A falta de motivação para estudar e freqüentar a escola, bem
como para se comportar de forma civilizada na mesma são problemas que estão na
ordem do dia. A aversão em relação ao estudo e à escola contrasta com a demanda
por uma educação diferenciada na Era Cognitiva que vivemos. Por que o estudo e a escola são tão aversivos
para muitas crianças? Por que pais, professores e profissionais de saúde não
sabem lidar com essas dificuldades? Os motivos pelos quais muitas crianças
odeiam a escola podem ser analisado por meio de um modelo de quatro níveis. O modelo
compreende mecanismos cognitivos, comportamentais, neurais e evolucionários. O
modelo ajuda a sistematizar as evidências de forma que se possa pensar em estratégias
mais eficazes de manejo. Neste ensaio informal vou começar por uma
contextualização do problema, esboçando a seguir de forma muito resumido o
modelo. O ensaio será publicado em seis posts: a) Quatro motivos para odiar a
escola; b) Motivos cognitivos; c) Motivos comportamentais; d) Motivos neurais;
e) Motivos evolucionários; e f) Remédios. Vou procurar fazer bem que nem se
deve fazer em uma redação do ENEM. Começarei descrevendo o problema, a seguir
tento identificar suas causas e, finalmente, proponho algumas soluções
possíveis.
QUAL É O PROBLEMA?
A falta de motivação para o estudo e a indisciplina na sala
de aula constituem motivos freqüentes de consulta para neuropsicólogos e outros
profissionais da saúde e educação. Quem é pai ou mãe de mais de um filho sabe
que a motivação para o estudo e o comportamento são muito variáveis de uma
criança ou jovem para outro. A sensação que se tem, entretanto, é de que esses
problemas são cada vez mais freqüentes.
E eles não aparecem somente no ensino fundamental e médio.
Por vezes, até mesmo na graduação eu tenho a sensação de que estou empurrando
um elefante lomba acima, quando se trata de motivar os alunos para o estudo. E
o que é pior: o elefante fica esperneando o tempo todo, redobrando o meu
trabalho. Não é nada fácil convencer os alunos de que é uma boa para eles o que
eu tenho a ensinar. A falta de motivação dos alunos de graduação contrasta com
o interesse dos alunos de pós-graduação. Parece que leva cada vez mais tempo
para que os jovens se convençam de que precisam aprender para ser alguém na
vida.
Essas percepções subjetivas de pai, clínico e professor
universitário são corroboradas pela experiência de professoras do nosso círculo
de relacionamentos e pela imprensa. Quem não tem uma parente ou amiga
professora que foi ameaçada ou agredida pelos seus alunos? A mídia está
freqüentemente relatando casos e mais casos de conflitos entre alunos e
professores. Muitas vezes com conseqüências desastrosas para ambas as partes. Muitas
professoras são agredidas verbalmente e fisicamente pelos alunos. Basta
googlear um pouquinho para aquilatar a dimensão do problema. As agressões a
professores escalaram durante as invasões a escolas e faculdades ocorridas em
2016. Inúmeros casos foram relatados, p. ex., de professores universitários
agredidos, inclusive fisicamente, por cometerem o pecado de querer dar aulas,
contrariando assim uma agenda política.
Mas as professoras não são a única parte agredida.
Infelizmente, os alunos também são, muitas vezes submetidos a toda sorte de
abusos. Incluindo abuso físico. Numa creche que meus filhos freqüentavam, certa
vez eu vi uma professora sacudindo uma criança. Devia ser uma criança
mal-comportada. A professora ficou constrangida. Só que, ao invés de se
emendar, ela resolveu descontar em um dos meus filhos, que por acaso também
poderia ser caracterizado como mal-comportado, conforme o critério que se
usasse. O menino pagou os pecados na tal creche, que apesar de ser pública, nos
custava bem caro.
O abuso moral dos alunos pode assumir diversas formas, das
mais às menos sutis. Algumas professoras relatam que o motivo do encaminhamento
para a investigação neuropsicológica é que a criança é “burra” ou “lerda” e que
“não aprende”. Felizmente isso é relativamente raro. Mas acontece com uma
freqüência maior do que o desejável.
Certa vez nós estávamos atendendo dois irmãos gêmeos,
extremamente agitados mas inteligentes. A professora tinha umas carinhas
felizes e umas carinhas tristes que ela colocava no caderno dos meninos
conforme o seu desempenho. Acertou quem respondeu que eles só ganhavam carinhas
tristes. Dá para ser feliz recebendo apenas carinhas tristes no caderno? Uma
das observações no caderno era assim: “O fulaninho é uma criança tão linda e
inteligente. Pena que seja tão mal comportado”.
Outro problema observado
com alguma freqüência é a negligência em relação a abusos por parte de
colegas. As crianças com deficiência intelectual, problemas de aprendizagem e
de comportamento têm uma probabilidade maior de sofrerem abuso físico e moral
por parte dos colegas. Trata-se do infame “bullying”. Segundo o relato de pais
e crianças e pela minha própria experiência como pai, não é incomum que as
professoras e autoridades escolares ignorem as situações em que uma criança está
sendo vítima de bullying. Encarar o problema e tomar as medidas necessárias
pode dar bastante trabalho, além de ser desgastante. Adicionalmente, as escolas
privadas não querem perder alunos. Por mais problemáticos que eventualmente sejam.
Uma forma refinada de abuso é a doutrinação ideológica. O
problema é tão grave a ponto de segmentos da Sociedade Brasileira,
costumeiramente tão apática, reagirem com um movimento vigoroso pela “Escola sem Partido”. O movimento pela
Escola sem Partido não é imune a efeitos colaterais. Pode colocar em cheque um
dos pilares da educação, que é a liberdade de cátedra. Até que ponto um
professor pode ir na defesa das suas convicções políticas e morais? Inegavelmente,
o limite já foi ultrapassado há muito tempo. Mas o que fazer? Acho que não dá
pra instalar uma “polícia da neutralidade política e da moralidade” nas
escolas. Isso representaria o fim da liberdade acadêmica. O que fazer então
quando nossos filhos e clientes são submetidos às ideologias e concepções
morais mais exóticas? O Escola sem Partidos tem o mérito de levantar essa
questão e apenas abre os olhos de pais e alunos para os seus direitos. Ou seja,
para o fato de que eles não são obrigados a se submeterem a processos mais ou
menos explícitos de lavagem cerebral. E que têm o direito constitucional de se
defenderem.
Ah, mas quem disse que a doutrinação ideológica na escola
afeta a motivação dos alunos? Afeta sim. Posso dar o exemplo dos meus filhos. Ao
longo dos inúmeros ENEMs da vida que prestaram para entrar na Universidade,
eles faziam uma brincadeira: “Tirar nota boa na área de ciências humanas é
muito fácil. Basta selecionar a opção mais comunista e contrária ao senso comum”.
Eles tinham também uma consciência muito clara do que era esperado deles na
redação do ENEM: “Descrever uma situação socialmente problemática, demonstrar
indignação politicamente correta e propor alguma solução estatizante para o
problema. De preferência algum tipo de legislação que interfira com os costumes
das pessoas”. A prova maior de que a
doutrinação ideológica afeta a motivação dos alunos é o fato de que propicia o
desenvolvimento das atitudes cínicas que foram descritas. Cinismo esse, aliás, que é típico dos regimes
totalitários e atesta uma hegemonia de opinião.
A gravidade dos problemas motivacionais e disciplinares pode
ser auferida pelo resultado de pesquisas internacionais. Periodicamente a mídia
repercute os resultados de uma pesquisa da OECD chamada TALIS (Teaching and
Learning International Survey) ().
Segundo os resultados da versão de 2013 o Brasil é campeão em mau comportamento
na sala de aula. As professoras relatam que gastam de 10% a 30% do tempo em
sala de aula para resolver questões disciplinares (mediana = 20%). A mediana
para quase 40 países participantes da pesquisa é igual a 10% do tempo, variando
de 6% a 16%.
O Brasil e o México se alternam na liderança em mau
comportamento. No caso brasileiro, os relato de vivências de professoras foram
de 11% para vandalismo e roubo, 35% para intimidação verbal entre alunos, 7% para
ferimentos físicos entre alunos, 13% para intimidação verbal a professores e 7%
para uso e posse de drogas etc. Frente a essa situação e anomia social, aliada
às condições de trabalho inadequadas, encargos crescentes relacionados à
inclusão e falta de supervisão, além dos baixos salários, não é de surpreender
que a exaustão emocional ligada ao trabalho (burnout) seja um tema recorrente
entre professoras.
O que está acontecendo? Talvez os nossos curumins sejam
mesmo muito rebeldes ou não recebam a dose suficiente de “limites” em casa. Talvez
as nossas professoras não sejam suficientemente preparadas nos cursos de
pedagogia para lidar com as questões disciplinares. Ou ainda, talvez os
profissionais de saúde mental não sejam habilitados a orientar pais e professores
quanto às estratégias motivacionais e disciplinares mais eficientes e, ao mesmo
tempo, promotoras da autonomia individual.
Mas será que a psicologia tem algum remédio para o mal da
desmotivação e mau-comportamento? Eu acredito que sim e procurarei demonstrá-lo
ao longo dos próximos posts. A psicologia cognitiva e comportamental, as
neurociências e a psicologia evolucionista desenvolveram uma série de modelos
empiricamente fundamentos que permitem uma compreensão mais abrangente e
aprofundada das questões motivacionais e disciplinares no contexto familiar e escolar.
Não se trata, obviamente, de nenhuma panacéia. Mas sim, de estratégias que
podem ser eficazes no limite do que a realidade permite. Surpreendemente, esses
avanços científicos, alguns dos quais remontam a décadas, permanecem
desconhecidos por profissionais da educação e da saúde mental. A seguir ofereço
um aperitivo dos quatro níveis de análise do modelo.
RESUMO DO MODELO
Motivos cognitivos: As habilidades escolares são aversivas.
Ninguém nasce gostando de estudar. Estudar é um comportamento aprendido.
Aprender na escola exige postergação da gratificação, concentração, esforço,
persistência. Para adquirir gosto pelo estudo é necessário obter sucesso. O
fracasso em aprender é desmotivamente. O fracasso escolar pode estar
relacionado a características da criança, da professora ou do contexto familiar
e escolar. As abordagens educacionias baseadas na aprendizagem por colaboração
e descoberta podem impor uma sobrecarga de processamento à memória de trabalho
dos alunos. Confrontada com problemas mal descritos em situações pouco
estruturadas, a criança dispende sua capacidade de processamento na busca de
uma solução por tentativa e erro, restando menos recursos cognitivos para a
memorização. A importância do conhecimento também não tem sido suficientemente
reconhecida e valorizada. Crianças mais pobres apresentam dificuldades culturais,
um déficit de conhecimento, que precisa ser suprido de modo a que elas
desenvolvam habilidades escolares mais avançadas. A compreensão de textos, p.
ex., depende fundamentalmente do vocabulário, ou seja, conhecimento de mundo. A
aprendizagem por descoberta favorece a curiosidade e a iniciativa. Mas, os
métodos instrucionais podem ser imprescindíveis para alunos que têm
dificuldades.
Motivos cognitivos: As atividades escolares precisam
competir com outras ocupações que são intrinsecamente reforçatórias, tais como
a TV, o videogame, a internet e o jogo de bola. A concorrência é desleal.
Estratégias precisam ser desenvolvidas para aumentar o nível de controle
percebido dos alunos para que eles se engajem nas atividades. Algumas crianças
têm muita dificuldade para postergar a recompensa. Essas crianças tendem a se
desmotivar e/ou a emitir comportamentos inadequados. Os comportamentos inadequados
são então diferencialmente reforçados pelos adultos. O resultado é um ciclo
vicioso de interações coercivas no qual, ao tentar coibir os comportamentos inadequados
da criança, o adulto acaba reforçando-os. Motivar os alunos para o estudo
depende de uma compreensão da natureza intrinsecamente aversiva das atividades
escolaes para muitas crianças e do desenvolvimento de estratégias de
reforçamento sistemático através de adequação curricular e modelagem, que lhes
permitam aumentar gradualmente o envolvimento com as tarefas acadêmicas.
Motivos neurais: Existe um dissociação relativa no processo
de maturação de sistemas dopaminérgicos regularadores do comportamento motivado
e da cognição na adolescência. Os mecanismos cognitivos frontoestriatais
relacionados à capacidade de processamento na memória de trabalho amadurecem
mais cedo do que os mecanismos antecipatórios das conseqüências hedônicas das
decisões. A alta capacidade de memória de trabalho e resolução de problemas
hipotético-dedutivos, relacionadas às funções do córtex prefrontal
dorsolateral, contrasta com a miopia para as conseqüências potencialmente
desastrosas associadas a determinados comportamentos de risco. Os mecanismos
antecipatórios das conseqüências do comportamento são implementados com a ajuda
do córtex prefrontal ventromedial, encontrando-se ainda relativamente imaturos
na adolescência. Adicionalmente, o comportamento motivado dos adolescentes é
fortemente enviesado para a gratificação imediata, integrada no nucleus
accumbens, em detrimento dos motivos de prudência integrados pela amígdala. A
família e a escola precisam desenvolver estratégias para compensar o
imediatismo hedônico dos jovens, de modo que eles não comprometam seu futuro.
Motivos evolucionários: As estratégias
reprodutivas humanas podem ser epigeneticamente reguladas para duas trajetórias.
Uma mais qualitativa, caracterizada pela postergação da puberdade e do início
da atividade sexual, seletividade sexual, investimento parental maciço em um
número menor de filhos e, de uma modo geral, pelas virtudes associadas à
temperança. A outra estratégia reprodutiva é quantitativa, caracterizando-se
pela antecipação da puberdade e do início da atividade sexual, promiscuidade
sexual, investimento parental baixo em um número maior de filhos, associando-se
a dificuldades mais genéricas de aversão à postergação do reforço. Quando a
ecologia familiar é mais estável, havendo disponibilidade de recursos, a
estratégia qualitativa pode prosperar. Em ecologias adversas, a estratégia
quantitativa é mais eficiente do ponto de vista de mandar os genes de uma
geração para outra. Ainda que possa resultar em infelicidade e comportamentos
psicossocialmente desadaptativos no nível do indivíduo. Segundo o modelo de
previsão do tempo, a carência de recursos, promiscuidade, falta de estrutura
familiar, vivências de negligência e abuso, modelos agressivos etc. na primeira
infância predispõem o indivíduoa enveredar por uma estratégia reprodutiva
quantitativa. Estratégia quantitativa essa que se associa a baixo engajamento
no estudo e comportamentos socialmente inadequados.
CONCLUSÃO
Esse modelo é tão abrangente que não pode ser testado empiricamente na sua totalidade. Mas cada componente do modelo se baseia nas melhores evidências científicas. Clinicamente, esse modelo integrativo da motivação escolar tem orientado meu trabalo com pais e professores. O modelo pode ser usado como arcabouço teórico para orientar pais e professores de crianças com dificuldades motivacionais e comportamentos inadquados na escola. Quero quer que pode ajudar a melhorar a educação dos nossos curuminzinhos.
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