O apelo midiático da neuroimagem functional, principalmente
da ressonância magnética funcional é inegável. Não menos chamativa é a
ignorância ou má-fé com que o assunto é coberto pela imprensa. Por vezes se
estabelece um conluio entre jornalistas que não entendem nada do assunto e
cientistas inescrupolosos que desejam marquetear seu trabalho. O público sai
mal informado.
Na maioria das vezes as notícias são exageradas no sentido
positivo. As figurinhas coloridas geradas pelos métodos de neuroimagem exercem
uma apelo poderoso e transmitem a falsa sensação de que tais padrões refletem a
ativação em tempo real do cérebro engajado em uma dada tarefa.
Mas, ocasionalmente, a repercussão é negativa. Como é o caso
de uma notícia divulgada em 2016 no El País e que ressurge periodicamente no
FaceBook.
Tanto os vieses positivos quanto negativos na cobertura da mídia refletem uma
ignorância muito grande quanto às potencialidades e dificuldades associadas com
os métodos de neuroimagem funcional.
Os métodos de neuroimagem funcional permitem registrar
diferenças no fluxo sangüíneo e consumo de oxigêncio em áreas cerebrais
específicas associadas à realização de diferentes tarefas cognitivas. Tais
métodos representam um avanço extraordinário no nosso conhecimento. Pela
primeira vez estamos em condições de analisar, ainda que de modo imperfeito, como
o cérebro é ativado por diferentes tarefas cognitivas e estados
psicológicos. Há pouco tempo ainda, as únicas informações disponíveis sobre os
correlatos neurais de processos psicológicos dependiam da análise dos padrões
de comportamento de pacientes com lesões cerebrais específicas. A neuroimagem
funcional permite que tais correlações sejam investigadas in vivo e de forma
não-invasiva.
Mas os cientistas não são ingênuos a ponto de supor, ou mal-intencionados
a ponto de vender, a idéia de que os métodos de neuroimagem funcional não têm
suas limitações ou ameaças à validade. A ciência é um empreendimento precário.
Sua força advém do princípio da replicabilidade e teste de hipóteses. Os resultados
científicos são precários e provisórios, modificáveis à medida que os
conhecimentos vão se acumulando. É desse ceticismo saudável e da abertura a resultados negativos dos testes de hipóteses e refinamento metodológico que a ciência deriva
seu caráter cumulativo.
As limitações da neuroimagem funcional são por demais conhecidas
dos neurocientistas. A validade dos métodos de neuroimagem funcional advém da
sua consiliência com outras fontes de evidência e acomodação às teorias
vigentes. Nenhum método é absolutamente válido, por si só. A validade depende
da sua convergência com outras observações e com a teoria. Algumas ameaças à
validade da neuroimagem funcional são discutidas a seguir. Todas são nossas
velhas conhecidas.
1. Os métodos de neuroimagem funcional não investigam
diretamente a atividade neuronal. Eles investigam o fluxo sangüíneo e
o consumo de glicose e oxigênio regionais. Refletem, portanto, apenas de forma indireta a
ativação neuronal. Sua validade se baseia na pressuposição amplamente
demonstrada de correlação entre o fluxo sangüíneo, consumo de glicose e
oxigênio e atividade neuronal. Modificações puramente informacionais nos padrões de atividade neuronal,
que fossem independentes de variações energéticas, não seriam captadas pelos
métodos de neuroimagem funcional.
2. Os métodos de neuroimagem funcional não fornecem nenhuma
medida direta de qualquer processo psicológico. O que todos eles fazem é
comparar a atividade relacionada a uma determinada tarefa com a atividade em “repouso”
ou com a atividade durante a realização de outra tarefa. Nâo existe grau zero
de ativação na neuroimagem funcional. Mesmo em “repouso” o cérebro continua
ativo. O que os pesquisadores conseguem fazer é comparar padrões de ativação em
diferentes estados psicológicos.
3. A variabilidade interindividual nos estudos de neuroimagem
funcional é muito grande. Diferentes participantes utilizam-se de estratégias
distintas para resolver as tarefas propostas e estratégias diferentes podem
gerar padrões de ativação bem distintos.
4. A variabilidade interindividual e as diferentes estratégias
potencialmente empregadas dificultam aos estudos de neuromagem funcional
identificar quais áreas cerebrais são cruciais para a implementação de uma
determinada tarefa. Apenas a análise neuropsicológica de pacientes
cérebro-lesados e os métodos de indução de lesões temporárias por estimulação (magnética ou elétrica)
transcraniana permitem identificar as áreas cerebrais crucialmente envolvidas
com um determinado processo psicológico. Os métodos de neuroimagem funcional
atuam mais no contexto da descoberta, contribuindo para gerar hipóteses
correlação estrutura-função. Os métodos neuropsicológicos é que atuam no
contexto da verificação, contribuindo para a invalidação das hipóteses
levantadas pela neuroimagem.
5. Os métodos de neuroimagem funcional são limitados quanto à
sua resolução espacial. Os métodos de neuroimagem registram a ativação de agregados de milhões
de neurônios, não conseguindo discriminar os padrões de ativação de áreas vizinhas muito próximas entre si.
6. Uma das principais limitações dos métodos de neuroimagem funcional
diz respeito à resolução temporal. Os métodos atuais não permitem diferenciar
eventos que ocorrem numa janela temporal de dezenas a centenas de
milissegundos. Há evidências psicológicas de que essa janela temporal inferior a
um segundo é extramemente relevante para a cognição e o comportamento. Os
padrões de ativação distribuídos mostrados nas belas neuroimagens podem,
portanto, refletir tanto ativação simultânea de diferentes grupos neuronais
geograficamente dispersos, quanto ativação seqüencial de grupos neuronais
distintos.
7. Finalmente, há os problemas estatísticos. As cores usadas
nas imagens representam a probabilidade de que a ativação de uma dada área se
associe à tarefa e não ao acaso. Como nos estudos de neuroimagem são realizadas
análises repetidas da ativação de milhares de voxels (áreas com um milímetro cúbico)
surge um problema estatístico bem complexo. A realização de análises estatísticas
sobrepostas, ou seja, o cálculo das probabilidades para diferentes regiões,
inflaciona o risco de obter resultados falsos positivos. Se o critério
estatístico usado for muito frouxo, todas as áreas cerebrais podem ser
consideradas como ativadas por uma dada tarefa, aparecendo um resultado falso
positivo. Por outro lado, se o critério estatístico for muito estrito, resulta
um efeito falso negativo. Ou seja, um efeito existente pode não ser detectado.
A reportagem do El País faz um escarcéu superficial, mal-intencionado e
pouco informativo para o público em geral a partir de uma crítica metodológica
do programa SPM, o principal software estatístico usado para analisar e
construir os métodos de neuroimagem (Eklund et al., 2016). Isso é café pra lá
de requentado. E em nenhum momento os autores do artigo repercutido declaram que seus resultados
"invalidam 15 anos de pesquisa com neuroimagem funcional". Isso saiu da cabeça
do jornalista.
E não invalidam por uma razão muito simples. A validade da
neuroimagem funcional não se fundamenta apenas em um pacote ou estratégia de
análise estatística. O processo de validação é muito mais amplo e complexo.
Como mencionei acima, a estratégia usada é de validação convergente. A
neuroimagem funcional é ótima para gerar hipóteses. Tais hipóteses são retidas
se elas forem consilientes com os resultados de outros métodos (psicologia
cognitiva, neuropsicologia, neurocirugia, eletroencefalografia, potencais
evocados, simulações em computadores, teoria da evolução, antropologia,
genética etc.) e consistentes com um arcabouço teórico mais amplo. As hipóteses
geradas pela neuroimagem funcional são retidas apenas quando apoiadas por
outras fontes independentes de evidência.
Tudo isso não quer dizer que o uso da neuroimagem funcional
não possa nem deva ser aperfeiçoado. Infelizmente, a imprensa parece mais interessada
em causar sensação e criar fake news do que informar propriamente o indistinto
público. Até o Donald Trump foi citado na tal reportagem do El País. Nâo sei o que ele tem a ver com o assuntoo. Acho que entrou na dança porque, supostamente, é especialista em fake news.
Referência
Eklund A, Nichols TE, Knutsson H. Cluster
failure: Why fMRI inferences for spatial extent have inflated false-positive
rates. Proc Natl Acad Sci U S A. 2016 Jul 12;113(28):7900-5.
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