Saturday, October 24, 2020

QUEM CONTA UM CONTO, AUMENTA UM PONTO


Há um ano aconteceu a Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (CONABE). Os vídeos estão disponíveis no YouTube. A CONABE foi uma iniciativa inédita na educação brasileira. A CONABE reuniu especialistas do Brasil e do Mundo para discutir os fundamentos científicos de uma política nacional de alfabetização (PNA).


Eu trabalho com dificuldades de aprendizagem escolar desde 1978, quando fui estagiar nas enfermarias de neurologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Aprendi a fazer o Exame Neurológico Evolutivo (ENE). Aprendi também que tem um negócio chamado de dislexia do desenvolvimento. Só que, no Brasil àquela época era muito difícil identificar quem tinha e quem não tinha dislexia porque a qualidade do ensino oferecido era baixíssima. A maioria das crianças não se alfabetizava simplesmente porque não era ensinada a ler e a escrever. Faziam o quê na escola?

 

Lá já se vão mais de 40 anos. Não mudou nada. As crianças continuam não se alfabetizando na escola. Cansei de atender adolescentes de 15 anos que estavam concluindo o ensino fundamental e eram analfabetos. Quer dizer, esses jovens passavam de um ano para outro e... continuavam analfabetos. Aparentemente ninguém, professora, pedagoga, diretora etc.,  jamais havia se preocupado em alfabetizá-los.

 

Nesses 40 anos nenhum governo tentou fazer qualquer coisa para alfabetizar as crianças brasileiras. Ao contrário. Parece que estavam mais interessados em doutrinar ideologicamente as crianças do que ensinar-lhes a ler, escrever e fazer contas. Nesse meio tempo o Paulo Freire foi nomeado patrono do analfabetismo funcional brasileiro. Esse processo todo culminou na famigerada BNCC, que abriu mão, explicitamente, de alfabetizar as crianças.

 

Até que, em 2019 foi lançada a Política Nacional de Alfabetização, seguida da CONABE, para consolidar sua fundamentação evidenciaria. Tive a honra de participar da CONABE junto com colegas ilustres de diversas partes do Brasil e do mundo. Em 40 anos, nenhum governo havia me perguntado o que eu achava ou deixava de achar sobre educação. Apesar de eu descascar na clínica o abacaxi resultante do fracasso da pedagogia brasileira.

 

A partir da CONABE foi criado um grupo de trabalho que trabalhou intensamente durante um ano e redigiu um documento denominado Relatório Nacional de Alfabetização Baseado em Evidências (RENABE). O RENABE será divulgado nas próximas semanas. Aguardem. Alguns dos melhores especialistas do Brasil deram o melhor de si para revisar a literatura empírica e procurar estabelecer algumas diretrizes consensuais, fundamentadas em evidências. Como diz o nome.

 

Certamente, a PNA, CONABE e o RENABE podem e devem ser criticados. Certamente poderiam ser melhores e deverão ser aperfeiçoados. Mas foi o que conseguimos fazer, por enquanto. Já foi muito. Considerando que não havia nada. Ao menos nada sério e cientificamente fundamentado.

 

Críticas sempre são bem vindas. O only game in town na ciência digna do nome é buscar evidências contraditórias,  falsificando hipóteses e modelos teóricos. Mas muitas críticas são injustas, destrutivas e revelam mais o despeito dos seus formuladores. Revelam a inveja sentida pelos que não fazem nada têm de alguém que faz algo, por mais modesto que esse algo seja.

Uma das críticas (injustas) foi de que a ênfase na alfabetização preconizada  pela PNA, supostamente, reduziria o “letramento” ao método fônico. A realidade demonstrou que essa crítica era desonesta. Foram criados os programas Tempo de Aprender e Contapra Mim. O programa Tempo de Aprender oferece formação continuada remota para professores do ciclo de alfabetização. Que eu saiba, mais de 4000 municípios já aderiram de forma voluntária e algumas centenas de milhares de professores cursaram o programa.

 

Mas quero conversar aqui sobre o Conta pra Mim. As evidências científicas sobre aquisição de literacia e numeracia se acumulam avalassadoramente mostrando a importância das atividades culturais informais na família para a educação. As atividades de contar histórias para as crianças pequenas talvez não sejam tão importantes para aprender a ler as palavras. Mas são fundamentais para adquirir vocabulário e desenvolver os esquemas textuais que permitem a compreensão leitora. E, portanto, a habilidade de aprender pela leitura.

 

Conheço os colegas e colaboraram na elaboração do Conta para Mim e li muitos dos documentos. O negócio é genial. É um ovo de Colombo, no sentido de que é algo muito simples que ninguém havia feito antes. E tudo isso foi feito em menos de dois anos. Quer dizer, muita gente teve oportunidade de fazer alguma coisa durante mais de 30 anos. Desde a Constituição de 1988. E não fez nada.

 

Daí alguém faz muito em dois anos e vêm as críticas maldosas e invejosas. Como a crítica de que a PNA reduziria a literacia ao método fônico não se sustentou mais no momento em que apareceu o Conta pra Mim, a alternativa foi criticar este último. Um grupo de mais de 3000 daqueles “especialistas” que frequentam os programas da Globolixo resolveu criticar o Conta pra Mim porque o programa adapta as histórias.

 

Essa é outra crítica burra, daquelas que acaba virando tiro no pé. Vejamos. Antes o governo não fornecia nada e agora está fornecendo histórias adaptadas. Qual é o pó? Será que só se pode adaptar histórias para torná-las politicamente corretas e afinadas com o ideário esquerdista?

 

Mas, adaptar histórias constitui um problema em si? Claro que não sou nenhum especialista em literatura infantil. Graças a Deus. Não preciso usar a linguagem empolada dessa gente, cheia bakhtinismos e foucaltismos. Mas eu sei o suficiente para me dar conta de que isso é uma cretinice. Sei que quem conta um conto, aumenta um ponto. Vejam o caso das centenas de versões dos mitos gregos. Sei também que a defesa do literalismo textual se reveste, em grande parte, de uma dose de totalitarismo cultural, de cerceamente da própria atividade literária.

 

Sei também da minha experiência pessoal. Que nesses tempos de relativismo cultural, interseccionalismo e subjetivismo narcisista parece ser a única que conta. Lá na Colônia, onde me criei, não tinha muito acesso à Literatura. Em Tuparendi não tinha nem banca de jornais, quanto mais livraria. Em Santa Rosa tinha uma banca de jornais e um bazar chamado Organizações Ypiranga. Eu lia o que me caia nas mãos.

 

Comecei lendo o Monteiro Lobato, que havia sido a iniciação da minha mãe. Meu pai era da época da Seleta em Prosa e Verso. Até eu precisar estudar de verdade para o Admissão ao Ginásio, nas vésperas das provas eu me deitava na rede e lia a Aritmética da Emília, Emília no País da Gramática, Geografia de Dona Benta, História do Mundo para Crianças etc. No Admissão ao Ginásio acabou a farra. Tive que ralar pela primeira vez.

 

Eu adorava ler umas adaptações de diversos tipos de livro de folclore, literatura, história etc., os quais misturavam texto com história em quadrinhos. Primeiro eu lia as histórias em quadrinho. Ficava curioso. Queria mais. O recurso então era ler o texto. Lembro-me de um livro sobre o Júlio César. Aprendi que, às margens do Rubicão, ele teria dito “Alea jacta est”. Durante meses o Júlio César foi meu herói. Foi assim também que tomei conhecimento da História em duas Cidades. Foi muito mais tarde que descobri que o Edmund Burke havia sentido um horror semelhante ao meu com as atrocidades cometidas na Revolução Francesa. e em todas que vieram depois, emendo eu.Também ia com as amigas da minha irmã ler fotonovelas, tomar coca-cola e comer sonhos no Bar do Roos. Deve ter sido lá que começou a minha ceva.

 

Um advogado amigo do meu pai, o Dr. Ney Goulart, morava em Santa Rosa. Nós éramos fascinados com os filhos dele, Maria Clarice e José César. Eles eram um pouco mais velhos do que eu e meus irmãos e tinham uma turma mais urbana de amigos. Envolviam-se com atividades diferentes daquelas usuais lá no mato e na roça de Tuparendi. O José César tinha muito orgulho de uma coleção de livros de detetives que ele guardava no fundo do seu guarda-roupa. Os mais cobiçados eram os da Brigitte Monfort. Eu pegava emprestado e lia um depois do outro. Eram proibidos para menores de 16 anos. Evidentemente, àquela época eu ainda estava longe dos 16. Isso só redobrava o prazer.

 

Houve um sábado que estávamos numa festa de aniversário na Casa da Maria Clarice e do José César. Não sei porque cargas d’água fui lá no Ypiranga. No mostruário tinha um o Livro de Ouro da Mitologia, de Thomas Bulfinch. Eu já tinha lido o Monteiro Lobato. Meu preferido eram os Doze Trabalhos de Hércules. Comecei a folhear o livro. Fiquei doidinho. Voltei correndo para a festa e pussuqueei a minha mãe até ela convencer o meu pai a me dar o dinheiro para comprar o livro. Fiquei vários meses envolvido e fantasiando com o Livro de Ouro da Mitologia. Foi um achado.

 

Tinha também as coleções de folhetos da Abril Cultural: Os Imortais da Literatura Universal; Personagens da Nossa História; Grandes Personagens da História Universal. A Abril Cultural também contribuiu para educar o meu gosto musical através dos Grandes Compositores da Música Clássica, As Grandes Óperas, História da Música Popular Brasileira. Foi daí que peguei a mania da ópera.

 

Até eu ir para Porto Alegre, estudar no Anchieta, esse era o meu viver. Esse era o meu ler. No Anchieta pude conviver com jovens de famílias muito mais intelectualizadas do que a minha. Tive oportunidade de me fascinar com as aulas de literatura do Prof. Cláudio Moreno. Aprendi que tinha um mundo da cultura superior, ao qual eu não tinha acesso lá na Colônia. Aprendi que, para além do gosto, havia critérios para avaliar a qualidade literária de uma obra. Havia uma hierarquia no panteão. Virei freguês das livrarias do Globo, Kosmos, Sulina, Lima e Palmarinca. Virei freguês das atividades culturais do Instituto Goethe e dos concertos e recitais da ProArte e OSPA. Virei rato de cinemateca.

 

Descobri que tinha um monte de coisa a cujos originais eu não havia tido acesso. Descobri que tinha muito mais coisa para ler do que eu sonhara. Foi uma epifania. O estado anterior a essa epifania provavelmente era muito semelhante ao de uma adolescente vinda no interior de Minas que atendi.

 

A menina foi encaminhada por suspeita de “dislexia” e “TDAH”. Conversei com os pais e fiquei fascinado quando fui conversar com ela. Ela era uma gracinha. Falava pelos cotovelos e lia tudo que lhe caísse nas mãos. Seu discurso era encantador. Revelava uma compreensão parcial do mundo, pueril, ingênua porém oriunda das suas reflexões mais profundas. Genuína. Não tive como não me identificar profundamente com ela. Solicitei um teste de QI e deu na tampa: 145. A menina era super-dotada e lascaram o diagnóstico de “dislexia”, provavelmente porque muitas das suas convicções revelavam uma compreensão parcial da realidade, e “TDAH”, provavelmente porque tinha muito a dizer e falava pelos cotovelos.

 

Resumindo a ópera. Os jovens brasileiros recebem uma “educação” que quando consegue alfabetizá-los, produz analfabetos funcionais. Não conseguem compreender o que lêem e não conseguem usar a leitura para aprender. Porisso mesmo não adquirem gosto pela leitura e não vão pra frente na vida. Daí vem um povo e fica torcendo o nariz para um programa do governo que oferece uma oportunidade para as crianças adquirirem gosto pela leitura. Não passa de um bando de pernósticos que deseja, no seu mais íntimo, evitar que a plebe coma do biscoito fino da literatura.

No comments:

Post a Comment