Monday, May 07, 2018

EXISTE DISCALCULIA?

A discalculia do desenvolvimento e definida como uma condição inerente ao indivíduo que se caracteriza por dificuldades graves e persistentes de aprendizagem da aritmética, as quais não podem ser atribuídas a deficiência intelectual, deficiências neurosensoriais, problemas motivacionais ou emocionais, falta de estimulação ou oportunidade, ou ainda inadequações pedagógicas. 

A discalculia do desenvolvimento é uma condição heterogênea. É tão complexa que, por vezes, pode se duvidar da sua existências. Algumas fontes de complexidade se devem a que:

a) Múltiplos mecanismos cognitivos, tais como déficits no senso numérico, processamento fonológico, processamento visoespacial e funcionamento executivo, são implicados nas dificuldades de aprendizagem da matemática;

b) As difificuldades de aprendizaegem da matemática podem ser complicadas por dificuldades motivacionais (baixa auto-eficácia, impersistência) ou emocionais (ansiedade matemática);

c) Não existem marcadores diagnósticos seguros, quer sejam biológicos ou cognitivos. O diagnóstico se baseia então, no resultado de testes de desempenho em matemática e no juízo clinico, que é altamente subjetivo;

d) As evidências quanto à estabilidade do diagnóstico de discalculia e quanto ao seu impacto na vida acadêmica, profisisonal e pessoal ainda são fragmentárias;

e) A discalculia é pouco conhecida, sendo sub-diagnosticada;

f) Existem representações sociais de que matemática é a matéria mais difícil na escola, sendo, portanto, "normal" ter dificuldades de aprendizagem nessa disciplina.

A lista das complexidades associadas à discalculia poderia ser estendida. Mas os exemplos mencionados bastam para ilustrar o grau de ignorância com que operamos.

Não seria então o caso de duvidar da própria existência de uma condição denominada discalculia do desenvolvimento? Sem falar do próprio aparato neuropsicológico e pedagógico que cerca o seu diagnóstico e tratamento...

O conhecimento sobre a epidemiologia clinica da discalculia não é tão consolidado quanto sobre dislexia ou TDAH, mas há  evidências sólidas de que algumas crianças apresentam dificuldades graves e persistentes de aprendizagem da matemática e de que essas dificuldades se associam a déficits intrínsecos no processamento numérico básico.

A principal fonte de evidências para a existência de uma entidade denominada discalculia é constituída pelos estudos longitudinais (Mazzocco & Räsänen, 2013). Já foi publicada, inclusive, uma meta-análise dos estudos longitudinais (Nelson & Powell, 2017). De um modo em geral, os estudos longitudinais mostram que:

a) Existe continuidade entre as habilidades de discriminação numérica na primeira infância e as habilidades aritméticas na idade pré-escolar;

b) Existe continuidade entre as habilidades numéricas e aritméticas na idade pré-escolar e o desempenho em matemática na adolescência;

c) Os jovens que apresentam dificuldades mais graves e persistentes de aprendizagem de matemática são justamente aqueles que apresentam déficits no processamento numérico básico desde a idade mais tenra.

Um dos estudos mais elegantes mostrando a persistência das dificuldades de aprendizagem e sua associação com déficits no processamento numérico em um grupo de crianças foi conduzido por Wong e colaboradores (2014) em Hong Kong.

Wong e colaboradores acompanharam o desempenho em matemática de um grupo de 210 crianças a partir do jardim da infância até o final do segundo ano. Através de uma técnica estatística denominada de análise de classes latentes, eles conseguiram caracterizar diversos perfis de curvas de crescimento no desempenho em aritmética (Figura 1). 
Figura 1 - Classes latentes nas curvas de crescimento da aprendizagem em matemática de 210 crianças avaliadas entre o jardim da infância e o final do segundo ano (Wong et al., 2014). Os resultados mostram que um grupo de 10% das crianças apresenta dificuldades graves e persistentes na aprendizagem da matemática, as quais se associam a deficits no procesamento numérico básico. 

Cinqüenta e dois por cento dos alunos obtiveram curvas de crescimento média. Dois grupos de 6% e 23% ficaram, respectivamente, muito acima e acima da média. Finalmente, dois grupos apresentaram crescimento abaixo da média. O grupo com baixo desempenho foi formado por 18% dos alunos e apresentou uma tendência a melhorar seu desempenho com o tempo, aproximando-se da média. Um último grupo, correspondendo a 10% dos participantes, foi constituído por crianças que não melhoraram o seu desempenho com o tempo e que apresentam déficits no processamento numérico básico.

Além de demonstrar que um grupo de até 10% das crianças apresenta dificuldades graves e persistentes na aprendizagem da matemática, os estudos longitudinais têm outras implicações educacionais importantes.

As idéias construtivistas são muito populares na pedagogia. Segundo a perspectiva construtivista, a aprendizagem escolar deve ocorrer de forma ativa. Espera-se que  o aluno descobra - por conta própria ou em colaboração com os colegas - os conceitos, fatos e procedimentos cuja aprendizagem é propiciada por situações-problema planejadas pelo professor (Haase et al., 2015). Então, segundo o construtivismo a aprendizagem deve enfatizar a compreensão, ou seja, os aspectos conceituais.

A descoberta de que algumas crianças apresentam dificuldades com o processamento numérico básico é um desafio para a concepção construtivista. As dificuldades dessas crianças não são apenas conceituais. Ou seja, o maior problema pode não ser relacionado ao fato de que elas eventualmente não entendam os conceitos e procedimentos. As dificuldades podem residir nos aspectos procedimentais da aprendizagem, relacionados às habilidaades de discriminar a numerosidade dos conjuntos, contar, associar representações simbólicas às suas numerosidades etc. Para essas crianças, trabalhar o conhecimento conceitual (explícito) não basta. É preciso considerar especificamente o conhecimento procedimental (implícito).

A resposta à pergunta sobre a existência da discalculia do desenvolvimento é, portanto, positiva. A má notícia adicional é que a aobrdagem pedagógica construtivista tradicional pode não atender às necessidades dessas crianças.

Referências



Haase, V. G., Júlio-Costa, A., & Lopes-Silva, J. (2015). Por que o construtivismo não funciona? Evolução, processamento de informação e aprendizagem escolar. Psicologia em Pesquisa UFJF, 9, 62-71.

Mazzocco, M. M., & Räsänen, P. (2013). Contributions of longitudinal studies to evolving definitions and knowledge of developmental dyscalculia. Trends in Neuroscience and Education2(2), 65-73.

Nelson, G., & Powell, S. R. (2017). A systematic review of longitudinal studies of mathematics difficulty. Journal of Learning Disabilities, 0022219417714773.

Wong, T. T. Y., Ho, C. S., & Tang, J. (2014). Identification of children with mathematics learning disaaiblities (MLDs) using latent class growth analysis. Research in Developmental Disabilities, 35, 2906-2929.

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