Sunday, October 25, 2020

A GUERRA DA LEITURA CONTINUA


Estamos próximos da publicação do Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (RENABE). Vocês não perdem por esperar. O RENABE vai bombar. Foi redigido por um grupo de pesquisadores brasileiros dos mais destacados na área de alfabetização, coordenados pelos Profs. Renan Sargiani e Josiane Toledo. O RENABE sistematiza a fundamentação científica e procurar estabelecer diretrizes consensuais que fundamentam a Política Nacional de Alfabetização proposta pelo Prof. Carlos Nadalim. Tive a honra de contribuir revisando a conexão entre desenvolvimento da literacia e numeracia. 


Nesse meio tempo, enquanto o RENABE não vem, vou dar a dica de um artigo muito interessante de Susan Brady (2020), publicado no início do ano. A guerra da leitura continua. Não morre nunca. Parece a Hidra. De um lado os proponentes de uma alfabetização baseada em evidências, enfatizando a instrução explícita no princípio alfabético (conhecimento das letras, dos sons das lertras, relações entre letras e sons, consciência fonêmica etc.). A ciência da leitura foi e continua sendo muito influenciada pela visão simples da leitura. Ou seja, de que a decodificação visual das palavras isoladas é um pré-requisito importante para a compreensão leitora.


Do outro lado tem o povo pedagógico que considera ser a leitura uma habilidade natural do ser humano, um desenvolvimento da linguagem oral, a qual é adquirida de forma contextualizada e significativa. Se essa teoria fosse verdadeiras, todas as crianças de todas as culturas aprenderiam a ler. Não haveria necessidade de professoras. E os consultórios dos neuropsicólogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos se esvaziariam. Os consultórios desses profissionais todos são movidos pelo fracasso da instrução.


Legenda: Adulto tentando "ensinar" a criança a ler, no contexto e um relacionamento muito significativo, com muito carinho e consideração pelo significado, mas sem explicar para a criança como é que o código escrito funciona.


É difícil entender o porquê da oposição ferrenha contra a ciência da leitura. Suspeito que as razões sejam ideológicas. Uma corrente hegemônica está mais interessada em doutrinar do que em instruir. Brady (2020) não fala nada sobre isso. Mas ela aponta três estratégias de resistência contra a ciência da leitura: a) Corpo mole (“tokenism”), que consiste em fazer de conta que está adotando a prática baseada em evidências mas continua tocando o businesse as usual; b) Bloqueio à formação, que consiste em privar os graduandos de pedagogia do acesso à metodologia científica; c) Co-optação e distorção, que consiste em criar uma nova terminologia, supostamente incorporando evidências e/ou distorcer as afirmações ou fatos. Vale a pena ler esse artigo.


Não sei dizer qual é a estratégia mais perniciosa. Mas todas elas são usadas no Brasil. A BNCC faz de conta que incorpora as evidências científicas, mas continua no rame-rame. O bloqueio à ciêncian os cursos de pedagogia é feroz. As distorções talvez sejam o aspecto mais nefasto. A discussão sempre é levada para o lado da política. De um lado tem a turma do Mal, os. Cientistas malignos que são contra a educação pública, gratuita e de qualidade e defendem a privatização do ensino, elitização etc. Do outro lado, os ungidos pelo Bem, discípulos do patrono do analfabetismo funcional brasileiro.


A estratégia de distorção é periodicamente empregada na pedagogia. Em 2004, Richard Mayer chamou a atenção para o fato de que a história da pedagogia nos últimos cento e poucos anos pode ser descrita como a proposição de uma doutrrina romântica, “progressista”, a qual é invariavelmente refutada pelas evidências, mas como a Hidra, insiste em renascer sob os mais diversos nomes. Muda-se o rótulo, o vinho continua sempre o mesmo. E a guerra da leitura não termina.





REFERÊNCIAS


Brady, S. (2020). Strategies used in education for resisting the evidence and implications of the science of reading. The Reading League Journal, 1 (1), 33-40.


Mayer, R. E. (2004). Should there be a three-strikes rule against pure discovery learning ?. American Psychologist, 59 (1), 14-19.


No comments:

Post a Comment