Haase, V. G. (2016). Programade de Capacitação em Neuropsicologia do Desenvolvimento para as APAES de Minas Gerais:Expectativas e desafios.
Há pouco mais de trinta
anos eu estava fazendo a residência médica em neuropediatria na Santa Casa de
Porto Alegre. Uma tia minha se envolveu na criação de uma APAE na cidade de
Antônio Prado, na Serra Gaúcha. Minha tia convidou-me para colaborar no
projeto. E eu aceitei de bom grado. Viajei várias vezes para Antônio Prado nos
fins de semana e fiz exame neurológico em todos os alunos matriculados na APAE.
Na época foi um desafio
considerável. Um desafio enorme para minha tia e suas colegas do projeto, que
estavam começando do zero. Mas, principalmente para mim. Eu também estava começando praticamente do zero.
Tinha muito pouco conhecimento, pouca experiência. E não tinha à minha
disposição exames sofisticados tais como neuroimagem ou avaliações genéticas
clinicas e laboratoriais.
O desafio era então como
ajudar as pessoas, as famílias, os alunos e os profissionais, apenas com os
parcos recusos clinicos que eu havia desenvolvido até então: história clinica,
exame neurológico e raciocínio diagnóstico.
Todos começamos
praticamente do zero. Eu tentanto descobrir como aplicar na prática os poucos
conhecimentos adquiridos na faculdade. As APAES de Antônio Prado e de todas
outras cidades brasileiras também: identificando alunos, recrutando
profissionais e voluntários, criando equipes e estrutura física, arrumando
financiamento, trabalhando com as famílias, formulando e implementos projetos
pedagógicos etc. etc.
Quando o sociólogo
francês Alexis de Tocqueville esteve viajando pelos Estados Unidos no ínicio do
Século XIX ele ficou impressionadíssimo com o associativismo, que foi
identificado como uma das principais características da sociedade americana.
Hoje em dia dizemos que associativismo é capital social.
Aqui no Brasil, as APAES constituem um dos mais belos exemplos de associativismo. Todas as APAES começaram do nada, a partir da garra de pais, educadores, profissionais de saúde e pessoas interessadas em melhorar a educação e assistência social e de saúde a pessoas com deficiências, principalmente intelectual e autismo, e suas famílias. Um dos principais indicadores de desenvolvimento humano é a qualidade da assistência que uma sociedade presta a pessoas que por uma razão ou outra têm dificuldades para se inserir no mercado de trabalho.
As APAES têm origem na
comunidade, a partir da iniciativa de cidadãos, de baixo para cima e
independentemente de ideologias políticas ou iniciativas estatais. O movimento
foi crescendo e se organizando. Hoje existe uma rede organizada que propicia
toda uma infraestrutura e tende a se expandir.
Fico muito feliz em
poder colaborar com a APAE de Belo Horizonte e com a Federação das APAES de
Minas Gerais no Programa de Capacitação em Neuropsicologia do Desenvolvimento
(PCND). Uma das coisas que eu percebi
desde o início, durante as minhas visitas à APAE de Antônio Prado, é a
importância e o potencial da neuropsicologia para a educação de pessoas com
deficiência intelectual e autismo.
A variabilidade é a
característica definitória dos fenômenos biológicos. As apresentações
fenotípicas de deficiência intelectual e autismo são extremamente variáveis e
precisam ser consideradas no processo educacional. As pessoas apresentam
variabilidade interindividual em uma série de características com potencial
para afetar a aprendizagem e o funcionamento adaptativo, tais como
personalidade, habilidades perceptuais e motoras, habilidades lingüísticas,
habilidades visoespaciais, habilidades numéricas, inteligência etc. etc.
A avaliação
neuropsicológica contribui para caracterizar o fenótipo cognitivo e
comportamental de diversos síndromes e transtornos que se associam com
deficiência intelectual e autismo. A caracterização do perfil de pontos fracos
e pontos fortes é essencial para a individualização do currículo. Um currículo
muito difícil, que negligencia as dificuldades do aluno, é fonte de estresse e
desmotivação. Por outro lado, um currículo muito fácil, aquém das capacidades
do aluno, não promove o desenvolvimento e também pode ser causa de desmotivação
e desadaptação.
Antônio Prado é uma das cidades mais lindas que eu conheço. Vejam as belíssimas casas tombadas que remontam à época da Colonização Italiana. Saudades de Antônio Prado!
Essa experiência
modesta na APAE de Antônio Prado certamente foi um dos muitos fatores que
despertou em mim o interesse pela neuropsicologia. Na época não havia
neuropsicologia no Brasil. A neuropsicologia também começou do zero. Mas foi
crescendo.
Atualmente dispomos no
Brasil de uma comunidade considerável de pesquisadores e clínicos na área de
neuropsicologia. Fico feliz e orgulhoso em pensar que, talvez, os meus mais de trinta
anos de trabalho possam ter contribuído para consolidar essa área no Brasil.
A viabilidade do PCND
depende da existência de profissionais, docentes e pesquisadores na área de
neuropsicologia do desenvolvimento, com perícia na avaliação cognitiva e
comportamental, diagnóstico do impacto biopsicossocial das condições de saúde e
diagnóstico e intervenções comportamentais com famílias.
Mas a viabilidade do
PCND depende crucialmente da existência de uma rede de APAEs, de federações
estaduais e nacional, que asseguram a infraestrutura necessária, bem como de
dispositivos legais no Estado que permitem a captação de recursos financeiros
junto à iniciativa privada através da renúncia fiscal.
É a partir da
integração desses diversos fatores que o PCND está se tornando realidade. À
medida que as APAEs e a neuropsicologia cresceram, os desafios também foram
sendo elevados. O sarrafo foi subindo. O desafio que nos colocamos é capacitar
350 educadores das APAEs de Minas Gerais na área de neuropsicologia do
desenvolvimento.
Um número tão grande
alunos só pode ser atendido através da educação à distância. É aí que entra o
Centro de Apoio à Educação à Distância (CAED) da UFMG. A expertise e a
estrutura montadas pelo CAED viabilizam a operacionalização do projeto a um
custo-benefício eficiente e realista.
É uma felicidade e uma
honra poder participar de um projeto com a envergadura clinica, educacional e
social do PCND da APAE de BH e da Federação das APAEs de Minas Gerais. A
capacitação dos educadores das APAEs na área de neuropsicologia do
desenvolvimento certamente contribuirá para uma individualização dos projetos
educacionais dos alunos atendidos.
Discute-se muito no
Brasil atual os modelos de educação para pessoas com deficiência intelectual e
autismo. Diversos grupos de pressão e até mesmo o Governo Federal tentam
excluir as escolas especiais como uma opção educacional para essa clientela. A
escola especial virou anátema e ocorre uma forte pressão governamental em favor
de um modelo tipo tamanho único, de “inclusão” em escolas regulares.
“Inclusão” em escolas
regulares que ocorre sem um planejamento adequado, sem a formação de recursos
humanos, sem a disponibilização de recursos materais. E que, justamente por
causa dessa desorganização acaba sendo mais excludente do que inclusiva. É
interessante observar o contraste entre as APAES, que nasceram de baixo para
cima e estão se desenvolvendo e aperfeiçoando há sessenta anos, com as
“políticas públicas” gestadas nos gabinetes de burocratas ideologicamente
orientados e implementadas de cima para baixo sem levar em consideração o mundo
real e as necessidades objetivas e subjetivas das pessoas envolvidas.
A dicotomia entre
“escola especial” e “escola regular” é falsa. Não existe antinomia. Ambas
abordagens são complementares, se o objetivo é uma inclusão real. A
neuropsicologia pode ajudar a caracterizar o perfil do aluno e da família.
Fornecendo assim informações sobre as diferenças individuais, as quais precisam
ser integradas ao planejamento pedagógico individualizado.
Um determinado tipo de
currículo é melhor trabalhado em um certo tipo de escola, outro currículo em
outra escola. O tipo de posicionamento escolar depende também das
características do aluno, da fase do desenvolvimento em que se encontra,
das características e recursos da
família e da disponibilidade de recursos na comunidade. As APAEs estão
desenvolvendo e aperfeiçoando essa infraestrutura há mais de sessenta anos.
Tenho certeza de que a neuropsicologia tem muito contribuir com esse case de
sucesso.
Obs. Informações sobre o Programa de Capacitação em Neuropsicologia do Desenvolvimento (PCND) para as APAEs de Minas Gerais podem ser obtidas no site do PCND.
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