Sunday, December 27, 2015

Neuropsicologia e desenvolvimento: Como a neuropsicologia pode contribuir para o acúmulo de capital humano?

Nós vivemos na era cognitiva, na qual as demandas por desempenho cognitivo, inclusive em atividades do dia a dia, são crescentes. Um grupo de peritos nomeado pelo Parlamento Britânico definiu as habilidades relacionadas ao letramento, aritmética e auto-regulação como formas primordiais de capital mental (Beddington et al.,2008, Cooper et al.,2010). Ou seja, com as transformações econômicas e sociais dos últimos anos, com a globalização econômico-cultural e com o surgimento da conectividade global via internet, as habilidades cognitivas se transformaram no principal ativo econômico de uma sociedade.




As relaçães entre o desempenho cognitivo e a integridade funcional de diversos sistemas neurais é o foco de interesse da neuropsicologia. A neuropsicologia é uma área interdisciplinar de pesquisa e aplicação que surgiu na segunda metade do Século XIX (Haase et al., 2012). A neuropsicologia se baseia no pressuposto de localizacionismo.  Segundo o localizacionismo, os processos psicológicos podem ser analisados em subcomponentes, sendo que cada subcomponente pode ser afetado isoladamente em determinadas circunstâncias, uma vez que depende da integridade funcional de redes neurais relativamente segregáveis. Contemporaneamente, o localizacionismo é concebido como distribuído através de sistemas específicos porém geograficamente dispersos por muitas áreas corticais e subcorticais (Mesulam, 1998).

Do ponto de vista teório, a neuropsicologia contribui para caracterizar a arquitetura cognitiva no nível da computação de Marr (1982). Isso significa que a neuropsicologia contribui para a identificação e caracterização dos subcomponentes do sistema cognitivo. Atualmente, a neuropsicologia formula a arquitetura cognitiva em termos de representações e processos computacionais.

No lado prático, a neuropsicologia subsidia o diagnóstico de lesões, transtornos e disfunções neuropsiquiátircas, bem como sua reabilitação ou intervenção. O pressuposto de localizacionismo e o método anátomo-clinico adotados na neuropsicologia auxiliam em primeiro lugar, na definição quanto à existência ou não de alguma forma de comprometimento cognitivo, se o comprometimento cognitivo é global ou específico e, caso seja específico, quais são as funções comprometidas e as funções preservadas.

Dado o seu envolvimento na análise da integridade funcional do sistema cognitivo, na identificação do seu substrato neural e no desenvolvimento de estratégias de promoção da habilitação e reabilitação funcional, a neuropsicologia encontra-se em uma posição privilegiada para promover o acúmulo de capital cognitivo. Esse enfoque positivo da neuropsicologia tem sido enfatizado mais recentemente e reflete a preocupação dos neuropsicológos em contribuir de forma mais postiiva para o desenvolvimento humano (Randolph, 2013).

A promoção do bem-estar e do desenvolvimento humanos requerem um enfoque do curso da vida. A seguir, serão discutidas algumas situações nas quais a neuropsicologia tem contribuído e pode contribuir mais ainda. O fio condutor serão as três formas de capital cognitivo identificadas anteriormente, o letramento, a aritmética e a auto-regulação.

A transição da idade pré-escolar para escolar inicial é um dos principais momentos nos quais a intervenção do neuropsicológo é solicitada. As diferenças interindividuais são o principal preditor do desempenhoe escolar, explicandod e 40% a 60% da variância no mesmo em países do Hemisfério Norte (Share et al.,1984, Tremblay et al., 2001). A importância de fatores experienciais cresce com a diminuição do nível de desenvolvimento humano de huma sociedade (Turkheimer et al., 2003). Quanto menor o desenvolvimiento humano de um país, maior será a contribuição de fatores sociais, econômicos e culturais. Estimativas realizadas no Brasil identificam, por exemplo, que fatores relacionados com a família podem explicar até 40% da variância no desempenho escolar (Alves, 2010).

Por maior que seja sua influência, os fatores psicossociais e econômicos não explicam boa parte da variância no desempenho escolar. P. ex., mesmo nas famílias mais pobres e socialmente excluidas é observação clinica freqüente que alguns irmãos apresentam dificuldades de aprendizagem escolar e outros não (Miranda et al., 2012 ). A ausência de identificação das características individuais que, associadas a fatores psicossociais, contribuem para as dificuldades de aprendizagem escolar coloca o indivíduo em uma situação de dupla desvantagem (Haase, 2012). Prejudicado uma vez por ser pobre, receber pouca estimulação cognitiva e ter acesso a uma escola de má qualidade. Prejudicado outra vez por não ter acesso a serviços que permitissem caracterizar de forma mais precisa e abrangente a natureza de suas dificuldades.

O neuropsicológo é um perito na identificação de diferenças individuais que possam contribuir para dificuldades no desempenho cognitivo. A caracterização precisa das diferenças individuais e a análise da sua contribuição relativamente a fatores psicossociais, econômicos e culturais de forma mais ampla, contribui de forma valiosa para o diagnóstico e formulação de estratégias de intervenção pedagógicas, psicossociais ou farmacológicas.

Os fundamentos neurocognitivos da aprendizagem da leitura, escrita e aritmética têm sido foco crescente de pesquisas nas últimas décadas (Ashkenazi et al., 2013, Butterworth & Kovas, 2013, Rayner et al., 2001). Estamos longe de uma compreensão definitiva destes fenômenos. Mas o progresso foi tamanho que permitiu o desnevolvimento de estratégias custo-eficicientes de diagnóstico e intervenção precoce (Butterworth, 2010, Snowling, 2010). Mas recentemente, as habilidades de auto-regulação ou funções “executivas quentes” têm sido identificadas como um pré-requisito importante para o sucesso escolar (Blair & Raver, 2015).

O processamento fonológico (acesso lexical rápido, memória fonológica de curto-prazo e consciência fonêmica) foi identificado como correlato cognitivo fundamental para a aprendizagem da leitura e aritmética (Ashkenazi et al., 2013, Butterworth & Kovas, 2013, Rayner et al., 2001, Snowling, 2010). No caso da aritmética, foram identificados preditores específicos de desempenho, tais como o senso numérico e a habilidade de representação simbólica dos símbolos numéricos (Ashkeanzi et al., 2013, Butterworth, 2010, Butterworth & Kovas, 2013). A memória de trabalho e a capacidade de postergar a recompensa são também preditores do desempenho escolar e adaptação psicossocial a longo prazo (Casey et al., 2011, Mischel et al., 1988).

O potencial da neuropsicologia para a promoção do capital cognitivo é óbvio no caso de transtornos específicos de aprendizagem. Apesar de terem uma inteligência normal, algumas crianças e jovens apresentam dificuldades persisitentes com a leitura/escrita e aritmética, as quais não podem ser atribuídas a fatores extra-constitucinais (Tannock, 2013). A persistência dessas dificuldades se associa a desfechos psicossociais extremamente desfavoráveis, inicluindo diminuição da renda e psicopatologia internalizante e externalizante (Auerbach et al., 2008, Parsons & Bynner, 2005). Como, por definição, a inteligência é normal nos casos de transtornos específicos de aprendizagem, o prognóstico é favorável quando são realizados o diagnóstico, aconselhamento e intervenções apropriados.

Mas a neuropsicologia pode contribuir para promover o bem estar e o desenvolvimento humano  também em situações nas quais existe um comprometimento cognitivo global, como na deficiência intelectual. O diagnóstico de deficiência intelectual implica em um comprometimento da inteligência geral (Anderson, 1998). Mesmo assim, o fenótipo cognitivo e comportamental das diversas formas de deficiência intelectual não se caracteriza apenas por um rebaixamento geral de habilidades relacionadas ao fator g. Ao contrário, a variabilidade é muito grande, tanto entre entidades nosológicas quanto no interior de uma mesma síndrome (Bishop & Rutter, 2009, Goodey, 2006, Reilly, 2012). A caracterização neuropsicológica mais precisa do fenótipo cognitivo-comportamental, identirficando perfis diferenciados de comprometimento e preservação relativa de habilidades cognitivas e comportamentais subsidia o processo educacional de indivíduos com deficiência intelectual (Reilly, 2012). Dessa forma, contribui para aumentar sua eficiência, diminuir a sobrecarga emocional e liberar recursos para outros domínios do funcionamento.

Foram mencionadas anteriormente que as habilidades de auto-regulação, ou seja, de postergação da recompensa são preditoras do desempenho acadêmico e adaptação psicossocial ao longo do ciclo vital (Shoda et al., 1988, Casey et al., 2011). O envolvimento com atividades escolares exige que o indivíduo desenvolva a habilidade de renunciar ao acesso de recompensas menores imediatas, privilegiando o alcance de recompensas maiores projetadas no futuro. A realização dessa façanha requer habilidades de representar e manter na memória de trabalho as metas a serem atingidas futuramente bem como de suprimir impulsos de responder a estímulos intrinsecamente reforçadores porém irrelevantes.

As habilidades de auto-regulação são importantes ao longo do curso vital. Mas sua importância é crucial na adolescência. O desenvolvimento cerebral na adolescência se carcteriza por uma discrepância entre a habilidade cognitiva crescente de manter e processar infeormação na memória de trabalho (funções executivas frias) e dificuldades de tomar decisões considerando suas conseqüências futuras (funções executivas frias). Esse descompasso é associado à maturação diferencial dos sistemas dopaminérgicos mesocorticais e mesolímbicos, respectivamente (Ernst, 2014, Somerville et al., 2010).

O imediatismo reforçatório e os comportamentos exploratórios são adaptativos na adolescência, constituindo pré-requisito para a construção da identidade e lançamento no mundo adulto. Diferenças individuais na capacidade de postergar a recompensa colocam alguns jovens, entretanto, em situação de risco quanto à sua capacidade de capacitação educacional, profissional e mocional necessária para o funcionamento adaptativo na idade adulta (Casey et al., 2011, Shoda et al., 1988). Mais uma vez, a neuropsicologia pode contribuir, identificando jovens em situação de risco e contribuindo para o desenvolvimento de estratégias de intervenção contemplando as necessidades dos jovens por “adrenalina” ou emoções mais fortes e imediatas mas que ao mesmo tempo contribuam para a aquisição de habilidades de auto-regulação (Larson, 2000).

O viés da neuropsicologia são as dificuldades. Mesmo assim, a neuropsicologia pode contribuir sobremaneira para o desenvolvimento humano. No caso de pessoas com déficits específicos na aprendizagem da leitura/escrita. Aritmética e na auto-regulação a resposta é bem direta. Como essas pessoas têm inteligência normal, o seu prognóstico a longo prazo é normal. Os indivíduos e suas famílias podem cultivar expectativas de um desenvolvimento típico. O desafio é maximizar o desempenho e minimizar os efeitos ngetivos, sociais, acadêmico e emocionais das dificuldades de aprendizagem.

No caso das deficiências intelectuais a resposta é um pouco mais complexa. O prognóstico é sempre limitado em função dos déficits na inteligência geral. Mas a autonomia, funcionalidade e qualidade de vida podem ser otimizadas.E os beneficiários destes ganhos não são apenas os indivíduos afetados, mas a família como um todo, os pais, principalmente as mães, e os irmãos. De forma indireta, a sociedade como um todo acaba se beneficiando da redução do impacto psicossocial sob a forma de estresse e custos diretos e indiretos.

Apesar do seu foco nas deficiências, a neuropsicologia pode contribuir para uma agenda positiva, promotora do desenvolvimento humano. Mas isso exige uma mudança de mentalidade dos profissionais. Exige a adoção de uma perspectiva do desenvolvimento humano. Os modelos de processamento de informação da neuropsicologia cognitiva (Temple, 1997) são importantes para o delineamento do perfil de funções comprometidas e preservadas, auxiliando no diagnóstico de localização e na formulação do diagnóstico nosológico. Mas a reabilitação exige um diagnóstico ecológico, do impacto das condições de saúde nos níveis subjetivo, comportamental e contextual.


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