A discalculia do desenvolvimento é uma condição heterogênea. Além das questões sociais e pedagógicas, vários mecanismos cognitivos colocam a aprendizagem da matemática em risco. As crianças com discalculia apresentam dificuldades inerentes ao seu processamento de informação que as colocam em risco de apresentar problemas de aprendizagem da matemática, tornando-as mais susceptíveis aos efeitos da falta de estimulação e má qualidade do ensino.
Quatro são os principais mecanismos cognitivos implicados na discalculia: a) senso numérico; b) processamento fonológico; c) processamento visoespacial; e d) funcionamento executivo (Figura 1). A esses mecanismos cognitivos soma-se a ansiedade matemática, que pode tanto resultar quando agravar as dificuldades de aprendizagem da matemática.
Figura 1 - Mecanismos cognitivos da discallculia. Os quatro déficits cognittivos implicados na discalculia são, do canto superior esquerdo para baixo: a) Senso numérico, avaliado pela tarefa de comparaçõ não-simbólica de magnitudes; b) Processamento visoespacial e visoconstrutivo, avaliado pela cópia da figura de Rey; c) Processamento fonológico, avaliado pelo teste de supressão de fonemas; e d) funcionamento executivo, avaliado pelo teste de Stroop. A esses mecanismos cognitivos é preciso acrescentar a ansiedade matemática (centro), a qual é tanto desencadeante quanto agravante das dificuldades de aprendizagem de matemática.
Os mecanismos cognitivos de vulnerabilidade às dificuldades de aprendizagem da matemática podem ocorrer isoladamente ou em diversas combinações. Os mecanismos cognitivos implicados na discalculia podem ser compartilhados com outros transtornos do desenvolvimento, explicando sua comorbidade.
A seguir, discuto os principais mecanismos cognitivos implicados na discalculia:
a) Senso numérico. O mecanismo cognitivo mais específico implicado na discalculia é o senso numérico. O senso numérico consiste na habilidade de discriminar de forma aproximada e rápida, sem contar, a numerosidade de conjuntos de objetos. O senso numérico é um importante precursos do conceito de cardinalidade e preditor do desempenho em aritmética. Entre outros testes, tarefas de comparação não simbólica da magnitude conjuntos de pontos podems ser usadas para calcular a acurácia do senso numérico. A acurácia do senso numérico pode ser operacionalizada através da fração de Weber interna (w) correspondendo à menor diferença numérica proporcional entre dois conjuntos que o indivíduo consegue discriminar. Comprometimentos isolados do senso numérico podem explicar a ocorrência de discalculia pura, i.e., sem outros transtornos associados;
b) Processamento fonológico. Diversas habilidades aritméticas, tais como ler a escrever os numerais arábicos, memorizar os fatos aritméticos e resolver problemas verbalmente formulados, requerem habilidades de processamento fonológico. O processamento fonológico consiste na habilidade de acessar, representar acuradamente e manipular os fonemas na memória de trabalho, associando-os às representações simbólicas correspondentes. O processamento fonológico é geralmente avaliado através de tarefas de nomeação rápida automatizada, alcance de apresentação na memória de curto prazo e consciência fonêmica. Os comprometimentos no processamento fonológico podem explicar a comorbidade extremamente freqüente entre discalculia e dislexia:
c) Processamento visoespacial. Vários procedimentos aritméticos requerem habilidades visoespaciais e visoconstrutivas. O exemplo principal é o cálculo multidigital. P. ex., para somar 139 + 64, é preciso proceder da direita para a esquerda, respeitando a ordem de grandeza do número codificada pelas colunas. A seguir, é preciso realizar somar 9 + 4, resultando em 13. O 3 é então anotado na primeira coluna da direita e o um mantido na mente, transferido para a coluna da esquerda e somado ao 6 etc. O processo todo exige compreensão do código posicional usado pela sintaxe do sistema arábico, bem como habilidade de armar espacialmente a conta e realizar as transferências entre colunas e anotar os resultados nas linhas correspondentes etc. Uma das tarefas mais usadas para avaliar o processamento visoespacial e visoconstrutivo é a cópia da figura de Rey. Os comprometimentos no processamento visoespacial estão associados às dificuldades de aprendizagem da matemática no transtorno não-verbal de aprendizagem;
d) Funcionamento executivo. Déficits no funcionamento executivo explicam as dificuldades de aprendizagem da matemática associadas ao transtorno do déficit de atenção por hiperatividade (TDAH). Um problema clássico são os erros de monitoração. O indivíduo não consegue sustentar a vigilância e então comete erros associados a lapsos atencionais. As respostas impulsivas são também outro problema freqüente. O teste de Stroop avalia tanto a monitoração quanto a impulsividade. Adicionalmente, déficits na memória de trabalho podem interferir com a aprendizagem dos fatos aritméticos. Se a pessoa não consegue associar na mente os itens de um problema e sua resposta correta sou não consegue suprimir resposta irrelevantes, acaba aprendendo associações incorretas, as quais são muito difíceis de corrigir.
Finalmente, a ansiedade matemática não é sinônimo de discalculia, mas pode ser considerada um fator desencadeante ou agravante. A ansiedade matemática é uma forma de fobia, que aparece em pessoas susceptíveis quando expostas a experiências negativas com a matemática. A ansiedade matemática se manifesta como cognições (baixa auto-eficácia, atitude negativa), emoções (infelicidade, angústia), comportamentos (evitação, fazer pros côcos) e arousal (taquicardia, sudorese) em relação às atividades matemáticas. As dificuldades com a matemática na discalculia são observadas desde a escolarizacão inicial. A ansiedade matemática costuma se manifestar mais tarde, à medida que o nível de exigência matemática aumenta.
Referências
Haase, V. G., Júlio-Costa, A., Antunes, A. M., Alves, I. S. (2012). Heterogeneidade cognitiva nas dificuldades de aprendizagem da matemática: uma revisão bibliográfica. Psicologia em Pesquisa (UFJF), 6, 139-150 (http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1982-12472012000200007).
Haase, V. G., Lopes-Silva, J. B., Starling-Alves, I., Antunes, A. M., Júlio-Costa, A., Oliveira, L. F. S., Pinheiro-Chagas, P., Moura, R. J. & Wood, G. (2013). Com quantos bytes se reduz a ansiedade matemática? A inclusão digital como uma possível ferramenta na promoção do capital mental. In L. E. L. R. do Valle, M. J. V. M. de Mattos & J. W. da Costa (Eds). Educação digital. A tecnologia a favor da inclusão (pp. 188-202). Porto Alegre: ARTMED.
Salvador, L. S., Antunes, A. M.,., Starling-Alves, I., Martins, G.A., Paiva, G. M., Prado, A.C.A., Almeida, F. N., Barbosa, D. C. B. P., Pêsso, M. G., & Haase, V.G. (2013). O status nosológico do transtorno não-verbal de aprendizagem e suas conexões com os transtornos do espectro do autismo. In W. Camargos Jr. (Ed.). Síndrome de Asperger e outros transtornos do espectro do autismo de alto funcionamento: da avaliação ao tratamento (pp. 249-263). Belo Horizonte: Artesã (ISBN 978-85-8800-932-5).
No comments:
Post a Comment