Tuesday, June 28, 2016

Por que as crianças não aprendem na escola?

A neuropsicologia do desenvolvimento, mais especificamente a neuropsicologia escolar, é uma área do conhecimento teórico e prático que procura identificar e explicar as razões pelas quais algumas crianças não aprendem na escola bem como auxiliar na formulação de estratégias pedagógicas eficazes para superar as dificuldades.

Cerca de 5 a 10% das crianças não aprendem a ler as palavras ou têm dificuldades persistentes com a realização de operações mais simples de adição, subtração e multiplicação e, principalmente, não memorizam os fatos de multiplicação. Quando essas dificuldades mais graves são persistentes e não podem ser explicadas por fatores secundários tais como deficiência neurosensorial ou intelectual, falta de motivação ou estimulação, falta de oportunidade de aprendizagem etc., pode ser realizado um diagnóstico de dislexia ou discalculia do desenvolvimento.

Um contingente populacional um pouco maior - de cerca de 25% nos países do Hemisfério Norte, mas certamente maior nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento – apresenta problemas mais leves porém persistentes até a vida adulta. São adolescentes que conseguem ler as palavras, mas não conseguem compreender textos. Ou que conseguem realizar as três o perações mais básicas e memorizaram os fatos de multiplicação, mas não conseguem aprender a divisão, fracção, decimais, juros etc. Ou a utilizar essas habilidades para resolver os problemas aritméticos que surgem na vida cotidiana e  profissional. As dificuldades de leitura desse contingente maior não corresponde a nenhuma categoria nosológica, sendo referida como analfabetismo funcional. Não existe um termo semelhante em português para as dificuldades em aritmética. Em inglês fala-se em iliteracy e inumeracy.


Os indivíduos com dificuldades persistentes de aprendizagem das habilidades escolares básicas da cidadania, quer sejam mais graves ou mais leves, representam um motivo de preocupação clinica, social e econômica. As informações disponíveis indicam que, como o próprio nome diz, as ferramenteas escolares da cidadania são indispensáveis para a obtenção e manutenção de um emprego e renda. As dificuldades persistentes de aprendizagem escolar constituem também um fator de risco para desadaptação psicossocial, manifestando-se sob a forma de psicopatologia internalizantes nas mulheres e exetrnalizantes nos homens. Na sociedade da informação, as habilidades escolares da população constituem um dos principais ativos econômicos. Fala-se, inclusive, em capital cognitivo. Enquanto o capital cognitivo do Brasil for baixo, o gigante continuará adormecido.

As causas das dificuldades persistentes de aprendizagem são múltiplas e podem ser sistematizadas em fatores relacionados à criança, à família, à escola e ao contexto sócio-cultural mais amplo. O interesse principal da neuropsicologia diz respeito às causas de dificuldades de aprendizagem inerentes ao indivíduo. O neuropsicólogo está interessado em compreender, diagnósticar e ajudar crianças com diagnóstico de dislexia, dislexia, TDAH, autismo, deficiência intelectual etc. que apresentam dificuldades de aprendizagem.

Mas nenhum indivíduo é uma ilha. Até as crianças com dificuldades de aprendizagem vivem em condições ecológicas com potencial para afetar seu desempenho escolar. Apesar de a neuropsicologia estar mais interessada na variabilidade interindividual inerente, causada por transtornos do desenvolvimento ou lesões cerebrais, a dimensão ecológica não pode ser negligenciada no diagnóstico e intervenção. Nesse pequeno ensaio serão discutidos algumas interações entre variáveis neuropsicológicas e ecológicas com potencial para afetar o desempenho escolar.

A discussão será contextualizada na experiência do Ambulatório Número, uma clinica especializada em dificuldades de aprendizagem da aritmética e síndromes genéticas que funciona no Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG (tel. 31/34096295). O Numero é um ambulatório de pesquisa no qual os atendimentos são conduzidos no âmbito de projetos de pesquisa aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG e financiados por entidades públicas de fomeneto à pesquisa, tais como FAPEMIG, CNPq e CAPES. No âmbito das pesquisas são realizadas atividades de formação de recuros humanos (iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado) e atendimento clinico à comunidade carente, incluindo diagnóstico, aconselhamento e intervenções neuropsicológicos.

Os atendimentos no Número são realizados em três fases: 1) Avaliação neuropsicológica breve; 2) Avaliação neuropsicológica geral; e 3) Avaliação das habilidades cognitivo-numéricas e intervenções.

A avaliação neuropsicológica breve é usada como um processo de triagem para  selecionar casos nos quais haja a suspeita diagnóstica de discalculia do desenvolvimento. As mães ou responsáveis realizam uma entrevista clinica e respondem a questionários sobre o comportamento e sintomas psicopatológicos das crianças. As crianças realizam uma bateria neuropsicológica breve consistindo de testes de inteligência e de desempenho escolar padronizado em aritmética e ortografia. Após a realização da avaliação neuropsicológica é fornecido um relatório para as mães, sendo realizada uma entrevista de aconselhamento. Os casos nos quais foi levantada a hipótese de discalculia são indicados para a segunda fase de avaliação. Os outros casos são encaminhados para os recursos diagnósticos e terapêuticos disponíveis na comunidade, sempre que necessário. A avaliação neuropsicológica breve é realizada em uma sessão simultânea com a mãe e com a criança e uma sessão de devolução com a mãe.

A segunda fase de avaliação se estende por quatro a cinco sessões individuais. São selecionadas para a segunda fase as crianças que apresentam quadros sugestivos de discalculia do desenvolvimento. São critérios de exclusão a presença de deficiência intelectual, autismo e transtornos de conduta. A segunda fase compreende uma anamnese mais aprofundada e abrangente com a mãe testes nos domínios cognitivos geral (inteligência, destreza motora, habilidades visoespaciais e visoconstrutivas, memoria de trabalho e funções executivas, leitura e processamento fonológico) e numéricas (senso numérico, transcodificação entre notações numéricas, operações aritméticas simples, fatos aritméticos, problemas aritméticos verbalmente formulados e ansiedade matemática). A segunda fase de avaliação encerra-se novamente com o fornecimento de um relatório e uma entrevista de aconselhamento com a mãe.

A segunda fase de avaliação neuropsicológica permite confirmar o diagnóstico de discalculia do desenvolvimento e identificar comorbidades associadas, tais como ansiedade matemática ou generalizada, hiperatividade, dislexia etc. Os casos identificados como discalculia do desenvolvimento são então encaminhados para a terceira fase do atendimento. O objetivo da terceira fase é caracterizar o subtipo de discalculia do desenvolvimento, orientando assim e iniciando o processo de intervenção.

Na terceira fase, o perfil de habilidades numéricas comprometidas e preservadas é analisado, sendo realizados testes complementares quando necessário. Essa análise mais aprofundada é conduzida à luz dos modelos cognitivo-neuropsicológicos dspóniveis, permitindo caracterizar o desempenho da criança em função de domínios do processamento numérico e da aritmética: senso numérico, processamento simbólico, operações simples ou mais complexas, problemas verbais etc. É possível caracterizar também  os fatores cognitivos potencialmente implicados nas dificuldades tais como problemas motivacionais (ansiedade, impulsividade)ou cognitivos (dificuldades com a memória de trablao e funções executivos, com o senso numérico, com o processamento fonológico, com o processamento visoespacial etc.).

A partir da caracterização mais detalhada do perfil de processos psicológicos comprometidos e preservados é possível formular programas de intervenção para o senso numérico, domínio do sistema arábico, conceitos e procedimentos operacionais, fatos aritméticos e problemas verbais. Os aspectos emocionais e motivacionais são atendidos através de programas de treinamento comportalmental para pais e programas de treinamento cognitivo-comportamental para ansiedade matemática para as crianças.

As intervenções com as crianças e com os pais são formuladas em moldes cognitivo-comportamentais, incluindo ingredientes de análise dos componentes das habilidades e instrução das habilidades mais simples para as mais complexas, uso dew representações concretas de apoio, individualização curricular e aprendizagem dsem erro, exercícios e prática repetidos e distribuídos com feedback, auto-controle e auto-instrução, reforçamento diferencial e auto-reforçamento.

O atendimento no Ambulatório Número procura ser integral,  considernado as necessidades da criança e da família. Mas é fortemente influenciado pelo modelo assistencial de saúde, por utilizar categorias nosológicas e formular diagnósticos. O modelo de saúde tem sido criticado como “medicalização do ensnio” e algumas alternativas foram propostas para resolver as dificuldades de aprendizagem no âmbito da própria escola, sem recorres a profissionais de saúde.

Um dos modelos alternativos preconizados é a resposta à intervenção ou (RTI, response to intervention). O modelo de RTI consiste em empregar instrumentos de rastreio no último ano da educação e identificar crianças que apresentam dificuldades cognitivas sugestivas de problemas ulteriores de aprendizagem, quer seja na leitura quer seja na aritmética. As crianças identificadas como estado sob risco recebem então intervenções pedagógicas adicionais e mais intensivas, sendo posteriormente avaliadas. Se a criança persistir com dificuldades um novo ciclo de intervenção é iniciado e assim ucessivamente.

O modelo de RTI tem vários atrativos, mas também se caracteriza por alguns problemas. As principais vantagens da RTI são a ênfase no diagnóstico e intervenção precoce e o manejo preventivo das dificuldades no próprio âmbito escolar. Sem haver a necessidade de recrutar outros profissionais ou encaminhar a criança para serviços fora da escola.

Uma das dificuldades com a RTI é que o seu sucesso depende da qualidade da intervenção bem como do engajamento das professoras e alunos. O maior problema talvez seja, entretanto, que algumas crianças vão continuar apresentando dificuldades graves e resistentes às intervenções sucessivas. Provavelmente a RTI é adequada para melhorar as dificuldades de crianças cujas dificuldades são mais leves, temporárias e mais relacionadas a causas ambientais do que a fatores intrínsecos. Um grupo reduzido porém significativo de crianças vai permanecer com dificuldades apesar de todos os esforços pedagógicos. São essas as crianças que apresentam transtornos de aprendizagem.

Essas crianças com dificuldades mais graves e persistentes têm um risco maior de apresentar problemas médicos associados, tais como deficiência intelectual, lesões cerebrais, síndromes genéticas, transtornos psiquiátricos ou doenças clinicas em geral. Essas crianças geralmente necessitam também de intervenções mais intensas e individualizadas. Uma dos potenciais problemas com a RTI é retardar o acesso dessas crianças aos serviços especializados que as beneficiariam.

Um dos maiores problemas do modelo biomédico dos transtornos de aprendizagem é a arbitrariedade dos critérios diagnósticos. Como não existem marcadores biológicos ou genéticos específicos dos diversos transtornos de aprendizagem, o diagnóstico se baseia em critérios estatísticos arbitrários.

O diagnóstico se baseia na pressuposição de que se a criança apresenta Inteligência normal e um desempenho acadêmico em uma oumais disciplinas inferior ao percentil 5, é grande a probabilidade de que, além de grave o problema seja constitucional e persistente. Um ponto de corte mais elevado, no percentil 35, p. ex., identifica crianças com problemas menos graves e maior probabilidade de apresentar dificuldades temporárias e influenciadas por fatores ambientais.

O modelo nosológico ou biomédico funciona relativamente bem, permitindo identificar crianças cujas dificuldades são mais graves, persistentes, com maior probabilidade de comorbidades associadas e que requerem internveções mais intensivas e individualizadas. Obviamente, o modelo tem suas falhas, as quais ocorrem sob a forma de falsos positivos e falsos negativos.

Um grupo de crianças que representa um desafio diagnóstico e terapêutico considerável são aquelas crianças com inteligência normal porém baixa, oriundas de famílias pobres e com nível educacional baixo e freqüentando escolas de má qualidade. Muitas dessas crianças preenchem os critérios formais para o diagnóstico de um transtorno específico de aprendizagem, mas transmitem a impressão clinica de que o problema pode ser mais de natureza ecológica do que constitucional.

São crianças oriundas de famílias pobres, nas quais os pais poucas condições têm de estimular os filhos ou de auxilá-los nas atividades escolares. Os pais podem, inclusive, ser analfabetos. Essas crianças também freqüentam  escolas de má-qualidade, nas quais recebem pouca ou nenhuma atenção por partedas professoras. As características individuais podem incluir agitação, desatenção e impulsividade, além de uma inteligência normal porém baixa. O resultado é que o menino pode chegar à adolescência sem ser alfabetizado ou sem haver compreendido as operações aritméticas ou com funciona o sistema numeral arábico.

Sabe-se que crianças com QI acima de 70 porém abaixo de 85, ou seja, um desvio-padrão abaixo da média, apresentam risco significativo de apresentar dificuldades de aprendizagem escolar. Em muitos países essas crianças são identificadas no primeiro ano do ensino fundamental e passam a receber intervenções pedagógicas especializadas.

Muitas vezes surgem dilemas quanto ao diagnóstico diferencial com deficiência intelectual. O resultados de algumas crianças nos testes de QI pode situar-se abaixo do ponto de corte de 70 para deficiência intelectual. Nesses casos o mau resultado nos testes de QI contratas com indicadores clínicos de que a crianção não é deficiente, tais como o fato de que apresenta boas habilidades de auto-cuidado, tem boa capacidade para auxiliar nas tarefas domésticas, tem amigos sendo socialmente bem adaptada e apresenta boas habilidades práticas, tais como fabricar e empinar uma pipa. O diagnóstico deve então ser baseado no juízo clínico e não do resultados dos testes de inteligência. Os testes psicométricos falham, não revelando de forma fidedigna o nível de funcionamento do indivíduo.

As crianças com o perfil de agitação, inteligência baixa, família pobre e esccola ruim constituem um desafio para os neuropsicológos. O foco da neuropsicologia é na identificação de vulnerabilidades individuais, ainda que as mesmas possam ser nfluenciadas por vulnerabilidades ecológicas e essas últimas devam ser identificadas e consideradas. Mas se um jovem de 15 anos que ainda não foi alfabetizado apresenta esse perfil fica muito difícil decidir se ele tem uma dislexia do desenvolvimento ou se as suas dificuldades são apenas o resultado de uma ecologia adversa ou da interação de ambos tipos de fatores.

Um indicador valioso nesses casos vem da análise do desenvolvimento dos irmãos. A mãe pode ser analfabeta e a escola ruim. Mas se os irmãos mais velhos se encaminharam na vida, fazendo ensnio médio, arrumando emprego ou até mesmo curansado um faculdade, então deve ser seriamente considerada a possiblidade de que a criança apresente alguma vulnerabilidade intrínseca. A avaliação neuropsicológica é importante mesmo nesses casos porque ajuda identificar as vulnerabilidades individuais e a mapear como elas interagem com as restrições ecológicas ao desenvolvimento da criança.

Bem mais difíceis são os problemas decorrentes da má-qualidade da educação, tanto da escola quanto da falta de políticas educacionais eficazes. Uma aluna comentou certa vez que o seu pai é professor de História no Ensino Fundamental II. Ela dá aulas para turmas do 7º. ao 9º. anos. Sua tarefa inicia-se no início do  ano pela alfabetização dos alunos. Não tem como  ensinar História para um jovem que não sabe ler.


Por que o pai da aluna consegue alfabetizar os seus alunos, tarefa que fora impossível para os professores que cuidaram das crianças até o final do Fundamental II? Por que as crianças são promovidas de ano apesar de não serem alfabetizadas? Tudo indica que em muitas crianças as dificuldades de aprendizagem refletem um complexo processo de interação entre vulnerabilidades individuais e cológicas. Em outras as dificuldades podem decorrer apenas do fracasso da educação escolar. Identificando as vulnerabilidades e fortitudes individuais a neuropsicologia pode auxiliar a compensar as dificuldades e promover as facilidades de modo que a orientar os pais de modo que a criança tenha seu desenvolvimento favorecido.

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