Dizer
que o neuropsicólogo deve ser um grilo falante significa enfatizar o componente de aconselhamento da avaliação neuropsicológica.
Mas é uma metáfora que tem seus riscos. A avaliação neuropsicológica tem muitas
finalidades, tais como diagnóstico, prognóstico e aconselhamento etc. O
aconselhamento é o modo como o neuropsicólogo auxilia a pessoa a compreender a
natureza do seu problema, a
interpretá-lo à luz do conhecimento científico, a identificar quais são
as possibilidades de enfrentamento e os
recursos disponíveis, quais são as decisões que precisam ser tomadas e quais
consequências possivelmente associadas a cada opção etc. Enfim, o
aconselhamento é a intervenção acoplada à avaliação neuropsicológica que
permite informar as decisões a serem tomadas pelo cliente, por sua família e
por outros profissionais.
O
aconselhamento é uma forma de intervenção breve e não diretiva e deve ser um
componente obrigatório da avaliação neuropsicológica. Não é de muita serventia
fazer uma série de testes, levantar escores e conferir nas normas, se os
resultados não são integrados numa hipótese diagnóstica, a qual é então
submetida a um escrutínio de validação. Efetuado o diagnóstico, o significado
do mesmo precisa ser transmitido aos consumidores do relatório neuropsicólogo.
É nisso que consiste o aconselhamento. O aconselhamento é a cereja do bolo e
pode ser sistematizado através de algumas máximas:
1.
O
ACONSELHAMENTO DEVE SER BREVE.
A
avaliação neuropsicológica, incluindo o aconselhamento tem uma duração ótima. A
avaliação neuropsicológica não pode ser muito curta. Pode-se pensar assim. Os
testes e observações realizados constituem amostragens do comportamento do
cliente. Não é recomendável amostrar o comportamento do examinando em apenas
uma ocasião. A pessoa pode estar receosa, pode estar cansada, seu comportamento
pode ser intermitente, pode variar ao longo do dia ou em função da tarefaetc. A
variabilidade de desempenho é uma característica importantíssima do TDAH.
Atenção individualizada e tarefas desafiadoras são motivantes e promovem
engajamento. Com a repetição e aumento do grau de dificuldade podem vir o tédio
ou a ansiedade de desempenho. Então é preciso amostrar o comportamento do
probando ao menos umas duas vezes, procurando variar as circunstâncias e o tipo
de tarefa apresentada.
Mas
a avaliação não pode se prolongar por muito tempo. Os clientes com nível
educacional mais baixo não conseguem distinguir bem avaliação de terapia.
Freqüentemente as mães relatam que o menino melhorou após começar a avaliação.
E isso acontece e decorre da atenção positiva que a criança recebe durante a
avaliação. As crianças com dificuldades de comportamento e/ou de aprendizagem recebem
pouca atenção de boa qualidade dos adultos. A atenção dos adultos geralmente se
fixa no problema de comportamento ou de aprendizagem. Assim, não é
surpreendente que a criança mude de atitude ao receber atenção de boa
qualidade, individualizada, de um adulto que lhe é simpático e estimulante.
Uma
avaliação muito demorada acarreta também consigo problemas relacionados ao
aprofundamento do rapport e desenvolvimento de transferência e contratransferência.
Pode ficar difícil na hora do desmame. Na hora de encaminhar a criança e a
família para algum tipo de tratamento. No início, algumas crianças se mostram
receosas frente aos testes. Mas, com o passar do tempo, muitos adquirem gosto
pelas atividades. E ficam frustradas quando lhes é comunicado que não
precisarão mais retornar.
A
duração excessiva do processo de avaliação é um dos principais problemas que
enfrentamos quando os alunos de graduação estão na fase inicial da sua
aprendizagem. Muitas vezes a anamnese precisa ser refeita porque ficaram
faltando informações ou porque as informações obtidas não são conclusivas.
Freqüentemente também testes adicionais precisam ser aplicados em função
das hipóteses levantadas, com os quais
os alunos não estão familiarizados. Assim, sendo, algumas vezes o processo de
avaliação pode se prolongar por um semestre letivo inteiro. Isso é péssimo. Não
existe uma regra fixa. Mas uma boa avaliação deve durar de três a cinco ou no
máximo seis sessões: uma entrevista de anamnese, três sessões de testes e uma
entrevista de aconselhamento.
Uma
avaliação muito curta é superficial, amostra inadequadamente o comportamento e
induz a erro. Uma avaliação muito prolongada favorece o desenvolvimento de
transferência, que precisará ser elaborada posteriormente. E esse não é o
objetivo da avaliação neuropsicológica. A intervenção associada à avaliação
neuropsicológica é o aconselhamento.
2.
O
ACONSELHAMENTO DEVE SER NÃO-DIRETIVO.
O
neuropsicólogo não precisa ser uma tela em branco sobre a qual se projetam os
anseios do cliente, mas deve procurar ser o menos diretivo possível. Isso nem
sempre funciona. Mas é um ideal a ser almejado e perseguido sempre que
possível. O ideal contemporâneo é a assistência colaborativa de saúde (Haase,
2009a,b, von Korff et al., 1997). Segundo o modelo colaborativo, o paciente
deve funcionar como um membro da equipe multiprofissional. O paciente deve ser
informado e deve participar ativamente no processo de tomada de decisões
diagnósticas e terapêuticas. O ideal de assistência colaborativa à saúde se
coaduna com os princípios bioéticos de autonomia e decisão informada (Beauchamp
& Childress, 2002).
A
assistência colaborativa de saúde é extremamente importante no caso das doenças
crônicas, como é a maioria dos problemas neuropsicológicos. Os problemas de
saúde nesses casos têm repercussões multisistêmicas, necessitam atendimento
multiprofissional e, frequentemente, decisões difíceis precisam ser tomadas
considerando riscos, benefícios, disponibilidade de serviços, custo financeiro,
afetivo e esforço etc.
Assim
sendo, o aconselhamento deve ser não-diretivo no sentido de que o
neuropsicólogo não deve prescrever o que o cliente deve fazer ou deixar o
fazer. O papel do neuropsicólogo deve ser mais psicoeducativo, esclarecendo a
natureza do problema, mapeando as opções de diagnóstico e tratamento, a
disponibilidade de serviços, o prognóstico e o custo e as consequências
associadas às decisões eventualmente tomadas.
Esse
modelo funciona muito bem com pessoas educadas e com capacidade de insight.
Seus resultados podem ser contraproducentes em indivíduos com menor educação
formal e menor capacidade de insight. Nesses casos o neuropsicólogo pode e deve
ser mais diretivo. O não-intervencionismo excessivo pode causar confusão e
aumentar o sofrimento do cliente e da família. Por vezes, as pessoas precisam
receber uma orientação mais diretiva para se sentirem mais seguras.
O
modelo não-diretivo, colaborativo de assistência se coaduna muito bem ainda com
o movimento da psicologia positiva, o qual chegou à neuropsicologia também
(Randolph, 2013). A idéia subjacente à psicologia e neuropsicologia positivas é
que há necessidade de desenvolver uma agenda positiva para o caso das doenças
crônicas, Uma agenda que focalize as possibilidades de desenvolvimento pessoal
e promoção da qualidade de vida, retirando atenção das limitações e
deficiências.
O
movimento da assistência positiva de saúde se baseia na observação de que muitas vezes e
paradoxalmente até, as pessoas mantém ou recuperam sua qualidade vida mesmo
face a situações ou condições de saúde
muito adversas. Albrecht e Devlieger (1999) cunharam o termo “paradoxo da
incapacidade” ou “paradoxo da felicidade”. Ou seja, a pessoa mantém o nível de
funcionamento e o seu bem estar apesar de todas apostas em contrário.
A
manutenção da qualidade de vida face a deficiências pode ser explicada por
diversos mecanismos de coping, tanto ativos quanto passivos. O engajamento
ativo no cuidado da sua própria saúde, a participação na equipe
multiprofissional e a ajuda a outros pacientes afetados constituem um
importante mecanismo de enfrentamento (Schwartz & Sendor, 1999). Outro
mecanismo é a “response shift” ou recalibração dos parâmetros pelos quais o bem
estar é aferido. À medida que as incapacidade vão se acumulando, o indivíduo
pode ir recablibrando suas expectativas, mudando seus critérios de performance
e engajamentos. O engajamento pode ser retirado de uma atividade que se tornou
impossível para uma que permanece viável e promove o desenvolvimento pessoal (Schwartz
et al., 2007).
É
realmente surpreendente o número de pacientes com doenças crônicas que
conseguem manter seu funcionamento e bem estar apesar da adversidade. Mas nem
todos conseguem (Vasconcelos et al., 2010). E pode ser inútil e até mesmo
desumano desenvolver no paciente a expectativa ou obrigação de manter-se ativo
e funcional, de ser um vencedor apesar de toda adversidade (Schwartz, 2000).
Algumas pessoas simplesmente não conseguem. Não conseguem porque sua educação,
inteligência, regulação emocional, capacidade de insight etc. simplesmente não
permitem. Nesses casos, o neuropsicológico precisa ser um pouco mais diretivo,
para não sobrecarregar o cliente e sua família.
3.
O
ACONSELHAMENTO DEVE SER UMA FORMA DE PSICOEDUCAÇÃO.
Fico
muito feliz quando a mãe me fala assim: “Você me ajudou a compreender melhor a
minha filha”. O objetivo último da avaliação neuropsicológica é que os diversos
consumidores do relatório compreendam melhor o funcionamento do cliente, seus
receios, suas limitações e potencialidades.
A
dimensão psicoeducativa é intrínseca ao aconselhamento neuropsicológico. A
professora encaminha e/ou os pais trazem uma criança à consulta porque a mesma
não se comporta ou não aprende conforme a expectativa dos adultos. Modelos e
rótulos da psicologia intuitiva são utilizados para se referir ao
indívíduo e aos sintomas. Freqüentemente se escuta que a criança é
lerda, que é burra, que não aprende, que não se esforça, que é preguiçosa, que
tem problema de caráter etc. Essas interpretações selvagens,
folk-psychologicas, podem ser bem dolorosas para os pais e para a criança,
aumentando também o risco de que a professora se sinta desamparada.
A
missão do neuropsicólogo é ajudar o indivíduo e a família a reconstruírem sua
biografia, de modo que seja pessoal e socialmente aceitável e promotora do
crescimento e desenvolvimento pessoal. É muito importante, por exemplo, que a
criança, a família e a professora desenvolvam a compreensão de que uma criança
com dislexia tem inteligência normal e que seu problema é circunscrito a um
sistema neurocognitivo muito delimitado. No caso do TDAH ajuda muito
compreender que se trata de uma dimensão da
personalidade associada a dificuldades para postergar a recompensa e não
a uma falha de caráter ou déficit cognitivo.
Está
muito em voga a crítica da neuropsicologia como medicalização do ensino (Frias
& Júlio-Costa, 2013). Ouve-se que os problemas da educação são de natureza
sistêmica e política, relacionados à desigualdade social e mecanismos de
opressão dos mais pobres etc. etc. Segundo essa cantilena é condenável rotular
a criança, atribuindo-lhe responsabilidade por problemas estruturais sociais.
A
perspectiva neuropsicológica é distinta. O diagnóstico não deve se restringir à
“rotulação”, seja lá o que isso signifique. O aconselhamento é parte inerente
ao diagnóstico. E o aconselhamento envolve esse processo de reconstrução da
biografia, de criação de uma versão que seja cientificamente informada e
pessoal e socialmente aceitável.
A
psicoeducação é componente que permite ao indivíduo e à família compreenderem a
natureza do problema, aumentarem seu auto-conhecimento, identificarem seus
pontos fortes e fracos, tranquilizarem-se quanto ao prognóstico, identificarem
os recursos e opções disponíveis quanto ao ao tratamento etc.
A
neuropsicologia faz parte sim do aparelho ideológico do estado. A
neuropsicologia faz parte do sistema mais amplo de saúde, cuja finalidade é
auxiliar as pessoas a enfrentarem suas mazelas. O neuropsicológico está
investido sim de um poder e deve assumí-lo. Trata-se do “poder de Esculápio”.
Ou seja do poder de absolver culpas e amainar ansiedades à luz do conhecimento científico e da empatia.
A compreensão é o primeiro passo para o alivio do sintoma.
4.
O
ACONSELHAMENTO DEVE SE FUNDAMENTAR EM UMA INTERPRETAÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Também
fico muito feliz quando a mãe me fala assim: “É impressionante como você
conseguiu descrever tudo no relatório com fidelidade ao que eu disse. Com as
minhas próprias palavras”. A fenomenologia aqui é aquela fenomelogia descritiva
dos sintomas de Karl Jaspers e não a fenomenologia de Edmund Husserl (Oyebode,
2015).
O
aconselhamento somente vai funcionar se o neuropsicólogo conseguir entender a
percepção e compreensão que o cliente tem dos seus próprios problemas, seus
sentimentos preocupações, seu interesses, limitações etc. É preciso reconstruir
o mundo a partir da perspectiva do cliente para poder ajudá-lo.
Falar
isso é uma obviedade. Deveria ser desnecessário. Infelizmente não é. A julgar pelo número de famílias que passam
por diversos neuropsicólogos sem que tenham encontrado um rumo. Uma falácia
frequente na neuropsicologia é aquilo que pode ser chamado de a “ilusão dos
números”. Ou seja, a crença de que a avaliação neuropsicológica se reduz a um
processo objetivo de aplicação de testes, levantamento de escores e conferência
de um referencial normativo.
Nada
mais errado. Os testes são sujeito a erros, sistemáticos e não sistemáticos. Os
escores nos testes não dizem nada, a menos que sejam interpretados à um luz de
um referencial neurocognitivo. Os testes neuropsicológicos constituem apenas
uma tentativa honesta de aumentar a fidedignidade das medidas e de
operacionalizar o teste de hipóteses diagnósticos da maneira mais formal
possível.
Mas,
por si só, os escores dos testes podem não ter quaisquer implicações para o
aconselhamento, para aquilo que o cliente e a família podem ou devem fazer.
Para compreender aquilo que pode funcionar e aquilo que pode não funcionar. As
intervenções neuropsicológicas são complexas e exigem capacidade de insight e
cooperação por parte do cliente e/ou da família. Isso somente é possível quando
o neuropsicológico realmente conhece aquela pessoa, sem reduzí-la a um padrão
de escores preservados ou deficitários. As ferramentas para isso são clinicas e
consistem pura e simplesmente da empatia e da fenomenologia.
A
fenomenologia pode ser aprendida através do estudo de livros como o de Oyebode
(2015) e supervisão clinica. A grande questão diz respeito à possibilidade de
se aprender e desenvolver a empatia, a compaixão e o interesse genuíno. Eu
tendo a acreditar que sim.
Os
profissionais de saúde precisam também se resguardar contra o desenvolvimento
de “calos no coração”, lidando diuturnamente com tanto sofrimento. Tem um
estudo muito bacana que explica como isso é possível e se chama: “helping
others, helps oneself” (Schwartz & Sendor, 1999). Uma das razões pelas
quais as profissões de saúde são tão atrativas é que a melhor maneira de ajudar
a si próprio, pode ser ajudar a outrem. A caridade é um componente importante
da clinica e precisa ser cultivado. Todo encontro clinico é uma experiência
humana. Eu fico satisfeito quando posso gostar dos meus pacientes e quando
aprendo alguma coisa com eles. E sempre aprendo muito. Só fico chateado quando
não consigo gostar, não consigo empatizar. E, às vezes não consigo. Nesses
casos, é melhor que os clientes sejam atendidos por outras pessoas. Vocês podem
não acreditar, mas eu também sou humano. Até eu tenho minhas emoções e
sentimentos. Agora só falta fazer que nem os alunos do primeiro ano de
graduação em psicologia e andar por aí com uma camiseta onde se lê: “Nada do
que é humano, me é estranho”.
O
neuropsicológo deve ser um grilo falante: Sim, na medida em que conseguir dar
bons conselhos. Mas ao mesmo tempo, não pode ser tão chato quanto o grilo
falante. O animalzinho irritante, sô!. Mania de dar liçãode moral nos outros. Quando eu era pequeno, eu detestava o grilo falante. O
neuropsicólogo não deve ser um moralista.
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