Sunday, December 27, 2015

AS AGRURAS DE APRENDER SÃO AGRAVADAS PELA FALTA DE OPORTUNIDADE

No romance “Grandes expectativas” de Dickens (1861/2008), Pip é um menino órfão que vive com a bruxa da sua irmã e o marido ferreiro dela. A irmã não está muito preocupada com a educação de Pip. Quando o menino começa a perguntar alguma coisa, ela imediatamente corta a conversa. Ela chegou mesmo a dizer que os bandidos começam sua carreira de crimes fazendo perguntas.



Joe, o ferreiro marido da irmã, é o suporte afetivo, moral e intelectual de Pip. Ambos sofrem sob a mão de ferro, respectivamente, da esposa e irmã. A irmã vive comentando que o menino estaria sendo “raised by the hand”. Ao que Pip comenta que o sentido da frase não é apenas metafórico. Literalmente, ela senta sua mão pesada sobre o menino e sobre o marido.

Lá pelas tantas, por algum motivo insondável, é resolvido que Pip precisa ir para a escola. Ele começa então a freqüentar por uma hora diariamente uma escola vespertina. É assim que Pip relata suas agruras aprendendo a ler, escrever e a fazer as contas:

…”I struggled through the alphabet as if it had been a bramble-bush; getting considerably worried and scratched by every letter. After that, I fell among those thieves, the nine figures, who seemed every evening to do something new to disguise themselves and baffle recognition. But, at last I began, in a purblind groping way, to read, write, and cipher, on the very smallest scale” (Dickens, 1861/2008, p. ).

Apesar de ser intelectualmente limitado, Joe é boa praça e ajuda e apóia Pip em tudo que pode. Pip não entende porque Joe suporta a mão de ferro da esposa. Até que um dia os dois estão sentados na cozinha à noite e Pip faz o seu para casa. Ele escreve um bilhete para Joe:


Pip fica espantado ao constatar que Joe não sabe ler. Aí o ferreiro conta sua história. Ele não conseguiu aprender a ler por causa do seu pai bebâdo e abusivo. A mãe fugia de casa com o Joe e colocava o menino na escola. O pai ia atrás e trazia os dois de votta para casa, tirando Joe da escola. E foi assim que Joe não aprendeu a ler. Pip concluiu que essas história toda pode ter alguma coisa a ver com o fato de que Joe se deixa dominar pela esposa. Acha que ele precisa de uma mulher forte.

Todas as definições de dislexia mencionam como critério de exclusão a falta de oportunidade educacional. Eu achava esse negócio meio esquisito. Acho que a história de Joe é bem típica do Século XIX. Mas no Século XXI, será que ainda existe gente que não aprendeu a ler por falta de oportunidade?

A resposta é afirmativa. Eu me convenci disso através do doutorado de Ricardo José de Moura (Moura, 2014). Ricardo investigou as habilidades numéricas de analfabetos funcionais, com até quatro anos de escolarização funcional. Eu achava que ele iria encontrar uma fracção enorme de indivíduos com deficiência intelectual na amostra. Pois não é que isso não aconteceu? Apesar de pequena a amostra a distribuição da inteligência foi claramente normal. Quer dizer, no Brasil do Século XXI, como na Inglaterra do Século XIX, ainda existem pessoas que não estudam por falta de oportunidade. Aprender a ler e a escrever já é suficientemente difícil, como atesta a experiência de  Pip. Dehaene (2012) estimou que leva cerca de três anos de trabalho muito árduo para a criança adquirir fluência em leitura. Se o ambiente não é muito propício, como no caso de Joe, a empreitada fica mais difícil ainda.


Referências

Dehaene, S. (2012). Os neurônios da leitura. Como a ciência explica nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso

Dickens, C. (1861/2008). Great expectations. Oxford: Oxford U niversity Press.

Moura, R. J. (2014). Transcodificação numérica em crianças e adultos de baixaescolaridade: o papel da memória de trabalho, consciência fonêmica eimplicações para a aprendizagem da matemática. Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em Neurociências, ICB-UFMG. Tese de doutorado não publicada.