É
inegável que a fMRI está contribuindo enormemente para a nossa
compreensão da dislexia. Mas, ao mesmo tempo, parece que mais perguntas
estão sendo levantadas do que respondidas. Algumas coisas já se pode
afirmar de concreto: a) Um padrão consistente de alterações na ativação
cerebral é observado em três áreas do hemisfério esquerdo, o córtex
occipito-temporal, o córtex têmporo-parietal e córtex frontal inferior
(Maisog et al., 2008); b) os padrões de ativação ajudam a prever a
evolução e a resposta a intervenções pedagógicas (Hoeft et al., 2011);
c) as intervenções cognitivas modificam os padrões de ativação no córtex
do hemisfério esquerdo (Shaywitz et al., 2004).
É bastante coisa. Através desses resultados fica estabelecido que a) a dislexia se associa a alterações na ativação neurofuncional do hemisfério esquerdo e b) as intervenções cognitivas produzem alterações nesses padrões de ativação neurofuncional. Mas, ao mesmo tempo é pouca coisa, e muito menos do que precisamos saber. Uma das maiores dificuldades tem sido a falta de consistência de um estudo para outro e a dificuldade para interpretar os padrões de ativação em termos dos modelos de correlação estrutura-função atualmente disponíveis.
Alguns estudos, mostram aumento de ativação no córtex frontal inferior e diminuição da ativação nas áreas posteriores do hemisfério esquerdo (Shaywitz et al., 2002). O aumento de ativação no córtex frontal inferior poderia ser compensatório à diminuição de ativação nas regiões corticais posteriores. Sabe-se que a aquisição de uma nova habilidade se acompanha de ativação de áreas frontais na fase inicial quando a tarefa requer processamento controlado (Zamarian et al., 2009). À medida que a tarefa vai sendo automatizada, o foco de ativação é transferido para regiões corticais posteriores e/ou subcorticais. Apesar de esses resultados e hipóteses serem interessantes, eles não foram confirmados por outros estudos, os quais mostraram diminuição de ativação também no córtex frontal inferior em indivíduos com dislexia (Barquero et al., 2014).
Pugh e cols. (2008) observaram que tarefas fonológicas mais fáceis ativavam o córtex frontal de indivíduos com dislexia comparativamente a controles. Por outro lado, tarefas mais difíceis ativavam o córtex frontal em indivíduos sem dislexia em comparação com disléxicos. Esses resultados sugerem uma curva de ativação em U invertido. A ativação do córtex frontal inferior esquerdo aumentaria â medida que o indivíduo fosse adquirindo perícia na tarefa até chegar a um nível máximo. Posteriormente o nível de ativação declinaria em função da automatização. Segundo essa perspectiva a diferença entre indivíduos com e sem dislexia seria no ritmo de aprendizagem. Pessoas com e sem dislexia estariam em fases distintas do processos de aprendizagem. Os disléxicos simplesmente teriam dificuldade ou precisariam de mais tempo para recrutar e ativar a rede neural subjacente à leitura.
Mas a hipótese dos pontos distintos em uma função de aprendizagem em forma de U invertido pressupõe que o problema na dislexia é de origem maturacional. Ou seja, que as pessoas com dislexia apresentam uma defasagem na aprendizagem da leitura e que eventualmente, eles vão encarreirar. Dados de observação longitudinal indicam, entretanto, que pode não ser assim. As dificuldades dos indivíduos disléxicos persistem comparativamente a indivíduos sem dislexia e não ocorre catch-up (Shaywitz et al., 1999).
Uma outra inconsistência diz respeito às ativações do hemisfério direito e de regiões fora da área perisilviana central da linguagem observadas em diversos estudos (Barquero et al., 2014, Maisog et al., 2008). A multiplicidade de áreas ativadas nos estudos de neuroimagem funcional é um problema importante com esse tipo de estudo. A partir dos padrões distribuídos de atividade não fica claro quais áreas desempenham um papel crucial para a tarefa e quais ativações desempenham um papel secundário, sendo possivelmente resultantes de fatores relacionados ao formato ou conteúdo específico das tarefas (Shallice & Cooper, 2011). Somente os estudos com paciente permitem identificar as áreas que constituem pré-requisitos indispensáveis para um determinado processo cognitivo (Rorden & Karnath, 2004).
A baixa resolução temporal dos métodos atuais de neuroimagem funcional também não permite identificar padrões de ativação seqüencial em uma escala de algumas dezenas a centenas de milissegundos (Sahin et al., 2009). Dessa forma, a partir dos padrões de ativação dispersos por vários regiões, frequentemente observados nos estudos de neuroimagem funcional, pode ser bem complexo fazer inferências quanto às correlações anátomo-funcionais. A resolução dessas questões depende do desenvolvimento de métodos de neuroimagem funcional que aliem a resolução espacial a uma melhor resolução temporal.
Nos últimos dez anos a fMRI tem sido usada também para prever a resposta a intervenções cognitivas bem como para registrar as modificações dos padrões de ativação decorrentes das intervenções (Barquero et al., 2014). Novas inconsistências surgiram a partir desses trabalhos. O número de estudos para metanálise ainda é pequeno (Barquero et al., 2014, Mosag et al., 2008), de modos que fica impossível identificar algum padrão específicos de modificação que possa ser atribuído ao tratamento. Geralmente o que se observa são diferenças de ativação possivelmente induzidas pelo tratamento em múltiplas áreas dispersas, tanto no córtex quanto em regiões subcorticais (vide Figura). Até o momento, ainda não emergiu um padrão consistente e específico de resposta às intervenções realizadas.
Diversas diferenças metodológicas entre os estudos podem explicar as discrepâncias, tais como critérios de seleção das amostras e tarefas experimentais, idade dos participantes, fase no processo de aprendizagem da leitura etc. Uma parcela das dificuldades em estabelecer padrões coerentes de correlação estrutura-função pode se dever, entretanto, a um pressuposto freqüente nos estudos de neuroimagem funcional (Hadzibeganovic et al., 2010). Um grande número de estudos assume que existe apenas um tipo de dislexia e que o déficit subjacente é de natureza fonológica, ignorando a diversidade de mecanismos implicados na dislexia (Friedmann & Coltheart, 2015).
A comunidade de pesquisadores sobre dislexia do desenvolvimento parece se dividir em duas tribos. Uma tribo é composta pelos pesquisadores oriundos da psicologia do desenvolvimento, os quais têm focado principalmente a importância do processamento fonológico na aprendizagem da leitura e seus transtornos (Wagner & Torgesen, 1987). Esses pesquisadores muitas vezes se esquecem de que o processamento fonológico, principalmente a consciência fonêmica é mais importante nalíngua inglesa, em função das peculiaridades da sua ortografia (Share, 2008). Em outras línguas com ortografia mais regular, tais como finlandês, italiano e alemão, os mecanismos lexicais, ilustrados pela fluência de leitura, desempenham um papel mais importante (Wimmer & Schurz, 2010).
A preocupação da tribo dos neuropsicológos cognitivos tem sido outra. A neuropsicologia cognitiva investiu com sucesso considerável na caracterização dos diferentes mecanismos cognitivos subjacentes à heterogeneidade da dislexia do desenvolvimento (Friedmann & Coltheart, 2015). É inegável que o processamento fonológico desempenha um papel importante na aprendizagem da leitura e na maioria dos casos de dislexia. Entretanto, a leitura é um comportamento extremamente complexo, cuja aprendizagem pode ser influenciada por uma diversidade de mecanismos.
Trabalhando a partir da perspectiva do modelo de dupla rota de leitura foi possível caracterizar inicialmente duas formas principais de dislexia, correspondentes àquelas observadas no adulto (Castles & Coltheart, 1993). Na dislexia fonológica estão comprometidos os mecanismos de conversão grafema fonema enquanto que na dislexia superficial o problema diz respeito ao processamento lexical. Da mesma forma que nas dislexias adquiridos do adulto, os disléxicos fonológicos do desenvolvimento apresentam dificuldades em tarefas de consciência fonêmica e na leitura de pseudopalavras. Por outro lado, os disléxicos superficiais apresentam dificuldades com a leitura de palavras irregulares.
Os dois subtipos, dislexia fonológica e superficial podem, na verdade, corresponder a fases distintas do processo de aprendizagem da leitura. Como no início da aprendizagem da leitura quase todas as palavras são desconhecidas a única rota viável para a leitura é a fonológica, através da decodificação grafema-fonema e recodificação fonológica (Share, 1999, Ziegler et al., 2013). Com a aquisição de perícia a leitura pela rota lexical vai se tornando cada vez mais possível e importante. Na minha experiência clinica aqui no Brasil, os disléxicos mais jovens apresentam problemas com o processamento fonológico enquanto os disléxicos mais velhos apresentam dificuldades com o processamento lexical.
Mais recentemente, através do trabalho de Na’ama Friedmann com leitores de hebraico e árabe foi possível ampliar o leque dos mecanismos cognitivos envolvidos na aprendizagem da leitura e sua diversidade linguística (vide revisão em Friedmann & Coltheart, 2015; A spublicações podem ser acessadas em: http://www.tau.ac.il/
Assim, é razoável supor, como o fizeram Hadzibeganovic e cols. (2010), que as inconsistência dos resultados obtidos até o momento na neuroimagem funcional da dislexia podem estar relacionados à heterogeneidade de composição das amostras, a qual não é considerada a partir do pressuposto de que apenas os mecanismos fonológicos são relevantes. As pesquisas com leitores de línguas semíticas (Friedmann & Coltheart, 2015, Lukov et al., 2015) mostram também que a diversidade linguística precisa ser considerada.
Um padrão semelhante de discrepâncias entre um estudo e outro tem sido obervado nos estudos de neuroimagem funcional sobre discalculia do desenvolvimento (Kaufmann et al., 2011). A discalculia também constitui uma entidade heterogênea, definida comportamentalmente pelo desempenho escolar e para a qual múltiplos mecanismos cognitivos concorrem. Da mesma forma que acontece com a discalculia, acredito que a pesquisa da dislexia com métodos de neuroimagem funcional poderia se beneficiar da utilização de modelos oriundos da neuropsicologia cognitiva, tais como o modelo de dupla-rota, os quais são suficientemente abrangentes para explicar a diversidade de mecanismos envolvidos. Talvez a pesquisa sobre dislexia usando neuroimagem funcional pudesse se beneficiar se os investigadores a adotassem uma perspectiva mais ampla, considerando outros mecanismos além da consciência fonêmica. O modelo de dupla rota da leitura é um arcabouço bem interessante para compreender a diversidade da dislexia. Os resultados das investigações com neuroimagem são compatíveis com o modelo de dupla rota (Dehaene, 2012) e o modelo de dupla rota demonstrou ter valor heurístico, permitindo identificar novas formas de dislexia (Friedmann & Coltheart, 2015). É possível supor então que uma caracterização mais precisa dos participantes em termos dos mecanismos de dupla rota poderia contribuir para deslindar algumas contradições e inconsistências freqüentemente observadas.
Referências
Barquero, L. A., Davis, N., & Cutting, L. E. (2014). Neuroimaging of reading iervention a systematic review and activation likelihood estimate meta-analysis. PLoS ONE, 9(1): e83668. doi:10.1371/
Castles, A., & Coltheart, M. (1993). Varieties of developmental dyslexia. Cognition, 47, 149-180.
Dehaene, S. (2012). Os neurônios da leitura. Como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso.
Friedmann, N., & Coltheart, M. (2015). Types of developmental dyslexia. In A. Bar‐On, & D. Ravid (Eds.), Handbook of communication disorders: Theoretical, empirical, and applied linguistics perspectives. Berlin, Boston: De Gruyter Mouton
Lukov, L., Friedmann, N., Shalev, L., Khentov-Kraus, L., Shalev, N., Lorber, R., & Guggenheim, R. (2015). Dissociations between developmental dyslexias and attention deficits. Frontiers in Psychology, 5(1501), 1-18.
Maisog, J. M, Einbinder, E. R., Flowers, D L., Turkelaub, P. E., & Eden, G. F. (2008). A meta-analysis of functional neuroimaging studies of dyslexia. Annals of the New York Academy of Sciences, 1145, 237-259.
Hadzibeganovic, T., van den Noort, M., Bosch, P., Perc, M., van Kralingen, R., Mondt, & Coltheart, M. (2010). Cross-linguistic neuroimaging and dyslexia: a critical view. Cortex, 46, 1312-1316.
Hoeft, F., McCandliss, B. D., Black, J. M., Gantman, A., Zakerani, N., Hulme, C., Lyytinen, H., Whitfield-Garieli, Glover, G. H., Reiss, A. L. & Gabrieli, J. D. E. (2011). Neural systems predicting long-term outcome in dyslexia. Proceedings of the National Academy of Sciences (USA), 108, 361-366.
Kaufmann, L., Wood, G., Rubinsten, O. & Henik, A. (2011). Meta-analyses of developmental fMRI studies investigating typical and atypical trajectories of number processing and calculation. Developmental Neuropsychology, 36, 763-787.
Pugh, K. R., Frost, S. J., Sandak, R., Landi, N., Rueck, J. G., Constable, R. T., Seidenberg, M., Fulbrighte, R., Katz, L., & Mencl, W. E. (2008). Effects of stimulus difficulty and repetition on printed word identification: an fMRI comparison of non-impaired and reading disabled adolescentes. Journal of Cognitive Neuroscience, 20, 1146-1160.
Rorden, C. & Karnath, H. O. (2004). Using human brain lesios to infer function: a relic from a past era in the fMRI age? Nature Reviews: Neuroscience, 5, 813-819.
Sahin, N. T., Pinker, S. Cash, S. S., Schomer, D. & Halgren, E. (2009). Sequential processing of lexical, grammatical, and phonological information within Broca's area. Science, 326, 445-449.
Shallice, T. & Cooper, R. P. (2012). The organisation of mind. Oxford: Oxford University Press.
Share, D. L. (1999). Phonological recoding and orthographic learning: a direct test of the self-teaching hypothesis. Journal of Experimental Child Psychology, 72, 95-129.
Share, D. L., (2008). On the anglocentricities of current reading research and practice: the perils of overreliance on an "outlier" orthography. Psychological Bulletin, 134, 584-615.
Shaywitz, S. E., Fletcher, J. M., Holachan, J. M., Shneider, A. E., Marchione, K. E., Stuebing, K. K., Francis, D. J., Pugh, K. R., & Shaywitz, B. A. (1999). Persistence of dyslexia: the Connectlcut Longitudinal Study at adolescence. Pediatrics, 104, 1351-1359.
Shaywitz, B. A., Shaywitz, S. E., Pugh, K. R., Mencl, W. E., Fulbright, R. K., Skudlarski, P., Constable, R. T., Marcione, K. E., Fletcher, J. M., Lyon, G. R. & Gore, J. C. (2002). Disruption of posterior brain systems for reading in children with developmental dyslexia. Biological Psychiatry, 52, 101-110.
Shaywitz, B. A., Shaywitz, S. E., Blachman, B. A., Pugh, K. R., Fulbright, R. K., Skudlarsk, P., Mencl, E., Constable, R. T., Holahan, J. M., Marchione, K. E., Fletcher, J. M., Lyon, G. R., & Gore, J. C. (2004). Development of left occipitotemporal systems for skilled reading in children after a phonologically-based intervention. Biological Psychiatry, 55, 926-933.
Wagner, R. K., & Torgesen, J. K. (1987). The nature of phonological processing and its causal role in the acquisition of reading skills. Psychological Bulletin, 101, 192-212.
Wimmer, H., & Schurz, M. (2010). Dyslexia in regular orthographies: manifestation and causation. Dyslexia, 16, 283-289.
Zamarian, L., Ischebeck, A., & Delazer, M. (2009). Neuroscience of learning arithmetic - Evidence from brain imaging studies. Neuroscience and Biobehavioral Reviews, 33, 909-925.
Ziegler, J. C., Perry, C., & Zorzi, M. (2013). Modelling reading development through phonological decoding and self-teaching: implications for dyslexia. Philosophical Transactions of the Royal Society of London B, 369, 20120397 (http://dx.doi.org/10.1098/
No comments:
Post a Comment