Quando
eu cheguei lá em Munique para fazer o meu doutorado, passei por uma fase meio
complicada do ponto de vista comunicacional. À medida que eu ia adquirindo
fluência em alemão, a nova língua interferia com o inglês. Num certo momento eu
não conseguia mais falar direito nem uma língua nem outra. Me embanava todo e
tinha que ficar pensando, procurando as palavras. Um belo dia um cara chegou
pra mim e me disse que eu parecia um inglês. Perguntado por quê, o sujeito me
respondeu que eu ficava pensando antes de falar. Segundo ele, só os ingleses
pensam antes de falar. Lá na Alemanha o pessoal valorizar ter o conhecimento na
ponta da língua. Se você saba alguma coisa, sabe decor. Se não sabe decor, não
sabe.
O
jornal club é uma das mais importantes atividades acadêmicas. Serve tanto para
aprender, principalmente aprender a ler metodicamente e metodologicamente, mas
também para aprender a escrever. Só que o journal club pode se transformar em
uma chatice quando as apresentações são mal preparadas. A seguir faço algumas
considerações e recomendações que considero serem importantes para aproveitar
ao máximo um journal club e, principalmente, para não transformar o troço em um
massacre da paciência do professor e colegas.
1) Todo
mundo preparar e sortear na hora
Pode
ser uma coisa interessante. Mas implica em problemas também. Pode deixar o
negócio muito chato. Só funciona se todos prepararem de fato. O que eu acho
muito difícil. Daí, o que acontece é o seguinte. Chega na hora a pessoa não
está preparada, não tem as frases prontas na cabeça. Está inibida etc. etc.
Fica muito chato. Vira psicoterapia. Eu não tenho paciência de ficar
acompanhando um aluno que não preparou estruturar o seu raciocínio, ficar
tentando lembrar das coisas, montar frases que nem as da Dilma etc. etc. Eu não
mereço isso. Não fiz nada de errado. Aprendi lá na Alemanha que a gente tem que
ter as coisas decoradas, na ponta da língua. Então, o que eu acho é o seguinte.
Se todos prepararem às ganhas, vale fazer sorteio na hora. Caso contrário é
melhor que uma pessoa prepare de fato.
2) Power
Point
Acho
que tem que fazer Power Point. O Power Point é importane para mostrar as
figuras e tabelas. O Power Point ajuda também a sistematizar as idéias, a
listar todos os tópicos que precisam ser abordados, de forma que nada seja
esquecido. Hoje em dia o Power Point funciona como as antigas fichas de
leitura. O Power Point substituiu as fichas de leitura. Essas fichas ou slides
de Power Point são importantes para a gente ter o material debulhado e
facilmente acessível na hora que quer citar. Dá para aproveitar também as
diversas apresentações que vão sendo feitos quando é necessário preparar uma
aula mais importante. O material fica pré-pronto. Ao invés de começar a aula do
zero, a tarefa se resume em e,
selecionar e juntar as peças, quer dizer, os slides. Fica muito mais fácil.
Você pega uma idéia daqui, outra dali, um resultado daqui, outro dalí etc.
3) Linguagem
precisa e sumária
Tem
que usar uma linguagem precisa. As frases precisam ser pré-elaboradas. Tem que
resumir bem. Não dá pra ficar cansando o ouvinte com detalhes irrelevantes. É
preciso se concentrar, focar no ponto, ser objetivo. É preciso aprender a
separar o que importa e o que não importa. Discriminar o que importante do que
não importa é um dos principais objetivos da atividade. É justamente isso que se
pretende aprender.
4) Formato
da apresentação
O
conteúdo deve ser formatado no modelo IMRAD (Introduction, Methods, Results and
Discussion). Isso ajuda não apenas a ler, mas também a escrever papers.
O
formato IMRAD tem um delineamento geral de uma ampulheta. No início da
Introdução é apresentada uma questão geral, um problema enfrentado em uma área
do conhecimento. A seguir, ao longo da Introdução, o problema é delimitado, os
objetivos são formulados e as hipóteses delimitadas. Os métodos e os resultados
são a parte mais específica do artigo, descrevendo como e o quê foi feito e
quais os resultados. A discussão começa resumindo os resultados para então
abrir o leque.
5) Roteiro
para apresentação
Cada
tópico deve ser abordado em algumas poucas frases, de forma sucinta e pecisa.
No “mundo moderno” não dá pra ficar enchendo a paciência dos outros, tentanto
organizar as idéias etc. Tem que vir com o negócio pronto. Eu não sou a mamãe dos
alunos.
Poucas
frases, sucintas, precisas, bem organizadas para cada um dos tópicos a seguir.
a) AUTORES
A
apresentação dos trabalhos começa pela identificação dos autores. Para isso é
importante ir para a internet. Identificar quem são os autores, se são velhos
ou moços, em qual fase da carreira estão, qual seu programa de pesquisa, como o
artigo se insere no seu programa de pesquisa, se é um trabalho maior ou menor,
qual é o índice H do autor, a que instituição pertence, que outras
contribuições relevantes fez, se o cara tem uma teoria ou não etc.
b) QUESTÃO
GERAL DE PESQUISA
Para
qual problema científico o artigo pretende contribuir? Qual é a lacuna de
conhecimento que pretende suprir? Descrição muito sucinta do contexto, do
estado da arte, que justifica a pesquisa.
c) OBJETIVOS
E HIPÓTESES
Os
objetivos específicos devem ser acoplados às hipóteses. É preciso identificar
se o estudo testa hipóteses. Se não testa hipóteses é uma porcaria. Se o estudo
não explicita as hipóteses também é uma porcaria. O que não dizer que o leitor
não deva explicitar as hipóteses subjacentes quando o autor não o faz. Cada objetivo
visa testar uma hipótese, deve ser casado com uma hipótese. As hipóteses devem
ser formuladas em termos de hipótese nula e hipóteses alternativas (ou
experimentais). Pode haver mais de uma hipótese alternativa para cada objetivo.
d) DELINEAMENTO
É
preciso descrever o delineamento geral do estudo. Se é um estudo experimental,
quase-experimental, observacional de associação entre variáveis, transversal ou
longitudinal etc.
e) OPERACIONALIZAÇÃO
DAS VARIÁVEIS
A
operacionalização das variáveis faz parte do delineamento. É preciso
identificar o papel desempenhado por cada uma das medidas. Quais são as
variáveis independentes e como foram medidas. Quais são as variáveis dependentes
e como foram medidas. Como foram controladas as variáveis confundidoras.
IMPORTANTE: Quando
eu vou avaliar um paper, dissertação de mestrado ou tese de doutorado, a
primeira coisa que eu olho são os objetivos, hipóteses e operacionalização das
variáveis. Se o autor não apresenta esses itens de forma clara então o trabalho
é uma porcaria. Dificilmente vai ser de alguma serventia. A redação dos
objetivos e hipóteses deve ser refinada quando o trabalho estiver quase pronto
e quando se fizer a costura entre as diversas partes.
f) AMOSTRAGEM
Mais
importante do que descrever as características sócio-demográficas da amostra é
explicar a estratégia de amostragem. Ou seja, como é que os indivíduos foram
selecionados para participar do estudo. A amostragem é importante para saber a
qual população os resultados poderão ser generalizados. Em todos tipos de
estudos a amostragem é crucial. A representatividade da amostra é matadora nos
estudos clinico-epidemiológicos e de diferenças individuais. Nos estudos
experimentais a amostrada é tratada como representativa da espécie humana em
geral.
g) INSTRUMENTOS
Entrar
em detalhes sobre cada um dos instrumentos é uma chatice. Não precisa. Se a
operacionalização das variáveis é bem definida, não precisa ficar entrando em
detalhes sobre cada instrumento. Basta dizer a memória de trabalho tal e tal
foi examinada por tal e tal medida, especificada em um nível genérico. P. ex., para
avaliar a consciência fonêmica eles usaram um teste de supressão de fonemas. A
maioria das medidas é bem conhecida e amplamente usada. Não precisa então
entrar em detalhes. A não ser que o instrumento desempenhe um papel crucial no
estudo. Se é um estudo descrevendo e/ou validando um instrumento novo. Ou se o
instrumento é um ponto fraco do estudo.
h) ANÁLISE
ESTATÍSTICA
Concentrar-se
apenas numa descrição geral da estratégia analítica empregada. Só entrar em
detalhes quando os autores usarem alguma técnica estatística nova ou
problemática.
i) RESULTADOS
Focar
a apresentação dos resultados nas tabelas e figuras. As tabelas e figuras são
custosas para fazer e estão lá justamente para isso. Para apresentar de forma
sucinta, esquemática e numérica os resultados. As tabelas e resultados permitem
que a gente infira os resultados princpais em um vistaço. Não tem nada melhor
do que isso. Se um resultado não está na tabela ou figura é porque ele não é
tão importante assim. Aqui não vale aquela recomendação de não usar tabelas na
apresentação. Um journal club é diferente de uma conferência ou aula. Tabelas
em aulas para um grande público são um porre. Ninguém enxerga nada no meio de
uma salade de números. Em um jornal club, pode-se e deve-se usar tabelas à
vontade. Geralmente é um grupo pequeno, de pessoas que se conhecem bem e
convivem regularmente. O ideal é que as pessoas tragam suas cópias do artigo e
na hora todo mundo examine junto os detalhes. O objetivo aqui é, justamente,
focar nos detalhes. Em um journal club a apresentação dos resultados deve ser
focada nas tabelas e gráficos. É importante também ir se acostumando a calcular
a magnitude dos efeitos, ainda que mentalmente, quando as mesmas não são
apresentadas pelos autores. A magnitude dos efeitos vai nos dizer se 1) os
resultados são teoricamente ou clinicamente significativos quando forem
estatisticamente significativos e 2) houve poder estatístico suficiente quando
a hipótese nula não puder ser rejeitada. Quando os resultados são apresentados
apenas como gráficos é importante pegar uma régua, medir o tamanho das colunas
e o tamanhos dos whiskers do erro padrão. A seguir é preciso transformar o erro
padrão em desvio padrão. O desvio padrão corresponde ao erro padrão
multiplicado pela raiz quadrada do tamanho amostral. A melhor métrica para uma
estimativa grosseira da magnitude de efeito é o coeficiente d de Cohen. O
coeficiente d é obtido dividindo a diferença entre as médias dos dois grupos
pela média do desvio padrão. A grande vantagem do escore d é que ele fornece
uma estimativa do efeito numa escala de desvio padrão (escore z). A gente se
acostuma a usar essa métrica e o resultado fica fácil de interpretar: menor que
0,3 irrelevante, de 0,3 a 0,5 fraco, 0,5 a 0,7 moderado, acima de 0,7 forte.
Sempre estimar a magnitude do efeito ao ler um paper.
j) DISCUSSÃO
A
discussão começa por um resumo dos resultados e vai expandindo, abrindo o leque.
Para o infinito e além. Ao discutir o paper é importante fazer uma análise
crítica do mesmo. Se os resultados são consistentes e válidos. Se as variáveis
confundidoras foram adequadamente controladas. Se os métodos estatísticos são
apropriados para a natureza dos dados. Se os resultados são estatisticamente,
teoricamente ou clinicamente significativos ou não. Se houve poder estatísticos
suficiente em caso de ausência de rejeição da hipótese nula, se os resultados
são consistentes com a literatura, se os resultados trazem novidade, se as
conclusões são fundamentadas nos resultados ou se os autores foram além das
suas tamanquinhas, se o estudo tem implicações teóricas, metodológicas,
práticas (clinicas ou sociais) etc. Acho legal terminar dando uma nota para o
paper, de zero a dez.
6) Leitura metódica e metodológica
A
gente deve aprender a ler ,etpdoca e metodologicamente, criticamente. É preciso
ter método ou sistemática na leitura para poder aproveitá-la. A leitura deve
ser metodológica, profissional e não amadora. Quando se lê um paper, deve-se
perguntar sempre pela sua validade. A principal questão diz respeito a se as
variáveis confundidoras foram adequadamente controladas. Outras questões dizem
respeito à amostragem, fidedignidade e validade das medidas, adequação das
técnicas estatísticas etc. Isso que eu coloquei acima é o roteiro que eu uso.
Aprender a ler critica e metodologicamente ensina a escrever bem.
7) Redação de um trabalho científico
Lembrar
sempre do formato de ampulheta. Começar pelo geral, afunilar no fim da
Introdução, Métodos e Resultados, para depois expandir na Discussão.
Formular
de forma precisa e sucinta os objetivos, conectando-os às hipóteses e ao
delineamento do estudos (controle e operacionalização das variáveis).
Escrever
primeiro os métodos e os resultados.
Escrever
a seguir a Introdução, considerando os resultados que foram obtidos.
As
questões na Introdução devem ser abordadas na mesma ordem na qual os objetivos
e resultados são apresentados.
A
Discussão é a penúltima parte a ser escrita. A Discussão retoma os resultados
de forma sucinta e vai aprofundando posteriormente cada um deles, na ordem em
que foram apresentados na Introdução e Resultados.
O
Reusmo e o Título são as últimas partes a serem escritas. São a cereja do bolo.
Aquilo que vai chamar atenção do leitor. O resumo deve ser estruturado no
formado IMRAD, ainda que as secções não precisem ser formalmente rotuladas c
omo tal. O título deve ter de 10 a 15 palavras e pode ser descritivo (menos interessante)
ou instigativo, provocativo. Na psicologia o título provocativo é muito bem
vindo. Pode-se dar uma conotação humorística, fazer alusão a algum paradoxo ou
pressuposto da psicologia intuitiva ou do conhecimento padrão etc. Esse tipo de
título chama atenção do leitor. Mas é preciso fazer uma conexão com o título na
Introdução e nas Conclusões ao final da discussão. Geralmente essa conexão com
o título é feita no início da Introdução (questão geral de pesqusia) e no final
da Discussão (Conclusões).
Para
escrever bem é preciso aprender a ler bem, isto é, ler metodicamente (com
método) e metodologicamente (criticamente, questionando a validade do estudo).
Ler e escrever são processos distintos mas intimamente conectados.
Take home message
Venha com o negócio preparado, com as frases feitas, com as idéias e resultados selecionados e organizados.
Elabore semanticamente a apresentação, procure associá-la com outras coisas que você sabe.
Mas, principalmente, não venha pensar em voz alta na frente dos colegas e professor. Traga o troço pronto. Essa é sua missão como apresentador. Nâo chateie os outros. Procure ensinar e não encher a paciência.
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