Desde
a virada do Século XIX para o Século XX a pedagogia vem crescentemente
enfatizando o pensamento crítico como um dos principais objetivos da educação
(Christodoulou, 2014, halpern, 2013, Hirsch, 2006, Sweller et al., 2011). O objetivo
declarado da educação é formar cidadãos que sejam capazes de refletir criticamente
e intervir de forma ética e socialmente construtiva sobre sua realidade. A mera
transferência de conhecimento ou aquisição
mecânica de habilidades básicas de leitura, escrita e aritmética não são garantia
de consecução dos nobres objetivos da educação.
O
reverso da moeda, que muitos educadores parecem não perceber, é que sem algumas
ferramentas culturais básica e muito simples, não é possível a construção e o
exercício da pedagogia. Apenas memorizar a tabuada não é suficiente para
resolver os problemas aritméticos colocados no dia a dia, tasic omo comparar
preços expressos em diferentes razões ou calcular juros. Mas apenas compreender
os princípios subjacentes, sem memorizar, não permite aplicar o conhecimento na
prática cotidiana. Sem memorização dos fatos aritméticos também não é possível evoluir para
formas mais complexas de matemática.
A
compreensão e a decoreba correspondem a dois tipos de conhecimento, os quais são
complementares e não antagônicos (Baroody, 2003). O conhecimento procedimental
e factual somente é adquirido após muito exercício e prática, sendo
automatizado e facilmente acessível. Mas é relativamente inflexível e seu uso
restringe-se a situações previamente aprendidas. Situações novas e inesperadas
requerem um conhecimento mais adaptativo e flexível, o conhecimento conceitual.
Os dois tipos são complementares. Memorizar os fatos sem compreender não aditanta
nada. Mas compreender sem memorizar os fatos também é de pouca serventia.
As
evidências oriundas da ciência e neurociência cognitiva ajudam a compreender
como se processa a aprendizagem de habilidades escolares básicas. Foi
reconhecida, p. ex., a importância do processamento fonológico para a
aprendizagem da leitura de palavras em sistemas ortográficos, a importância do
vocabulário e conhecimento de mundo para
a compreensão textual e do senso numérico para a aprendizagem da aritmética
etc.
A
psicologia cognitiva também avançou muito no estudo dos mecanismos do
pensamento, da tomada de decisão e da metacognição bem cmo das suas limitações e
vieses que tornam o pensamento crítico difícil de ser alcançado (halpern, 2013,
Nisbett, 2015). Mais questionável é a possibilidade de ensinar habilidades de
pensamento crítico, independente do domínio do conhecimento ao qual se aplica
(Christodoulou, 2014, Hirsch, 2006, Sweller et al., 2011).
Essa
é uma discussão antiga na psicologia e pedagogia. Platão acreditava que a
aprendizagem da matemática e da lógica promoveria o pensamento racional. Os currículos
universitários na Idade Média enfatizavam o Trivium, ou seja, o estudo de gramáticalatina,
lógica e retórica. A partir da Renascença os currículos foram para ampliados
para o Quadrivium, incluindo matemática e alguns ramos da ciência. Acrditava-se
que as disciplinas abstratas e difíceisdo Quadrivium, cuja natureza é eminentemente
formal, favoreceriam a construção de habilidades de raciocínio lógico, transferíveis
de um domínio do conhecimento para o outro.
A
transferência de conhecimento de um domíno para o outro ou capacidade de
generalização é a principal limitação dos programas de instrução em pensamento
crítico (Hirsch, 2006). A razão é simples, o raciocínio adequado exige
conhecimento do domínio sobre o qual se aplica. Tente ler a sentença de um juiz
se você for leigo em direito e você rapidamente se convencerá disso. Você
conhece a maioria das palavras e não terá muita dificuldade em analisar a estrutura
sintática das frases. Mas não entenderá patavina porque muitas palavras
representam conceitos específicos do direito e não o significado usual que elas têm na vida cotidiana.
Alguns
programas de instrução em compreensão de textos ensinam os alunos a categorizar
os textos em estilos, explicitando os componentes da gramática textual de cada
tipo. OK. Só que a seguir o aluno aplica esses conhecimentos sobre um texto de
um domínio do conhecimento e a seguir sobre outro e mais outro etc. etc. Não
tem como funcionar. As habilidades de compreensão ou de pensamento crítico
somente podem emergir a partir do momento em que o indivíduo adquire e aprofunda
seu conhecimento sobre um determinado assunto.
Pensamento
crítico e conhecimento andam de mãos dadas. Algumas formas de conhecimento
factual, como vocabulário, e habilidades procedimentais, como a fluência na leitura
de palavras, constituem pré-requisitos para a compreensão leitora.
Um
problema semelhante é enfrentado pelos alunos de pós-graduação. São freqüentes
as manifestações de desespero de alunos de pós-graduação no FaceBook. Sentem-se
assoberbados e alguns até ousam criticar seus orientadores. O problema é que
escrever uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado exige tanto
conhecimento específico do domínio quanto habilidades de pensamento crítico.
Dá
preguiça de ler muitos projetos ou trabalhos de pós-graduação. Alguns alunos
apresentam as informações sem qualquer hierarquia ou relevância para o
argumento que deveriam desenvolver. Muitas
vezes a apresentação dos fatos parece obedecer apenas à ordem cronológica da
leitura realizada pelos alunos. Não há uma análise crítica da relevância das
publicações, nem identificação da seqüência lógica de evolução do conhecimento
relevante para a questão sendo discutida. Outras vezes o aluno se revela
totalmente incapaz de montar um argumento.
Qual
é o remédio? Em primeiro lugar, adquirir conhecimento sobre o assunto. Realizar
uma revisão bibliográfica completa. Identificar toda a literatura pertinente. Reconstruir
a seqüência de evolução do conhecimento e discriminar as contribuições mais
relevantes. Acho que 100 artigos originais está de bom tamanho para um
mestrado. Um doutorado exige a leitura e análise de mais de 200 trabalhos
originais.
Em
segunda lugar é preciso adquirir habilidades de pensamento crítico. Hà toda uma
literatura sobre isso (Halpern, 2013, Nisbett, 2015). Como foi discutido acima,
é questionável a instrução em pensamento crítico se funciona ou não. Mas,
certamente não vai atrapalhar conhecer a anatomia de um argumento (Halpern,
2013). O primeiro passo para fazer uma boa dissertação ou teste é construir um
argumento que tenha lógica. Segundo Halpern, a a anatomia mínima de um
argumento é composta por elementos essenciais e adicionais (vide Figura 1). Os
elementos essenciais são constituídos por uma ou mais premissas e uma ou mais
conseqüências. A conexão lógica entre as premissas e conseqüência é geralmente
do tipo condicional, correspondendo a uma hipótese: “Se A então B”.
Os
elementos adicionais são as pressuposições, as qualificações e os
contra-argumentos. As pressuposições constituem toda a gama de conhecimentos e a
cadeia de raciocínio que conduzem à formulação das premissas. As qualificações
são aquelas situações que restringem a validade do argumento. Os contra-argumentos,
como o nome diz, são as hipóteses alternativas.
Figura
1 – A anatomia de um argumento (cf. Halpern, 2013)
A
validade do argumento é dada pela relação lógica entre as premissas e as conseqüências
(vide Figura 2). Se não existe relação lógica alguma ou se as conseqüências são
sustentadas por umas poucas premissas fracas, o argumento é inválido. O
argumento válido é aquele sustentado por uma premissa única muito poderosa ou
por múltiplas premissas mais fraquinhas que somam sua força.
Figura
2 – Validade de um argumento (cf. Halpern, 2013)
O
exemplo da pós-graduação é muito ilustrativo. A capacidade argumentativa é de
pouco valor se não houver um
conhecimento sólido, específico de domínio. Mas se o conhecimento for fragmentário e não articulado em um argumento válido também
é de pouca serventia. Mesmo o professor mais experiente, com habilidades de
pensamento crítico desenvolvidas em mais alto grau, não se atreveria a escrever
um trabalho acadêmico sobre qualquer área específica sem fazer previamente uma
boa revisão bibliográfica.
Alguns
autores sugerem que o conhecimento é fundamental e que não há como ensinar
habilidades de raciocínio (Hirsch, 2006, Sweller et al., 2011). Segundo esses
autores, os argumentos se auto-organizam a partir do conhecimento. Mesmo que
isso seja verdade, não fará mal nenhum ao aluno de pós-graduação estudar a
literatura sobre pensamento crítico. No mínimo ele vai aprender muita coisa
sobre a psicologia cognitiva do pensamento e da tomada de decisão. No máximo
pode até ajudar na redação da dissertação ou tese.
O
importante na universidade é não negligenciar a revisão bibliográfica. O
importante no ensino fundamental é não negligenciar a aquisição de fatos e
habilidades procedimentais básicas. Pode ser que não seja possível ensinar
habilidades de pensamento critico. Pode ser que sim. O que não é possível é querer
construtir um pensamento crítico sem um sólido alicerce de conhecimento.
Referências
Baroody, A. J. (2003). The development of adaptive
expertise and flexibility: the integration of conceptual and procedural
knowledge. In A. J. Baroody & A.
Dowker (Eds.) The development of arithmetic concepts and skills. Constructing adaptive expertise (pp.
1-33). Mahwah, NJ: Erlbaum.
Christodoulou, D. (2014). Seven myths about education.
London: Routledge / The Curriculum Centre.
Halpern, D. F. (2013). Thought and knowledge.
Introduction to critical thinking (5th. ed.). New York: Psychology Press.
Hirsch, E. D. (2006). The Knowledge Defi cit: Closing
the Shocking Education Gap for American Children. Boston: Houghton Mifflin.
NIsbett, R. E. (2015). Mindware. Tools for smart thinking.
New York: Farrer, Strauss & Giroux.
Sweller, J., Ayres, P., & Kalyuga, S. (2011).
Cognitie load theory. New York: Springer.
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