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Janeiro: Associação Brasileira do Déficit de Atenção.
Na
área da educação parecem ocorrer dois movimentos com direções muitas vezes opostas
nas últimas décadas. Por um lado, o desempenho escolar é decrescente em coortes
populacionais sucessivas em diversos países, tais como os Estados Unidos, e
crescente em outros países, principalmente do Extremo Oriente. Por outro lado,
o avanço das ciências cognitivas, incluindo neuroimagem funcional, estão
permitindo compreender cada vez melhor as bases cognitivas e neurais da
aprendizagem escolar. Há uma discrepância, portanto, entre o avanço do
conhecimento científicos e os resultados da prática educacional.
A comparação
das tendências seculares de desempenho em matemática nos Estados Unidos e na
China é notável, constituindo um nítido exemplo de interação estatística. O
desempenho em matemática era superior nos Estados Unidos em relação à China há
pouco mais de sessenta anos atrás. Atualmente, as posições se inverteram e as
notas dos alunos chineses em matemática são progressivamente maiores do que as
notas dos alunos americanos (Ilg & Ames, 1951, Geary et al., 1997).
Dois
fenômenos sócio-demográfico poderiam explicar essas diferenças. A China passou
no último meio século por um gigantesco processo de modernização econômica, o
qual, sabidamente se associa com melhoria da inteligência* e desempenho
acadêmico da população (Newson & Richerson, 2009). Pode ser coincidência,
mas o período de piora sucessiva no desempenho ao longo das coortes
populacionais corresponde à popularização nos EUA da abordagem construtivista*
ao ensino primário. No ensino da matemática o ideário construtivista retira
ênfase da instrução formal, fatos aritméticos e fluência de cálculo, atribuindo
maior importância à aprendizagem conceitual e descoberta por parte do aluno
(Wang & Lin, 2009).
O
fracasso da educação em muitos países, incluindo o Brasil, contrasta com o
avanço notável do conhecimento que ocorreu e continua ocorrendo na área das
ciências cognitivas. Podemos dizer sem hesitar que dispomos de modelos muito
bem validados que nos permitem compreender as bases neurocognitivas* da
alfabetização (Dehaene, 2012, Morais, 2014) e da aprendizagem da aritmética
(Dehaene, 2011, Haase et al., 2012).
Os
modelos neurocognitivos* disponíveis da aquisição de habilidades escolares
elementares permitiriam a formulação de políticas públicas eficientes com o
intuito de a) incentivar habilidades cognitivas precursoras na educação
infantil, b) detectar precocemente crianças com dificuldades de aprendizagem, c)
ensinar de modo efetivo a maioria dos alunos e e) intervir de forma racional
nos casos em que as crianças apresentarem dificuldades.
A
aplicação dos resultados de pesquisa em sala de aula exigiria,
entretanto, um esforço de pesquisa translacional, que permitisse estabelecer
esta conexão, ou seja, exige um início de investigação na ciência básica e sua finalização nas aplicações práticas dos
resultados obtidos. A
medicina tem inúmeros exemplos bem-sucedidos de pesquisa translacional. A busca
por fundamentação empírica das decisões médicas diagnósticas e terapêuticas se
traduziu em um referencial ético segundo o qual as decisões médicas precisam
ser fundamentadas em evidências, na progressiva construção de diretrizes
diagnósticas e terapêuticas e no surgimento de uma nova área de pesquisa, a
epidemiologia clinica (Fletcher et al., 1996). Obviamente, a adoção de
parâmetros éticos e técnicos fundamentados em evidências não garante
necessariamente a qualidade da assistência de saúde. Entretanto, torna-se
disponível um parâmetro pautado em evidências (critério objetivo) que
diferencia a boa e a má práticas.
A
condução de pesquisa translacional com o intuito de examinar e fundamentar a
aplicabilidade de evidências neurocognitivas à educação exigiria, entretanto,
uma mudança de mentalidade dos educadores. Uma verdadeira mudança de paradigma.
A principal dificuldade é que existe uma diferença paradigmática entre os dois
campos do conhecimento (o paradigma vigente e a proposta das ciências
cognitivas), um verdadeiro abismo. É claro que um diálogo exige um esforço de
ambas as partes. Mas o sucesso da pesquisa científica na área de neurociências
contrasta com o fracasso, estagnação intelectual e falta de fundamentação
científica da área de educação. E isso é crescentemente reconhecido até por
pesquisadores da área de educação (Bernardin, 2012, Christodoulou, 2014, Hirsch,
2006, Ioschpe, 2012, Sowell, 1993, Sweller et al., 2011, Willingham, 2011).
Com
isso não estamos querendo dizer que o fracasso educacional seja de
responsabilidade única e exclusiva das afiliações paradigmáticas dos
educadores. A questão é certamente muito mais complexa, envolvendo complexas
questões políticas, sociológicas e econômicas (Ioschpe, 2012). Entretanto, um
exame comparativo mostra claramente a relevância dos pressupostos
teórico-metodológicos subjacentes à prática educacional.
A
dificuldade em traduzir os avanços neurocientíficos se deve, então em grande
parte, às incompatibilidades de paradigma (Haase et al., 2015). As ciências
cognitivas, incluindo psicologia, neurociência, linguística, por exemplo,
trabalham a partir de uma perspectiva científica tradicional baseada
fundamentalmente nos testes empírico e estatístico de hipóteses (Proctor &
Capaldi, 2006). As evidências geradas pelas ciências cognitivas precisam ser
objetivas, falsificáveis, replicáveis, quantificáveis e cumulativas.
Esse
tipo de evidência científica também está disponível na área de educação. Por
exemplo, Hattie (2009) realizou um esforço tremendo para sintetizar os
resultados de mais de 800 estudos metanalíticos sobre a eficácia de
intervenções pedagógicas para os mais diversos domínios, incluindo
alfabetização e aritmética. O que ocorre é que mesmo as evidências científicas
geradas na área da pedagogia são ignoradas pelos pedagogos. Quando não são
ativamente hostilizadas a partir de uma argumentação com base ideológica (Frias
& Júlio-Costa, 2013a, b).
O
Governo Federal tem dado exemplos gritantes que ilustram a negligência das
evidências científicas disponíveis (Governo Federal, Ministério da Educação e
Cultura, s.d., 2015). Oliveira (2015) realizou uma análise da proposta de Base
Nacional Comum Curricular para a área de matemática e ciências, constatando que
a) as evidências disponíveis nas ciências cognitivas, incluindo psicologia e
neurociências não são consideradas, b) a fundamentação teórica se baseia em uma
literatura defasada e quase que exclusivamente nacional, ignorando o tremendo
progresso científico ocorrido internacionalmente nas últimas décadas, c) a articulação
teórico-prática das propostas curriculares se baseia quase que exclusivamente
em resultados de “pesquisas” qualitativas publicadas em livros ou periódicos
científicos nacionais e de muito baixo impacto, d) as diretrizes propostas
retiram ênfase da instrução formal e do conteúdo curricular, acentuando a
aprendizagem colaborativa e por descoberta de processos e não de conteúdos etc.
Mais explicitamente, a proposta de fundamentação curricular formulada pelo
Governo Federal não leva em consideração avanços científicos importantes, tanto
conceituais quanto empíricos das ciências cognitivas.
Ao
invés disso, a proposta curricular em pauta se baseia em pressuposições
oriundas de uma tradição romântica de pensamento que remonta a Rousseau, Marx e
Dewey (Christdoulou, 2014, Hirsch, 2007) e genericamente denominada de
sócio-construtivismo, apesar de compreender diversas nuances e vertentes
(Bernardin, 2012, Freire, 2000). A motivação* subjacente a esse ideário é mais
política do que científica, uma vez que não há suficientes evidências
objetivas, falsificáveis, replicáveis, quantificáveis e cumulativas (Bernardin,
2012).
Mas
em que exatamente consistem as diferenças de paradigma? Correndo o risco de
super-simplificação e de não fazer justiça às suas inúmeras vertentes, o
construtivismo pode ser caracterizado por uma série de pressuposições que
antecedem ao desenvolvimento da psicologia científica:
a)
Instrução
formal à
O ideário construtivista preconiza que a
instrução formal deve ser evitada ao máximo, sendo substituída pela descoberta
e colaboração. Na Inglaterra, professores e escolas que ousam instruir seus
alunos são punidos pelas autoridades educacionais (Christodoulou, 2014). Na
área de matemática, por exemplo, o construtivismo defende que os algoritmos não
devem ser ensinados, permitindo à criança que descubra e desenvolva seus
próprios argumentos (Kamii & Dominick, 1997). É importante salientar o modo
como afirmações peremptórias são feitas a partir de uma base empiricamente
muito frágil, baseada na observação qualitativa de algumas poucas crianças. Sem
mencionar o fato de que um mesmo estudo é publicado de forma praticamente
inalterada ano após ano, sendo inclusive traduzido para diversas línguas (Kamii
& Dominick, 1997, 1998, 2010). Ou seja, as crianças precisam reinventar a
roda ou redescobrir os algoritmos a cada geração. Adicionalmente, é preciso
considerar que a capacidade de processamento de informação na memória de
trabalho* é limitada (Sweller et al., 2011, Willingham, 2011). A confrontação
dos alunos com situações-problema complexas e pouco estruturadas sobrecarrega a
memória de trabalho, submetendo-os a uma situação de atenção dividida. Se não
dispõem de instruções mais precisas sobre como proceder, os alunos adotam uma
estratégia de tentativa e erro, repartindo recursos entre a busca da solução e
a aprendizagem, com prejuízo da última (Willingham, 2011).
b)
Papel
do professorà
O professor não é mais concebido como alguém que transmite conhecimento,
garantindo assim a continuidade de um legado cultural de uma geração para
outra. O professor deve evitar assumir uma posição hierarquicamente superior. O
papel do professor não é depositar conhecimento na mente* do aluno, mas
promover sua formação despertando a consciência de classe etc. Tudo isso pode
ser lido nas diversas obras do Patrono da Educação Brasileira (Freire, 2000).
Enquanto sua “consciência de classe” é construída, os alunos não aprendem a ler
e escrever ou a fazer contas porque seus mestres ignoram a base científica do
ensino e aprendizagem dessas habilidades. O resultado é a baixa qualificação
cognitiva para enfrentar os desafios do mundo contemporânea e a perpetuação das
relações de poder tão criticadas. O papel do docente não é transmitir um legado
cultural, mas preparar os alunos para um mundo futuro, uma utopia.
c)
Conhecimentoà Os conteúdos curriculares ou
conhecimento factual declarativo viraram anátema (Hirsch, 2007). Os processos é
que são enfatizados. Ao invés de aprender o “quê”, os alunos devem aprender o “como”.
A cognição é substituída pela metacognição. Nada contra a metacognição. Mas é
que sem a cognição não tem a metacognição. O objetivo é fazer com que os alunos
adquiram habilidades de raciocínio crítico, inespecíficas de domínio e que lhes
facultem a transferência de um contexto para outro (Christodoulou, 2014). O
problema é que a cognição humana não funciona assim (Hirsch, 2007, Willingham,
2011). O papel do conhecimento declarativo não é apenas de um repositório
passivo de informação, mas sim de estrutura dinâmica à qual o indivíduo recorre
sempre que sua capacidade de processamento na memória de trabalho é
sobrecarregada. O conhecimento declarativo especializado desempenha um papel
crucial na aquisição de perícia em qualquer área (Willlingham, 2011). E a
aquisição de perícia é uma tarefa demorada e árdua, prolongando-se por mais de
dez anos, sendo muito limitadas as possibilidades de um domínio cognitivo* e
outro. O desenvolvimento cognitivo ao longo do ciclo vital ocorre pela
aquisição de conhecimentos específicos de domínio e não por um suposto aumento
de habilidades cognitivas gerais (Ritchie et al., 2015). Permanece por ser
inventado um método eficaz para promover a inteligência geral (fator g) e a
transferência de habilidades e conhecimentos de um domínio para o outro.
Pressupor o contrário é wishful thinking*
(pensamento ilusório);
d)
Papel
do alunoà
Ninguém tem dúvidas de que a aprendizagem depende da atividade do aluno.
Ninguém aprende nada se comportando de forma passiva. Freire (2000) estava
certo ao criticar uma concepção que ele chamava de “bancária” do ensino. Só que
sua metáfora bancária era muito pobre. Na época em que ele escreveu a Pedagogia
do Oprimido a ciência cognitiva já tinha mais de vinte anos de história. Uma
metáfora computacional seria melhor. Poder-se-ia criticar, por exemplo, uma
concepção de aprendizagem segundo a qual este processo consistisse apenas no
armazenamento de informação em um arquivo de computador digital. Seria uma
metáfora mais sofisticada, porém ainda assim pobre. A melhor metáfora de que dispomos
é a da rede neural. A memória declarativa* ou conhecimento não funciona de
forma passiva. Ao contrário, é uma estrutura muito dinâmica sendo
constantemente remodelada de forma associativa pela aquisição de novos
conhecimentos. Estudos clássicos na psicologia cognitiva mostram, p. ex., que
as diferenças de desempenho entre grandes mestres de xadrez e jogadores de fim
de semana não se devem tanto a um melhor desempenho da memória de trabalho ou
estratégias, mas sim ao conhecimento declarativo acumulado sobre as jogadas
(vide revisão em Willingham, 2011). Além disso, sem motivação, engajamento e
elaboração ativa do material a ser aprendido não existe aprendizagem. A questão
é que a atividade não precisa ser descoberta, comportamentalmente manifesta. A
atividade pode ser cognitiva*, encoberta. O aluno pode se engajar em atividades
comportamentalmente ostensivas sem que isso reflita qualquer forma de
conhecimento interiorizado (Mayer, 2004). O aluno pode participar das
atividades propostas pelo professor apenas para “cumprir tabela”, fazendo
teatro sem aprender nada.
e)
Contextoà A pedagogia pós-moderna parece partir
de uma psicologia sem “aparelho psíquico”. Ou seja, uma pedagogia que ignora a
estrutura e o funcionamento da mente humana. James (1890) já chamava atenção
para a importância do contexto. Segundo ele, qualquer caracterização de um processo
psicológico somente estaria completa se levasse em consideração sua função
adaptativa em um determinado contexto. A preocupação dos autores
construtivistas de diversos matizes era situar o ensino-aprendizagem em um
contexto que fizesse sentido para a criança, que fosse mais próximo da sua
realidade. Isso parecia crucial para a educação de crianças de classes sociais
desfavorecidas (Freire, 2000). É impossível questionar o fato de que um
contexto lúdico e mais próximo da sua realidade, mais apreensível pela criança
desempenha um papel importante na motivação e na aprendizagem. É importante,
entretanto, não confundir tática com estratégia. A contextualização é uma tática
motivacional e didática é um objetivo estratégico. O objetivo da educação é
capacitar o indivíduo a transcender seu contexto, possibilitar-lhe acesso a uma
cultura superior. Uma criança que não domina a norma lingüística culta pode ter
dificuldades em apreender determinados conceitos (Bagno, 2003). Convém também
lembrar que o contexto não é apenas externo. Uma parte importante do contexto é
internalizada, representada pelo conhecimento de mundo de que o aluno dispõe.
Para progredir na educação, principalmente na compreensão de textos, na
habilidade de ler para aprender, é importante que a criança disponha de
conhecimento, de um contexto mental interno (Hirsch, 2007). Sendo que
conhecimento de mundo e conhecimento factual é conteúdo curricular.
Poderíamos
estender a discussão por diversos tópicos. Em todos eles constataríamos o mesmo
fosso, uma contradição quase intransponível entre os pressupostos da pedagogia
e o modelo da realidade psicológica construído pelas ciências cognitivas (Haase
et al., 2015). Isso não significa, entretanto, que as estratégias colaborativas
de aprendizagem por descoberta devam ser substituídas por um sistema exclusivo
de instrução formal. Ao contrário, Tomasello e cols. (1993) analisaram o
sentido da intencionalidade em três formas de aprendizagem cultural. A imitação
é uma forma sofisticada de aprendizagem na qual a intencionalidade flui do
aprendiz para o modelo. O aprendiz precisa identificar as relações meio-fim do
comportamento emitido pelo modelo para que a aprendizagem ocorra. Na instrução
a intencionalidade se direciona do professor para o aluno e o peso da
responsabilidade pelo sucesso no processo recai sobre o docente. Finalmente, na
aprendizagem colaborativa por descoberta, a intencionalidade flui
bidireccionalmente entre o aprendiz e o seu colaborador.
A
partir da análise conduzida por Tomasello e cols. é possível depreender que
cada forma de aprendizagem cultural se associa a um perfil determinado de
indicações e contra-indicações. As formas mais sofisticadas de aprendizagem são
a imitação e a colaboração. Mas são também as mais exigentes. Além de capacidade
de identificar os estados mentais alheios, a colaboração/descoberta pressupões
habilidades de fazer inferências e de reciprocidade na interação social. É
duvidoso que esse método possa resultar em benefícios para crianças com algum
déficit cognitivo ou nas habilidades sociais. Métodos baseados na instrução
podem ser muito mais eficazes, indispensáveis mesmo, para crianças com
dificuldades sociais e/ou cognitivas (Rourke, 1995). Preconizamos então que o
planejamento das estratégias de intervenção educacional deve levar em
consideração as diferenças individuais. Não existe educação tamanho único. Há necessidade
de um ajuste entre as características do aluno e a didática empregada.
Estratégias instrucionais são necessárias para crianças com dificuldades. Os worked examples* foram identificados
como uma das estratégias mais eficientes (Sweller et al., 2011).
Os
dados empíricos disponíveis corroboram a hipótese de que diferentes estratégias
didáticas se associam com perfis distintos de pontos fortes e fracos do
indivíduo. Os métodos mais eficientes são os que permitem a aquisição de
conceitos e habilidades mais eficientemente em um número maior de alunos (Klahr
& Nigam, 2004). A aprendizagem colaborativa por descoberta promove, por
outro lado, a criatividade (Bonawitz et al., 2011). O método a ser utilizado
deve, portanto, ser customizado de acordo com as características do aluno e do
conteúdo a ser ensinado. Crianças com dificuldades sociais e cognitivas necessitam
de que a descoberta seja complementada por algum tipo de instrução mais formal.
Habilidades mais rotineiras, tais como a decodificação visual de palavras e
fatos aritméticos podem ser aprendidos espontaneamente pelas crianças mais bem-dotadas
cognitivamente. Mas as crianças com dificuldades podem não adquirir essas
habilidades se não receberem instrução explícita. O resultado pode ser visto
nas escolas brasileiras sob a forma de adolescentes com inteligência normal que
não sabem ler as palavras ou que precisam contar nos dedos para fazer as contas.
Ademais,
a grande vantagem dos métodos instrucionais é liberar recursos de processamento
(Sweller et al., 2011, Willingham, 2011). A capacidade humana de processamento
de informação é sabidamente limitada. Se a criança loca recursos para descobrir
conceitos e procedimentos rotineiros, que deveriam ser automatizados, sobram
menos recursos de processamento para formas mais complexas de cognição. James
(1890) considerava que a educação é o cultivo dos bons hábitos. Com isso ele
queria dizer que quanto mais processos cognitivos forem automatizados, forem
implementados sem requerer atenção ou esforço consciente, mais recursos de
processamento são liberados para o lazer e para formas mais complexas de
reflexão. A aquisição de perícia é um bom
modelo cognitivo para compreender a aprendizagem. Nas fases iniciais o
desempenho é muito sujeito a erro e exige atenção e esforço, ativando
estruturas corticais pré-frontais, associada a processamento cognitivo
controlado*. À medida que o indivíduo adquire perícia, o processamento vai se
automatizando*, exigindo menos atenção, tornando-se mais eficiente e ativando
áreas corticais posterior e/ou subcorticais (Willingham, 2011, Zamarian et al.,
2009). Aprender a ler as palavras é um pré-requisito para poder ler para
aprender. Aprender os fatos aritméticos é indispensável para progredir nas
habilidades matemáticas mais complexas.
O que é impossível é formar um cidadão consciente e crítico que não sabe
ler nem fazer as contas.
Finalmente
a abordagem pedagógica a ser empregada precisa considerar o tipo de
conhecimento ou habilidade cognitiva a ser adquirido. Do ponto de vista
evolutivo, Geary (2008) classificou as habilidades cognitivas em biologicamente
primárias e biologicamente secundárias. A linguagem oral é um protótipo de
habilidade cognitiva biologicamente primária. Os bebês não precisam ser
ensinados a falar. A motivação é intrínseca e o processo de desenvolvimento da
linguagem oral ocorre espontaneamente. Basta que a criança conviva com uma
comunidade falante de uma língua nativa. Com a língua escrita é diferente. A lectoescrita* é
um artefato cultural, constituindo uma forma biologicamente secundária de
conhecimento. Uma forma de conhecimento que é possibilitada, mas não é
garantida pelo equipamento cognitivo padrão da espécie. A aprendizagem da
leitura e escrita requer, na maioria dos casos, a intervenção de uma pedagogia.
Aí a motivação é extrínseca, cognitivamente mediada. Aprender a ler exige
esforço. A fluência na leitura de palavras requer três anos de árduo esforço
(Dehaene, 2012). A motivação para aprender depende da capacidade de abrir mão
de prazeres menores imediatos, tais como brincar ou assistir TV, por recompensas
maiores e mais abstratas que são projetadas no futuro e precisam ser mantidas
na memória de trabalho* para regular o comportamento. A motivação para o estudo
depende fundamentalmente dos resultados; melhores resultados associam-se a
melhor auto-eficácia* e consequentemente maior motivação (Bandura, 1989). Mas anteriormente, os resultados dependem do
método pedagógico empregado.
A
tipologia de Geary (2008) pode ser aplicada também à aprendizagem da
matemática. Algumas habilidades numéricas, tais como os conceitos de
cardinalidade, ordinalidade, contagem e as operações são adquiridas
espontaneamente pelas crianças no contexto da vida cotidiana. As crianças são
intrinsecamente motivadas para isso e não há necessidade de uma pedagogia
formal. A aprendizagem do sistema arábico, dos algoritmos de cálculo, das frações,
dos problemas verbalmente formulados etc., é bem mais complexa, exige esforço e
uma pedagogia formal. É wishful thinking acreditar que as crianças
possam adquirir de forma lúdica, espontânea e sem esforço todos os conhecidos e
habilidades demandados pelo mundo contemporâneo. A aprendizagem de habilidades
cognitivas biologicamente secundárias, novamente, requer esforço e motivação
cognitiva. O papel da pedagogia é
promover essas habilidades.
A
pedagogia é uma estratégia evolutivamente estável, uma característica
distintiva da espécie humana, um instinto mesmo (Strauss & Ziv, 2012). A
função adaptativa da pedagogia não é preparar o indivíduo para uma sociedade
utópica. O objetivo é bem mais prosaico: simplesmente transmitir o legado
cultural de uma geração para a seguinte. Outras características evolutivas
humanas fazem com que essa tarefa tenha se tornado crescentemente complexa. A
neotenia, ou imaturidade relativa do cérebro do bebê humano, possibilitou o
surgimento da cultura e a influência da mesma sobre as últimas etapas do
desenvolvimento cerebral. O resultado é o surgimento de uma evolução cultural*
que é mais rápida e cumulativa do que a evolução biológica*. O resultado é o
acúmulo crescente de uma massa de informação que precisa ser transmitida de uma
geração para outra em um ritmo cada vez mais veloz. Esse é o desafio da
pedagogia. Face às limitações de processamento de informação (capacidade
cognitiva) não é realista, eficiente ou justo esperar que as crianças
redescubram a cada geração conceitos e procedimentos que a Humanidade levou milhares
de anos para desenvolver. As crianças não são epistemólogos, nem cientistas. O
desafio da pedagogia é criar atalhos que possibilitem à criança percorrer
rápida e eficientemente a trajetória de evolução cultural, assenhorando-se de
um repertório básico de conhecimentos e habilidades que lhe permita liberar
recursos para processar o novo, para inventar e exercer seu potencial criativo
em um patamar superior ao das gerações anteriores.
Por
enquanto, a educação no Brasil está formando indivíduos pré-literatos. Uma
grande parcela da população vive em situações semelhantes àquelas que
antecederam a universalização do ensino primário no Hemisfério Norte. A ciência
cognitiva acredita ter algumas respostas para esse desafio. Pode dar certo ou
não. Mas a utilização de uma metodologia científica, a fundamentação em
evidências é uma garantia de que se as coisas não funcionarem nós teremos
condições de verificar isso e
mudar o rumo, caso seja necessário.
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Biobehavioral Reviews, 33(6),
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GLOSSÁRIO:
Auto-eficácia: é a
autopercepção ou a crença na capacidade de aprender
Abordagem construtivista: corrente teórica em
direciona as práticas pedagógicas em boa parte do mundo
Bases neurocognitivas: conhecimento teórico
que embasa as ciências cognitivas e neurociências
Ciências
Cognitivas: é o estudo da mente
Cognição: É o conjunto dos
processos mentais usados no pensamento na classificação,
reconhecimento e compreensão para o julgamento através
do raciocínio para o aprendizado de
determinados sistemas e soluções de problemas.
Domínio cognitivo: cada uma das funções mentais
(ou funções cognitivas). Por exemplo: memória de trabalho, atenção, habilidades
visoespaciais, linguagem
Evolução biológica: é a mudança das
características hereditárias de uma população de
uma geração para outra. Este processo faz com que as populações de
organismos mudem e se diversifiquem ao longo do tempo.
Evolução cultural: termo comum à psicologia
evolucionista, se refere as implementações culturais que nossa espécie vem
alcançando com o decorrer do tempo.
Lectoescrita:
Habilidade adquirida de poder ler e escrever
Memória declarativa: ou
de longo prazo como o nome sugere, é aquela que pode ser declarada (fatos,
nomes, acontecimentos, etc.) e é mais facilmente adquirida, mas também mais
rapidamente esquecida.
Memória de trabalho
(ou memória operacional): É um depósito temporário de armazenamento de
informações que podem ser acessadas, manipuladas e reorganizadas para serem
utilizadas em alguma tarefa
Mente: a
atividade mente, como pensamentos, sentimentos e a experiência subjetiva
Metacognição:
é o conjunto de conhecimentos sobre os próprios conhecimentos, e de
processos de percepção, avaliação, regulação e organização dos próprios processos cognitivos. Ela
pode ser pensada como cognições de segunda ordem: pensamentos sobre
pensamentos, aprender a aprender, conhecimentos sobre conhecimentos, reflexões
sobre ações
Modelos neurocognitivos: são modelos teóricos
sobre o funcionamento da mente, com evidências demonstradas dentro das ciências
cognitivas e neurociências
Motivação:
quantidade de esforço e tempo que uma pessoa emprega em determinada atividade.
Neuroimagem funcional: técnica de exame do
funcionamento cerebral
Processamento
automático: pensamento inconsciente, não intencional, involuntário e
fácil
Processamento
controlado: pensamento consciente, intencional,
voluntário e requer esforço.
Worked examples:
corrente teórica associada a instrução direta do aluno, com base nas ciências
cognitivas.