As especificidades psicológicas humanas são um tema fascinante. Além da linguagem e da capacidade de usar símbolos para se comunicar, que outras habilidades cognitivas diferenciam os humanos dos antropóides? Existe continuidade evolutiva nas habilidades cognitivas dos antropóides para os humanos? As respostas a essas duas perguntas são intrigantes.
Primatas antropóides não conseguem se servir da linguagem verbal articulada para o pensamento e comunicação no mesmo grau que os humanos. Mas, os antropóides são capazes de adquirir, às custas de muito esforço, habilidades lingüísticas semelhantes às de crianças de dois anos.
A aritmética também é um terreno fértil para a psicologia comparada. Os antropóides apresentam habilidades numéricas e aritméticas rudimentares. Eles podem, p. ex., discriminar de forma aproximada a grandeza numérica de conjuntos de elementos. Também podem realizar operações aritméticas com números até 4 ou 5.
Além de presentes em diversas espécies animais, essas habilidades numéricas e aritméticas básicas são observadas em bebês de poucos dias de vida e em todas as culturas do mundo. O senso numérico é um universal cultural.
Habilidades numéricas e aritméticas mais sofisticadas apresentam uma variabilide inter-cultural enorme e somente são adquiridas pelos animais às custas de muito esforço e engenho dos experimentadores. P. ex., há tribos da Amazônia e na Austrália que contam com um repertório extremamente restrito de numerais. Os indivíduos dessas culturas consegue discriminar de forma aproximada a numerosidade dos conjuntos, mas não conseguem representar de forma precisa e operar sobre números maiores do que três ou quatro.
As evidências disponíveis indicam que existe um senso numérico inato, caracterizado pela habilidade de discriminar aproximadamente a numerosidade dos conjuntos e de operar precisamente com números pequenos de elementos. Parafraseando Kronecker, o senso numérico é obra do Bom Deus.Todo o resto da matemática é criação humana.
Qual é a especificidade cognitiva que permitiu aos humanos construir culturalmente a aritmética? Uma hipótese que tem sido muito considerada na psicologia antropológica atribui a evolução cultural às habilidades sócio-cognitivas. As quais constituiriam um dos traços distintivos mais importantes entre os humanos e os antropóides.
A hipótese da cognição como traço distintivo humano foi explorada em um estudo muito interessante de Hermann e cols. (2007). Os autores investigaram as habilidades cognitivas físicas e sociais de crianças humanas com 2,5 anos de idade e de chimpanzés e orangotangos adultos (Figura 1). As tarefas avaliando a cognição física incluiam habilidades relacionadas ao senso numérico e as tarefas de cognição social incluiam habilidades de teoria da mente.
Figura 1 - Comparação do desempenho cognitivo entre crianças humanas de 2,5 anos e antropóides em dois domínios diferentes. A) Cognição física, incluindo senso numérico. B) Cognição social, incluindo teoria da mente.
Os resultados mostraram níveis semelhantes de desempenho entre as crianças de 2,5 anos e os antropóides adultos nas tarefas de cognição física. Por outro lado, nas tarefas de cognição social as criancinhas deram um banho nos antropóides.
Qual a implicação desses resultados para as dificuldades de aprendizagem da aritmética? A pesquisa em cognição numérica trabalha com a hipótese de que um dos fatores implicados nas dificuldades graves e persistentes de aprendizagem da aritmética é o senso numérico. Dificuldades com a habilidade de discriminar de forma aproximada a numerosidade dos conjuntos são postuladas como um dos mecanismos cognitivos implicados na discalculia do desenvolvimento.
Mas o senso numérico não é o único mecanismo implicado na aprendizagem da aritmética. A aprendizagem dos aspectos formais da aritmética exige, além do senso numérico, habilidades de processamento fonológico, visoespacial e executivo. A motivação e as emoções também desempenham um papel importante na aprendizagem da aritmética.
É possível então postular que o sucesso na aprendizagem da aritmética depende tanto de fatores mais básicos, específicos e inatos como o senso numérico, quanto de fatores mais complexos e mais dependentes da cultura como o funcionamento executivo.
Um dos principais programas de pesquisa da cognição numérica consiste justamente em avaliar a importância do senso numérico para a aprendizagem da aritmética. Se hipótese de que alguns indivíduos têm dificuldades de aprendizagem de aritmética devido a déficits no senso numerico não puder ser descartada, medidas pedagógicas específicas se fazem necessárias.
Se a hipótese de que o senso numérico é importante para a aprendizagem da aritmética for verdadeira, poder-se-ia dizer que o senso numérico é o gigante sobre o qual se assenta a aritmética (Figura 2).
Figura 2 - Cedalion sobre os ombros de Orion (Nicolas Poussin, 1658). Cedalion era um servo de Hephaestus e havia sido seu tutor. Foi com Cedalion que Hephaestus aprendeu o ofício de ferreiro. Orion era um caçador gigante. Após haver violado Merope, Orion foi cegado pelo pai da moça, Oenopius. Cedalion subiu então nois ombros de Orion e guiou o gigante cego para o Leste, até que sua visão fosse recuperada pelos raios de Helio.
Referência
Herrmann, E., Call,J., Hernandez-Lloreda, M.V., Hare, B., &Tomasello, M. (2007). Humans
have evolved specialized skills of social cognition: The cultural intelligence hypothesis.
Science, 317,1360-1366.
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