Uma das experiências mais marcantes da minha formação
profissional foi a participação nos chamados grupos Bálint que eram promovidos
pelo Prof. Milton Pecis Abramovich na antiga Faculdade Católica de Medicina de
Porto Alegre na longínqua Década de 70 do século passado (Abramovich, s.d.). Conheci
o Milton quando ele estava retornando de uma temporada em Londres. Lá em
Londres ele tinha trabalhado na famosa Tavistock Clinic. Pelo que me lembro,
essa Tavistock Clinic foi pioneira no desenvolvimento de uma coisa que se
chamou por um tempo de medicina psicossomática e que acabou se desenvolvendo no
atual modelo biopsicossocial em saúde.
Na Tavistock Clinic trabalhou o Michal Bálint, um psicanalista húngaro, aluno do Sandor Ferenczi e fugido do nazismo. O Bálint desenvolveu uma técnica de grupos para que médicos e profissionais de saúde desenvolvessem habilidades de relacionamento com os seus clientes. Na época, o referencial adotado era psicanalítico. Mas isso é o de menos. Nós já ultrapassamos essa fase. E alguma coisa boa ficou, que precisamos valorizar e desenvolver.
Um dos problemas que o Bálint procurou enfrentar foram as queixas dos pacientes em relação aos médicos no início da socialização da medicina na Grâ-Bretanha. Os pacientes saiam das consultas insatisfeitos com os médicos. Com a sensação de que não tinham sido atendidos. Junto com sua esposa Enid, Bálint resolveu encarar então essa questão: “Como deixar o paciente com a sensação de que ele foi atendido?”
Enquanto os pacientes se queixavam de que os médicos não
tinham tempo para ouvir seus relatos, os médicos alegavam que o tempo era
escasso mesmo, que precisavam coletar um monte de dados e tomar uma série de
decisões. Acabava sobrando pouco tempo para conversar com os pacientes.
Surgiu então a idéia de dar cinco minutos para o paciente (Bálint & Norell, 1986). A técnica consiste em deixar que o paciente fale por cinco a seis minutos, contados no relógio e logo no início da entrevista. O profissional ouve atentamente o cliente e não interfere. Deixa a pessoa falar, do jeito que ela quiser e precisar, antes de começar o interrogatório dirigido. O negócio funcionou e funciona. Sempre que os profissionais de saúde fazem isso, os clientes saem com a sensação de que foram bem atendidos, que o profissional teve consideração por suas preocupações.
Eu acho isso incrível. Parece uma mágica. É impressionante
que cinco ou seis minutos possam bastar para as pessoas extravasarem suas
preocupações e anseios. Mas é assim que as pessoas funcionam.
A técnica dos seis minutos para o paciente é infalível em
neuropsicologia também. O neuropsicólogo tem uma massa de dados para coletar
quando se trata de fazer uma boa avaliação. Mas o interrogatório pode esperar
um pouquinho para que consigamos estabelecer algum tipo de relacionamento
empático com o cliente, o tal rapport. Cinco ou seis minutos são muito pouco
tempo tomados de uma entrevista de anamnese que dura uma hora. De mais a mais,
esses cinco minutos podem ser usados para fazer uma avaliação clinica,
informal, do estado mental do paciente, do seu comportamento, afeto, cognição
etc.
A outra fórmula mágica é “o que mais?”. Barrier e Jensen
(2003) sugeriram que a qualidade clinica do atendimento pode melhorar muito se,
depois do interrogatório, o profissional perguntar se o cliente quer falar mais
alguma coisa, se ele lembrou de mais alguma coisa que possa ser importante. Ou
se o cliente acha que o profissional esqueceu de perguntar alguma coisa
importante. Funciona bem demais. Parece mágica, mas tem um fundamento cognitivo
importante. Anamnese quer dizer “através da memória”. A memória humana é
associativa e reconstrutiva. O que se procura na anamnese é construir uma
biografia neuropsicológica a partir de fragmentos de memória que são resgatados
em uma conversação. As memórias fragmentárias são resgatadas por associação e
integradas em um construto coerente. Uma idéia leva à outra. Freqüentemente se
pergunta uma coisa para um cliente e a pessoa não se recorda na hora. Minutos
depois ela acaba se lembrando. A conversação atiça a memória. Brasas
adormecidas são despertadas.
Eu uso e abuso do “que mais?”. Depois que eu terminei de
coletar todos os dados, fico sempre pensando: “será que eu me esqueci de alguma
coisa importante?”. Daí eu pergunto para o cliente se tem mais alguma coisa
importante, sobre a qual ele gostaria de falar e que, eventualmente, eu me
esqueci de perguntar. As pessoas sempre acabam se lembrando de alguma coisa que
enriquece a história clinica. Eu faço
isso de forma iterativa: “o que mais?”, “o que mais?”. Lá no final das contas o
negócio acaba ficando engraçado. Os clientes terminam rindo da história e saem
com a sensação de que foram ouvidos, de que tiveram tempo de contar tudo o que
precisavam contar. Todo mundo sai ganhando e a gente ainda acaba se divertindo.
Essas duas palavrinhas, os cinco minutos e o que mais,
parecem mágica mas não são. Elas não são nenhum feitiço tirado dos livros do
Harry Potter. Apenas refletem uma questão básica da comunicação humana: as
pessoas querem ser escutadas. E a anamnese depende da conversação. Tem técnica
para fazer que a coisa role de forma subjetivamente satisfatória e ao mesmo
tempo eficiente, considerando as limitações de tempo e energia com as quais os
profissionais operam.
Referências
Abramovich, M. P. (s.d.). O paciente em gastroenterologia. Porto
Alegre: Autor.
Bálint, E.
& Norell, J. S. (1986). Seis minutos para o paciente. Rio de
Janeiro: Manole.
Barrier, P. A., Li, J. T. C.
& Jensen, N. M.
(2003). Two words to improve physician-patient communication: what else? Mayo
Clinic Proceedings, 78, 211-214.
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