A
história clinica é realizada em uma entrevista na qual o cliente relata os seus
sintomas, contextualizando-os na sua história de vida.
Anamnese
quer dizer através da memória. Na entrevista de anamnese o examinador atiça a
memória do cliente, para que este se recorde e comunique as informações que
possam ser relevantes para o diagnóstico neuropsicológico.
O
sucesso da comunicação interpessoal na anamnese depende de vários fatores.
Geralmente se fala em rapport, ou seja, no estabelecimento de uma relação
empática, colaborativa, entre o cliente e o profissional.
Várias
técnicas podem ser usadas para propiciar a construção do rapport, tais como os “cinco
minutos para o paciente” (Bálint & Norrell, 1986) e “o que mais?” (Barrier
et al., 2003). As técnicas ajudam, mas não substituem a empatia e o interesse
genuínos.
Uma
entrevista clinica é um exercício em teoria da mente. Requer a capacidade de
interpretar fenomenologicamente os sintomas em termos das categorias diagnósticas
da neuropsiquiatria e de interpretar fenomenologicamente o mundo na perspectiva do
cliente. Ou seja, reconstruir a percepção que o cliente tem da realidade e o
significado que atribui aos sintomas e o impacto que as dificuldades têm no seu
funcionamento e adaptação psicossocial.
Um
princípio importante é acreditar no relato do paciente. Acreditar que tudo o
que a mãe está relatando é verdade. Isso é justificado pelo Princípio da
Cooperação de Grice (1975). A idéia é que na interação verbal que caracteriza a
anamnese, as pessoas querem se comunicar de forma honesta.
A
condução da entrevista de anamnese se norteará pelo princípio da cooperação e
máximas derivadas: os interlocutores querem se comunicar da melhor maneira
possível e manter a comunicação. Segundo Grice, os
interlocutores precisam "Make your contribution such as it is required, at
the stage at which it occurs, by the accepted purpose or direction of the talk
exchange in which you are engaged."
O
objetivo da anamnese é formular um diagnóstico que propicie algum tipo de ajuda
ao cliente. O cliente precisa ser sincero na comunicação das informações e o
examinador deve zelar para que o cliente se sinta à vontade e confiante de que
suas contribuições à comunicação serão respeitadas e valorizadas.
A
maioria dos pacientes quer se comunicar honestamente com o neuropsicólogo. A
primeira hipótese do neuropsicólogo deve sempre ser de que os sintomas
relatados pelos clientes são genuínos e não forjados ou resultantes de
fantasias.
Algumas
vezes as pessoas mentem, fantasiam ou simulam sintomas. Mas essas situações são
mais a excessão do que a regra. Os clientes procuram ajuda porque estão
sofrendo e, na maioria das vezes, são sinceros. Um diagnóstico falso positivo -
acreditar no cliente quando o mesmo mente - tem conseqüências menos graves do
que um diagnóstico falso negativo – não acreditar no cliente quando o mesmo é
sincero. É mais grave interpretar um sintoma genuíno como simulação do que um
sintoma forjado como verdadeiro.
O
Princípio da Cooperação pode ser interpretado como um caso particular do altruísmo
recíproco (Ridley, 1998, Wright, 1994). O altruísmo recíproco é o cimento
evolucionário que liga as pessoas de forma cooperativa. A dinâmica evolutiva
social da espécie humana envolve tanto cooperação (principalmente intragrupo)
quanto competição (principalmente intergrupo).
Grupos
de cooperadores promovem sua aptidão evolutiva e aumentam a probabilidade de o
seu pool de genes ser transmitido entre gerações sucessivas. O instinto básico
na espécie é sempre então, se comunicar, cooperar, acreditar nas pessoas.
Mas
os cooperadores são vítimas em potencial dos trapaceiros. Ou seja, de pessoas
que desejam tirar vantagem, ludibriando os outros sem fazer sua parte. Em
função disso, os cooperadores evoluiram heurísticas de detecção de trapaceiros,
que os impedem de cair no conto do vigário.
Uma
das principais e mais eficazes heurísticas contra os trapaceiro é o altruísmo recíproco.
Numa interação social, os parceiros sempre devem acreditar que os outros agem
bona fide. O altruísmo reciproco funciona quando as interações são repetidas. Se
da primeira vez o indivíduo A foi cooperativo e o indivíduo B não reciprocou,
da segunda vez o altruísta recíproco vai se abster de ajudar o egoísta.
Mas,
se os cooperadores desenvolveram estratégias de detecção de trapaceiros e altruísmo
recíproco, os trapaceiros por sua vez foram evoluindo estratégias cada vez mais
sofisticadas para atingir seus intentos malévolos. Uma das mais poderosas é o
auto-engano (Trivers, 2011). Se o trapaceiro acredita na veracidade das suas
mentiras e simula suas más-intenções em bondade ele aumenta sua chance de não
piscar na hora H e obter êxito no seu logro. O auto-engano é a heurística
subjacente ao moralismo, uma das estratégias mais eficientes de controle
social.
A
entrevista de anamnese não é uma interação social que se esquive dessa corrida
armamentista entre cooperadores e trapaceiros. Os motivos para os clientes não
serem sinceros são múltiplos. Os sintomas neuropsicológicos ou os fatores de
risco que a eles conduziram podem envolver vivência e comportamentos bem
constrangedores. O cliente pode não se sentir à vontade e omitir detalhes que
eventualmente sejam importantes para o diagnóstico. O remédio aqui é a empatia,
a confiança.
Noutras
circunstâncias, os clientes podem estar fantasiando ou atuando. O examinador
precisa avaliar com precisão a percepção que o cliente tem da realidade. Em um número
felizmente menor de casos os clientes podem estar agindo de má-fé. Nesses casos
a contra-transferência, o sexto sentido é a ferramenta principal à disposição
do examinador.
O
importante é compreender que consiste em falta grave por parte do examinador
não acreditar no paciente. Consiste em uma falta de respeito que deve ser
evitada a todo custo. Em princípio, os clientes não mentem. A menos que mintam.
Mas o ônus de detectar a trapaça, a fantasia ou a atuação recaem sobre o
examinador, o qual deve ser muito criterioso.
Atribuir
os sintomas à ansiedade da mãe ou da criança, sem um processo mais detalhado de
busca por evidências e teste de hipóteses é uma falta gravíssima. Todos nós já
passamos por essa ou situações parecidas. É doloroso, incomoda muito.
Infelizmente é comum que se vá a um médico e o mesmo desdenhe dos sintomas como
resultantes de ansiedades ou fantasias. Em casos mais graves ainda, alguns
médicos fingem que fazem uma ausculta cardíaca ou pulmonar. Será que esses
profissionais são tão idiotas que não lhes passa pela cabeça que, por mais ignorantes
que sejam, os pacientes percebem a trapaça?
Recentemente
tem acontecido uma coisa irritante comigo. Meus cabelos andam bem brancos.
Talvez seja por causa disso que muitas secretárias ou médicos plantonistas de
serviços de urgência se sintam no direito de me tratar como se eu fosse um
ignorante ou demenciado. Adotando atitudes paternalistas em relação a mim e me
explicando o óbvio, insultando a minha inteligência e faculdades intelectuais.
Infelizmente,
o respeito e a sinceridade são commodities cada vez mais escassas na assistência
à saúde. A neuropsicologia é uma área nova de atuação profissional que terá
mais sucesso quanto mais fugir desse vício da falta de empatia e autenticidade.
O
Príncípio da Cooperação é, então, um pilar de uma anamnese bem feito. Do
Princípio da Cooperação, o Grice derivou uma série de máximas. As máximas de
Grice podem facilmente ser adaptadas para o contexto da entrevista clinica em
neuropsicologia:
1. Qualidade: Ser
respeitoso e demonstrar tato, mas ser sincero e acreditar na sinceridade do
cliente;
2. Modo: Ser organizado,
ético e empático e otimista;
3. Relevância: Focar no
que interessa;
4. Quantidade: Não
sobrecarregar o cliente com informações ou preocupações desnecessárias.
Talvez
essas regrinhas sejam óbvias demais, ou mais facilmente formuáveis do que
obedecidas. Mas se elas não fossem explicitadas, quais seriam as diretrizes?
Referências
Bálint,
E. & Norell, J. S. (1986). Seis minutos para o paciente. Rio de Janeiro:
Manole.
Barrier,
P. A., Li, J. T. C.
& Jensen, N. M. (2003). Two words to improve physician-patient
communication: what else? Mayo Clinic Proceedings, 78, 211-214.
Grice, H. P. (1975).
Logic and conversation. Syntax and Semantics, 3, 41-58.
Ridley, M. (1998).
The origin of virtue: human instincts and the evolution cooperation. New York:
Penguin.
Trivers, R. (2011).
The folly of fools. The logic of deceit and self-deception in human life. New
York: Basic Books.
Wright, R. (1994). The
moral animal. Why are the way we are. The new science of evolutionary
psychology. New York: Pantheon.
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