade ainda hoje, e principalmente
no que se refere à síndrome de Turner. Uma parte da variabilidade fenotípica é
relacionada à própria variabilidade dos mecanismos genéticos. Diferentes tipos
de alterações cromossômicas, tais com mosaicismo e translocações, causam
manifestações fenotípicas distintas. Mas tem também um fator adicional. A
introdução do tratamento com hormônio de crescimento e estrógenos mudou
completamente o panorama (Davenport et al., 2007). O tratamento permite uma
normalização da aparência física, principalmente, no que se refere à estatura,
mas também no desenvolvimento de características sexuais secundárias. Uma
grande questão neuropsicológica atual é saber até que ponto o tratamento é
eficiente na reversão no perfil específico de dificuldades de aprendizagem
(Davenport, 2012). Ao invés de apresentarem deficiência intelectual, a maioria
das pessoas afetadas tem dificuldades de aprendizagem, relacionadas a um perfil
discrepante de habilidades. Como já foi mencionado, as dificuldades maiores são
observadas nas áreas da cognição visoespacial e a na aprendizagem da
matemática. Considerando que a frequência
de síndrome de Turner em nativivas é de 1/2000 (Davenport et al., 2007) e
que expectativa de vida vem aumentando progressivamente,
podemos ficar imaginando quantas meninas que lutam com dificuldades de
aprendizagem da matemática apresentam uma síndrome de Turner que não foi
diagnosticada.
O tratamento medicamentoso resulta em benefícios cognitivos?
Nós ainda não temos informações suficientes para responder de forma definitiva a
esta questão (Davenport, 2012). Mas há razão para otimismo. Os estudos sobre
funcionalidade, atividades e participação indicam atualmente que para a maioria
das portadoras de síndrome de Turner o prognóstico é muito bom (McCauley et
al., 2001, Rolstad et al., 2007). Há uma perspectiva real de normalização. De
levar uma vida produtiva e feliz, de realizar o potencial de desenvolvimento. Daí
a importância do diagnóstico. Somente o diagnóstico, realizado o mais
precocemente possível, permite identificar as eventuais dificuldades, instituir
o tratamento e orientar as famílias e educadoras. Sem diagnóstico, sem chance.
E o diagnóstico deve ser o mais amplo possível. O
diagnóstico não se deve limitar ao estabelecimento da etiologia e comorbidades.
Nem restringir-se aos déficits cognitivos. O diagnóstico precisa abranger
também o impacto da condição de saúde sobre os diversos níveis de funcionamento
do indivíduo. Aí é que entra a Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde (CIF), proposta pela Organização Mundial da Saúde (Andrade
et al., 2009, Haase et al., 2012). O modelo biopsicossocial subjacente à CIF
permite avaliar o impacto das condições de saúde de forma mais abrangente,
integrando informações sobre a estrutura e função do organismo com a capacidade
funcional (atividades e participação), os facilitadores e barreiras ambientais
e as características subjetivas do
indivíduo. Estudos utilizando o referencial da CIF são importantes para que
compreendamos melhor, p. ex., como aspectos relacionados ao fenótipo cognitivo
e comportamental repercutem na vida e o que pode ser feito para prevenir e
melhorar, para potencializar o desenvolvimento.
Como foi dito acima, no caso da síndrome de Turner as
notícias são muito boas. Vejamos o caso do funcionamento social. Dificuldades
sociais, caracterizadas como timidez e ansiedade social foram frequentemente descritas
em pessoas com a síndrome de Turner, as quais podem estar relacionadas a
alterações anátomo-funcionais na amígdala e circuitos conexos (Burnett et al.,
2010). No entanto, estas dificuldades não aparecem em todas as pessoas afetadas
e muitas vezes são detectáveis apenas através de registros psicofisiológicos ou
de imagem neurofuncional. Um fator de risco é relacionado ao fenômeno de
imprinting, ou origem parental do material genético. O risco de dificuldades
sociais é maior nos casos em que o cromossoma X conservado é de origem materna
(Skuse et al., 1997). O mesmo fenômeno pode ocorrer em relação às habilidades
cognitivas, tais como a aprendizagem da matemática (Ergür et al., 2008). Estudos
com grupos de mostram por outro lado, que os níveis de adaptação psicossocial
nas pacientes de Turner são normais (McCauley et al., 2001). A prevalência de
transtornos psiquiátricos não é diferente daquela observada na população em
geral. Ou seja, a variabilidade interindividual é muito grande. Diversos
fatores influenciam o fenótipo. A síndrome de Turner pode ser considerada como
um fator de risco para déficits cognitivos e dificuldades de adaptação
psicossocial Mas um grande contingente de pacientes funciona muito bem.
Uma medida das possibilidades é dada por um estudo conduzido
na Suécia com 57 mulheres portadoras de síndrome de Turner com idade média de
36 anos (Rolstad et al., 2007). Dentre as que tinham relacionamentos conjugais,
a atividade sexual tinha se iniciado com apenas 2 a 3 anos de atraso em relação
à média da população em geral. Trinta e cinco por cento das participantes
estavam casadas ou tinham um relacionamento conjugal estável. E majoritariamente
estas mulheres relataram satisfação com os relacionamentos conjugais. Também
não diferiam da população em geral quanto à expressão do desejo sexual e frequência
da atividade sexual. Além da variabilidade genética, certamente uma grande
percentagem da variância fenotípica é explicada por fatores ambientais (Stochholm
et al., 2012). O acesso a serviços diagnósticos e terapêuticos, a qualidade da
educação e do aconselhamento psicológico, o funcionamento e incentivo fornecido
pela família etc., todos estes são fatores que influenciam o prognóstico, tanto
no que se refere à mortalidade, morbidade e funcionalidade. A distribuição do diagnóstico da síndrome de
Turner apresenta uma distribuição bimodal em relação à idade (Batch, 2002). O
primeiro pico ocorre logo após o nascimento, quando são identificados os casos
mais graves. Um segundo pico ocorre na
adolescência, em função da ausência do desenvolvimento de características
sexuais secundárias. Um grande desafio atual é identificar as meninas
portadoras da síndrome na idade escolar. Numa época da vida na qual elas ainda
possam se beneficiar mais significativamente da terapia normal e numa época na
qual elas também possa se beneficiar do diagnóstico e intervenções para
dificuldades de aprendizagem.
Referências
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