Sunday, May 14, 2017

ALFABETIZAÇÃO PELO MÉTODO DE VIRAÇÃO PRÓPRIA



Ao assumir o seu segundo mandato como presidente, Dilma Rousseff ameaçou adotar o lema “Pátria educadora” como mote do seu governo. O Governo Federal lançou com estardalhaço várias iniciativas, tais como Pacto Pela Alfabetização da Idade Certa (http://pacto.mec.gov.br/) e, mais recentemente, a Base Nacional Comum Curricular (http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio). 


Tudo farol. Ao mesmo tempo, o Governo Federal cortou e vai continuar cortando impiedosamente as verbas para educação. Ainda bem, pelo menos eles não vão ficar enterrando mais dinheiro em políticas que não têm fundamento e que não vão dar em nada que preste.

Essas e outras questões relativas à políticas públicas para alfabetização e transtornos de aprendizagem, incluindo dislexia, serão discutidas no curso. Será salientando, p. ex. que as tais bases curriculares não têm uma fundamentação científica sólida, sua base é puramente ideológica. Para comprovar isso basta examinar a lista de referências bibliográficas que fundamentam os documentos da Alfabetização na Idade Certa e da Base Curricular. São citados apenas autores nacionais e estudos qualitativos. Quando algum autor estrangeiro é citado, a referência se dá de segunda mão (vide Araújo e Oliveira, 2015, http://www.alfaebeto.org.br/wp-content/uploads/2015/11/Bases-curriculares-de-Ciências_20151128.pdf).

Tente procurar alguma referência sobre psicologia cognitiva, modelos cognitivos, processamento fonológico, consciência fonêmica, nomeação rápida automatizada, memória de trabalho, funções executivas, genética quantitativa e molecular, neuroimagem e neurociência etc. e você não encontrará nada. Nequinhas de Pitibiribas. Tudo que você vai encontrar são opiniões de ideólogos, empiricamente não fundamentadas e/ou resultados de “pesquisas” qualitativas. Assim não dá. É uma indigência intelectual. E o pagador de impostos vai continuar trabalhando para despejar dinehrio nessa baboseira?

No caso da alfabetização, o dogmatismo chega a ser perverso. Aqui no Brasil goza de enorme prestígio uma ideologia do “Letramento”, segundo a qual a criança precisa aprender a ler num contexto significativo da vida cotidiana, trabalhando com textos e com materiais que façam sentido para sua vida cotidiana. O objetivo é formar o tal cidadão crítico, de preferência politicamente enviesado para a esquerda.

Não tem nada de errado com o tal letramento em si. É ótimo que as crianças aprendam se divertindo, que tenham oportunidade para tematizar assuntos relevantes para sua vida etc. etc. Nada contra. Só que para ler textos, a criança precisa poder decodificar as palavras. Botar as crianças numas de ler textos sem ter previamente aprendido a decodificar as palavras é uma perversidade. É colocar a carroça na frente dos bois. É colocar cada menino numas de reinventar na sua cabeça a escrita.

Por que isso? Não seria mais fácil, simplesmente ensinar as crianças os princípios da ortografia e assim prepara-las melhor e mais rápida e eficientemente para trabalhar com textos? No caso das línguas ocidentais, como o Português, o sistema é alfabético. Então a criança precisa descobrir ou ser ensinada que existem relações sistemáticas entre os grafemas e os fonemas. Depois precisa exercitar bastante o negócio de modo a tornar a leitura fluente e prazeirosa. Só isso.

Uma outra coisa que é muito perigosa é o tal foco no contexto, da vida cotidiana etc. As pessoas, por mais pobres e ignorantes que sejam, não precisam de nenhuma pedagogia para aprenderem a lidar com o contexto da sua vida cotidiana. Os seres humanos são geneticamente pré-programados para isso através de uma série de habilidades cognitivas biologicamente primárias, tais como a linguagem oral (Geary, 2008). Ninguém precisa ser ensinado a falar. As pessoas são intrinsecamente motivadas para a linguagem e a linguagem oral se desenvolve de forma espontânea. Faz parte do equipamento cognitivo padrão da espécie e não exige nenhuma pedagogia. Basta conviver com uma comunidade falante de alguma língua nativa.

Com a leitura e escrita é uma coisa totalmente distinta. A escrita é um artefato culturalmente inventado e recente, para o qual os humanos não são dotados de uma intuição ou motivação específica. A leitura/escrita é uma habilidade cognitiva biologicamente secundária que exige uma pedagogia e que é motivada de forma cognitivamente mediada (Geary, 2008).

A aprendizagem da leitura e escrita exige instrução formal e treino para automatizar o reconhecimento visual das palavras. O resto é blá blá blá pseudopedagógico. As crianças não são intrinsecamente motivadas para aprender a ler. A motivação para aprenziagem escolar é mediada cognitivamente por objetivos abstratos que precisam ser representados na memória de trabalho e são projetados para o futuro. Pode-se aprender a gostar de estudar. Mas isso exige uma pedagogia e não apenas blá blá blá.

Muitas crianças, principalmente as de classe média, aprendem a ler por conta própria e muito cedo. Elas intuem o princípio alfabético e começam a mandar brasa. Mas há crianças que não conseguem fazer isso sem algum tipo de instrução e treinamento. O que está acontecendo no Brasil é que essas crianças estão sendo “ensinadas” pelo MVP, ou seja, método da viração própria.

O MVP é ótimo quando funciona. Principalmente quando o indíviduo tem uma boa capacidade intelectual, não tem nenhum déficit específico, tem um bom vocabulário e acesso a informação, vem de um lar estruturado etc. etc. Quando essas condições não são dadas à criança é uma perversidade achar que elas vão aprender se virando por contar própria.

Nâo vão não. Ao contrário. Elas vão ficar cada vez mais presas no seu contexto, no seu mundinho, na sua cultura limitada. E não terão acesso à cultura superior ao pensamento científico, à filosofia etc. O objetivo da educação é ajudar as pessoas a transcender seu contexto. A ter acesso a formas mais abstratas e universais de conhecimento. É por causa disso que a educação é um dos principais veículos de ascensão social. A educação digna do nome permite ao individuo ter acesso a outros valores, informações e habilidades que não são cultivados no seu ambiente de origem. Esse ramerrão contextualista só serve para prender mais ainda as pessoas ao seu contexto original, privando-as do acesso a uma melhor qualificação sociocompetitiva e profissional.

Essas “pedagogias” pós-modernas, relativistas, construtivistas, críticas etc. etc .são ótimas para que as crianças aprendam aquilo que elas aprenderiam por conta própria. Ou seja, aquilo que o seu contexto lhes proporcionaria de qualquer maneira. Mas jamais para transcender as eventuais limitações do seu ambiente de origem.

Como miséria pouca é bobagem, a tal Base Curricular vai mais adiante. A proposta é redefinir a cultura brasileira, retirando-lhe o viés eurocêntrico. Isso é o que está colocado na proposta para a História. O ensino da História não deveria mais respeitar a cronologia tradicional e a divisão em períodos históricos. Ao invés disso, a ênfase deve recair sobre a cultura ameríndia e africana.

Nada contra as culturas ameríndia e africana. Acho que os alunos devem mesmo aprender o máximo que for possível e se souber sobre isso. A questão subjacente é a definição e perfilhamento do Brasil no Mundo contemporâneo. Somos um país ocidental ou não? Nossa matriz cultural, nossa identidade é ocidental ou o quê?

É engraçado. Eu sempre me considerei um ocidental. Não sou religioso, mas sou profundamente ligado na moral judaico-cristã, na racionalidade grega e no direito romano. Tem um poema famoso do Cesário Verde, o “Sentimento dum Ocidental” (http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v039.txt). Até recentemente eu vivia bem como ocidental. Era feliz. Tá certo que eu era um ocidental da periferia do Ocidente. Mas, ainda assim, não achava que houvesse qualquer coisa de errado nisso. Agora aprendo que não pode ser assim. Que ser ocidental é do mal e que as crianças brasileiras devem se criar ignorantes daquilo tudo que a Civilização Ocidental construí, da sua literatura, ciência, tecnologia, cronologia e História. Assim, supostamente, o Brasil ficaria melhor.

Para encerrar. Um aluno gostava de fazer troça comigo. Ele sempre dizia que eu ficava tirando onda e falando mal do construtivismo, mas que na verdade eu sou o maior construtivista. E sou mesmo. Quando o construtivismo funciona. E quando o construtivismo funciona? P. ex., nas universidades federais. Uma série de alunos brilhantes são selecionados e são colocados a aprender pelo MVP. A qualidade dos professores e das aulas é muito variável. Tem professor que é luminiar. Tem professor que é energúmeno. Tem professor que dá aula e professor que não dá aula. E os alunosprecisam se virar se quiserem aprender. Mas eles podem, uma vez que são amostrados dos estrados superiores de desempenho cognitivo e motivação para o estudo.

O MVP é o lado negativo do “construtivismo” nas universidades federais brasileiras. Tem o lado o positivo, representado pela iniciação científica (IC) A IC é o melhor negócio que temos nas universidades brasileiras. É ímpar no mundo e, certamente, já está dando frutos e vai render mais ainda. Na IC, alunos motivados começam a interagir com um professor e com uma equipe de pós-graduandos e alunos mais adiantados de IC com o intuito de resolver problemas reais de pesquisa. O professor e os alunos são colaboradores. O professor tem mais experiência e ensina, mas também aprende demais com os alunos. É um belo exemplo de construtivismo. Mas para quem pode.

Querer que crianças com dificuldades de aprendizagem ou provenientes de lares menos estruturados e desfavorecidos socioeconomicamente aprendam pelo MVP é uma tremenda sacanagem e não ajuda nada a educação, o desenvolvimento e a felicidade do nosso povo.

Referências

Araújo e Oliveira, J. B. (2015). Bases curriculares de ciências: o que dizem as evidências e melhores práticas. http://www.alfaebeto.org.br/wp-content/uploads/2015/11/Bases-curriculares-de-Ciências_20151128.pdf

Geary, D. C. (2008). An evolutionary informed education science. Educational Psychologist, 43, 179-195.

Governo Federal, Ministério da Educação (s.d). Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. http://pacto.mec.gov.br/

Governo Federal, Ministério da Educação (2015). Base Nacional Comum Curricular. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio

Maro Filósofo (2015). Por que o MEC quer mudar as bases curriculares da disciplina de História? https://www.youtube.com/watch?v=8eW7CDacGgo

Verde, C. (s. d.) Sentimento dum Ocidental. http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v039.txt

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