Thursday, December 17, 2015

CIêNCIA COGNITIVA E EDUCAÇÃO

Haase, V. G., &  Júlio-Costa, A. (2015). Ciência cognitiva e educação: um diálogo necessário, porém muito difícil. Rio de Janeiro: Associação Brasileira do Déficit de Atenção.

Na área da educação parecem ocorrer dois movimentos com direções muitas vezes opostas nas últimas décadas. Por um lado, o desempenho escolar é decrescente em coortes populacionais sucessivas em diversos países, tais como os Estados Unidos, e crescente em outros países, principalmente do Extremo Oriente. Por outro lado, o avanço das ciências cognitivas, incluindo neuroimagem funcional, estão permitindo compreender cada vez melhor as bases cognitivas e neurais da aprendizagem escolar. Há uma discrepância, portanto, entre o avanço do conhecimento científicos e os resultados da prática educacional.

A comparação das tendências seculares de desempenho em matemática nos Estados Unidos e na China é notável, constituindo um nítido exemplo de interação estatística. O desempenho em matemática era superior nos Estados Unidos em relação à China há pouco mais de sessenta anos atrás. Atualmente, as posições se inverteram e as notas dos alunos chineses em matemática são progressivamente maiores do que as notas dos alunos americanos (Ilg & Ames, 1951, Geary et al., 1997).

Dois fenômenos sócio-demográfico poderiam explicar essas diferenças. A China passou no último meio século por um gigantesco processo de modernização econômica, o qual, sabidamente se associa com melhoria da inteligência* e desempenho acadêmico da população (Newson & Richerson, 2009). Pode ser coincidência, mas o período de piora sucessiva no desempenho ao longo das coortes populacionais corresponde à popularização nos EUA da abordagem construtivista* ao ensino primário. No ensino da matemática o ideário construtivista retira ênfase da instrução formal, fatos aritméticos e fluência de cálculo, atribuindo maior importância à aprendizagem conceitual e descoberta por parte do aluno (Wang & Lin, 2009).

O fracasso da educação em muitos países, incluindo o Brasil, contrasta com o avanço notável do conhecimento que ocorreu e continua ocorrendo na área das ciências cognitivas. Podemos dizer sem hesitar que dispomos de modelos muito bem validados que nos permitem compreender as bases neurocognitivas* da alfabetização (Dehaene, 2012, Morais, 2014) e da aprendizagem da aritmética (Dehaene, 2011, Haase et al., 2012).

Os modelos neurocognitivos* disponíveis da aquisição de habilidades escolares elementares permitiriam a formulação de políticas públicas eficientes com o intuito de a) incentivar habilidades cognitivas precursoras na educação infantil, b) detectar precocemente crianças com dificuldades de aprendizagem, c) ensinar de modo efetivo a maioria dos alunos e e) intervir de forma racional nos casos em que as crianças apresentarem dificuldades.

A aplicação dos resultados de pesquisa em sala de aula exigiria, entretanto, um esforço de pesquisa translacional, que permitisse estabelecer esta conexão, ou seja, exige um início de investigação na ciência básica e sua finalização nas aplicações práticas dos resultados obtidos. A medicina tem inúmeros exemplos bem-sucedidos de pesquisa translacional. A busca por fundamentação empírica das decisões médicas diagnósticas e terapêuticas se traduziu em um referencial ético segundo o qual as decisões médicas precisam ser fundamentadas em evidências, na progressiva construção de diretrizes diagnósticas e terapêuticas e no surgimento de uma nova área de pesquisa, a epidemiologia clinica (Fletcher et al., 1996). Obviamente, a adoção de parâmetros éticos e técnicos fundamentados em evidências não garante necessariamente a qualidade da assistência de saúde. Entretanto, torna-se disponível um parâmetro pautado em evidências (critério objetivo) que diferencia a boa e a má práticas.

A condução de pesquisa translacional com o intuito de examinar e fundamentar a aplicabilidade de evidências neurocognitivas à educação exigiria, entretanto, uma mudança de mentalidade dos educadores. Uma verdadeira mudança de paradigma. A principal dificuldade é que existe uma diferença paradigmática entre os dois campos do conhecimento (o paradigma vigente e a proposta das ciências cognitivas), um verdadeiro abismo. É claro que um diálogo exige um esforço de ambas as partes. Mas o sucesso da pesquisa científica na área de neurociências contrasta com o fracasso, estagnação intelectual e falta de fundamentação científica da área de educação. E isso é crescentemente reconhecido até por pesquisadores da área de educação (Bernardin, 2012, Christodoulou, 2014, Hirsch, 2006, Ioschpe, 2012, Sowell, 1993, Sweller et al., 2011, Willingham, 2011).

Com isso não estamos querendo dizer que o fracasso educacional seja de responsabilidade única e exclusiva das afiliações paradigmáticas dos educadores. A questão é certamente muito mais complexa, envolvendo complexas questões políticas, sociológicas e econômicas (Ioschpe, 2012). Entretanto, um exame comparativo mostra claramente a relevância dos pressupostos teórico-metodológicos subjacentes à prática educacional.

A dificuldade em traduzir os avanços neurocientíficos se deve, então em grande parte, às incompatibilidades de paradigma (Haase et al., 2015). As ciências cognitivas, incluindo psicologia, neurociência, linguística, por exemplo, trabalham a partir de uma perspectiva científica tradicional baseada fundamentalmente nos testes empírico e estatístico de hipóteses (Proctor & Capaldi, 2006). As evidências geradas pelas ciências cognitivas precisam ser objetivas, falsificáveis, replicáveis, quantificáveis e cumulativas.

Esse tipo de evidência científica também está disponível na área de educação. Por exemplo, Hattie (2009) realizou um esforço tremendo para sintetizar os resultados de mais de 800 estudos metanalíticos sobre a eficácia de intervenções pedagógicas para os mais diversos domínios, incluindo alfabetização e aritmética. O que ocorre é que mesmo as evidências científicas geradas na área da pedagogia são ignoradas pelos pedagogos. Quando não são ativamente hostilizadas a partir de uma argumentação com base ideológica (Frias & Júlio-Costa, 2013a, b).

O Governo Federal tem dado exemplos gritantes que ilustram a negligência das evidências científicas disponíveis (Governo Federal, Ministério da Educação e Cultura, s.d., 2015). Oliveira (2015) realizou uma análise da proposta de Base Nacional Comum Curricular para a área de matemática e ciências, constatando que a) as evidências disponíveis nas ciências cognitivas, incluindo psicologia e neurociências não são consideradas, b) a fundamentação teórica se baseia em uma literatura defasada e quase que exclusivamente nacional, ignorando o tremendo progresso científico ocorrido internacionalmente nas últimas décadas, c) a articulação teórico-prática das propostas curriculares se baseia quase que exclusivamente em resultados de “pesquisas” qualitativas publicadas em livros ou periódicos científicos nacionais e de muito baixo impacto, d) as diretrizes propostas retiram ênfase da instrução formal e do conteúdo curricular, acentuando a aprendizagem colaborativa e por descoberta de processos e não de conteúdos etc. Mais explicitamente, a proposta de fundamentação curricular formulada pelo Governo Federal não leva em consideração avanços científicos importantes, tanto conceituais quanto empíricos das ciências cognitivas.

Ao invés disso, a proposta curricular em pauta se baseia em pressuposições oriundas de uma tradição romântica de pensamento que remonta a Rousseau, Marx e Dewey (Christdoulou, 2014, Hirsch, 2007) e genericamente denominada de sócio-construtivismo, apesar de compreender diversas nuances e vertentes (Bernardin, 2012, Freire, 2000). A motivação* subjacente a esse ideário é mais política do que científica, uma vez que não há suficientes evidências objetivas, falsificáveis, replicáveis, quantificáveis e cumulativas (Bernardin, 2012).

Mas em que exatamente consistem as diferenças de paradigma? Correndo o risco de super-simplificação e de não fazer justiça às suas inúmeras vertentes, o construtivismo pode ser caracterizado por uma série de pressuposições que antecedem ao desenvolvimento da psicologia científica:

a)     Instrução formal à O ideário construtivista  preconiza que a instrução formal deve ser evitada ao máximo, sendo substituída pela descoberta e colaboração. Na Inglaterra, professores e escolas que ousam instruir seus alunos são punidos pelas autoridades educacionais (Christodoulou, 2014). Na área de matemática, por exemplo, o construtivismo defende que os algoritmos não devem ser ensinados, permitindo à criança que descubra e desenvolva seus próprios argumentos (Kamii & Dominick, 1997). É importante salientar o modo como afirmações peremptórias são feitas a partir de uma base empiricamente muito frágil, baseada na observação qualitativa de algumas poucas crianças. Sem mencionar o fato de que um mesmo estudo é publicado de forma praticamente inalterada ano após ano, sendo inclusive traduzido para diversas línguas (Kamii & Dominick, 1997, 1998, 2010). Ou seja, as crianças precisam reinventar a roda ou redescobrir os algoritmos a cada geração. Adicionalmente, é preciso considerar que a capacidade de processamento de informação na memória de trabalho* é limitada (Sweller et al., 2011, Willingham, 2011). A confrontação dos alunos com situações-problema complexas e pouco estruturadas sobrecarrega a memória de trabalho, submetendo-os a uma situação de atenção dividida. Se não dispõem de instruções mais precisas sobre como proceder, os alunos adotam uma estratégia de tentativa e erro, repartindo recursos entre a busca da solução e a aprendizagem, com prejuízo da última (Willingham, 2011).

b)     Papel do professorà O professor não é mais concebido como alguém que transmite conhecimento, garantindo assim a continuidade de um legado cultural de uma geração para outra. O professor deve evitar assumir uma posição hierarquicamente superior. O papel do professor não é depositar conhecimento na mente* do aluno, mas promover sua formação despertando a consciência de classe etc. Tudo isso pode ser lido nas diversas obras do Patrono da Educação Brasileira (Freire, 2000). Enquanto sua “consciência de classe” é construída, os alunos não aprendem a ler e escrever ou a fazer contas porque seus mestres ignoram a base científica do ensino e aprendizagem dessas habilidades. O resultado é a baixa qualificação cognitiva para enfrentar os desafios do mundo contemporânea e a perpetuação das relações de poder tão criticadas. O papel do docente não é transmitir um legado cultural, mas preparar os alunos para um mundo futuro, uma utopia.

c)     Conhecimentoà Os conteúdos curriculares ou conhecimento factual declarativo viraram anátema (Hirsch, 2007). Os processos é que são enfatizados. Ao invés de aprender o “quê”, os alunos devem aprender o “como”. A cognição é substituída pela metacognição. Nada contra a metacognição. Mas é que sem a cognição não tem a metacognição. O objetivo é fazer com que os alunos adquiram habilidades de raciocínio crítico, inespecíficas de domínio e que lhes facultem a transferência de um contexto para outro (Christodoulou, 2014). O problema é que a cognição humana não funciona assim (Hirsch, 2007, Willingham, 2011). O papel do conhecimento declarativo não é apenas de um repositório passivo de informação, mas sim de estrutura dinâmica à qual o indivíduo recorre sempre que sua capacidade de processamento na memória de trabalho é sobrecarregada. O conhecimento declarativo especializado desempenha um papel crucial na aquisição de perícia em qualquer área (Willlingham, 2011). E a aquisição de perícia é uma tarefa demorada e árdua, prolongando-se por mais de dez anos, sendo muito limitadas as possibilidades de um domínio cognitivo* e outro. O desenvolvimento cognitivo ao longo do ciclo vital ocorre pela aquisição de conhecimentos específicos de domínio e não por um suposto aumento de habilidades cognitivas gerais (Ritchie et al., 2015). Permanece por ser inventado um método eficaz para promover a inteligência geral (fator g) e a transferência de habilidades e conhecimentos de um domínio para o outro. Pressupor o contrário é wishful thinking* (pensamento ilusório);
d)     Papel do alunoà Ninguém tem dúvidas de que a aprendizagem depende da atividade do aluno. Ninguém aprende nada se comportando de forma passiva. Freire (2000) estava certo ao criticar uma concepção que ele chamava de “bancária” do ensino. Só que sua metáfora bancária era muito pobre. Na época em que ele escreveu a Pedagogia do Oprimido a ciência cognitiva já tinha mais de vinte anos de história. Uma metáfora computacional seria melhor. Poder-se-ia criticar, por exemplo, uma concepção de aprendizagem segundo a qual este processo consistisse apenas no armazenamento de informação em um arquivo de computador digital. Seria uma metáfora mais sofisticada, porém ainda assim pobre. A melhor metáfora de que dispomos é a da rede neural. A memória declarativa* ou conhecimento não funciona de forma passiva. Ao contrário, é uma estrutura muito dinâmica sendo constantemente remodelada de forma associativa pela aquisição de novos conhecimentos. Estudos clássicos na psicologia cognitiva mostram, p. ex., que as diferenças de desempenho entre grandes mestres de xadrez e jogadores de fim de semana não se devem tanto a um melhor desempenho da memória de trabalho ou estratégias, mas sim ao conhecimento declarativo acumulado sobre as jogadas (vide revisão em Willingham, 2011). Além disso, sem motivação, engajamento e elaboração ativa do material a ser aprendido não existe aprendizagem. A questão é que a atividade não precisa ser descoberta, comportamentalmente manifesta. A atividade pode ser cognitiva*, encoberta. O aluno pode se engajar em atividades comportamentalmente ostensivas sem que isso reflita qualquer forma de conhecimento interiorizado (Mayer, 2004). O aluno pode participar das atividades propostas pelo professor apenas para “cumprir tabela”, fazendo teatro sem aprender nada.
e)     Contextoà A pedagogia pós-moderna parece partir de uma psicologia sem “aparelho psíquico”. Ou seja, uma pedagogia que ignora a estrutura e o funcionamento da mente humana. James (1890) já chamava atenção para a importância do contexto. Segundo ele, qualquer caracterização de um processo psicológico somente estaria completa se levasse em consideração sua função adaptativa em um determinado contexto. A preocupação dos autores construtivistas de diversos matizes era situar o ensino-aprendizagem em um contexto que fizesse sentido para a criança, que fosse mais próximo da sua realidade. Isso parecia crucial para a educação de crianças de classes sociais desfavorecidas (Freire, 2000). É impossível questionar o fato de que um contexto lúdico e mais próximo da sua realidade, mais apreensível pela criança desempenha um papel importante na motivação e na aprendizagem. É importante, entretanto, não confundir tática com estratégia. A contextualização é uma tática motivacional e didática é um objetivo estratégico. O objetivo da educação é capacitar o indivíduo a transcender seu contexto, possibilitar-lhe acesso a uma cultura superior. Uma criança que não domina a norma lingüística culta pode ter dificuldades em apreender determinados conceitos (Bagno, 2003). Convém também lembrar que o contexto não é apenas externo. Uma parte importante do contexto é internalizada, representada pelo conhecimento de mundo de que o aluno dispõe. Para progredir na educação, principalmente na compreensão de textos, na habilidade de ler para aprender, é importante que a criança disponha de conhecimento, de um contexto mental interno (Hirsch, 2007). Sendo que conhecimento de mundo e conhecimento factual é conteúdo curricular.


Poderíamos estender a discussão por diversos tópicos. Em todos eles constataríamos o mesmo fosso, uma contradição quase intransponível entre os pressupostos da pedagogia e o modelo da realidade psicológica construído pelas ciências cognitivas (Haase et al., 2015). Isso não significa, entretanto, que as estratégias colaborativas de aprendizagem por descoberta devam ser substituídas por um sistema exclusivo de instrução formal. Ao contrário, Tomasello e cols. (1993) analisaram o sentido da intencionalidade em três formas de aprendizagem cultural. A imitação é uma forma sofisticada de aprendizagem na qual a intencionalidade flui do aprendiz para o modelo. O aprendiz precisa identificar as relações meio-fim do comportamento emitido pelo modelo para que a aprendizagem ocorra. Na instrução a intencionalidade se direciona do professor para o aluno e o peso da responsabilidade pelo sucesso no processo recai sobre o docente. Finalmente, na aprendizagem colaborativa por descoberta, a intencionalidade flui bidireccionalmente entre o aprendiz e o seu colaborador.

A partir da análise conduzida por Tomasello e cols. é possível depreender que cada forma de aprendizagem cultural se associa a um perfil determinado de indicações e contra-indicações. As formas mais sofisticadas de aprendizagem são a imitação e a colaboração. Mas são também as mais exigentes. Além de capacidade de identificar os estados mentais alheios, a colaboração/descoberta pressupões habilidades de fazer inferências e de reciprocidade na interação social. É duvidoso que esse método possa resultar em benefícios para crianças com algum déficit cognitivo ou nas habilidades sociais. Métodos baseados na instrução podem ser muito mais eficazes, indispensáveis mesmo, para crianças com dificuldades sociais e/ou cognitivas (Rourke, 1995). Preconizamos então que o planejamento das estratégias de intervenção educacional deve levar em consideração as diferenças individuais. Não existe educação tamanho único. Há necessidade de um ajuste entre as características do aluno e a didática empregada. Estratégias instrucionais são necessárias para crianças com dificuldades. Os worked examples* foram identificados como uma das estratégias mais eficientes (Sweller et al., 2011).

Os dados empíricos disponíveis corroboram a hipótese de que diferentes estratégias didáticas se associam com perfis distintos de pontos fortes e fracos do indivíduo. Os métodos mais eficientes são os que permitem a aquisição de conceitos e habilidades mais eficientemente em um número maior de alunos (Klahr & Nigam, 2004). A aprendizagem colaborativa por descoberta promove, por outro lado, a criatividade (Bonawitz et al., 2011). O método a ser utilizado deve, portanto, ser customizado de acordo com as características do aluno e do conteúdo a ser ensinado. Crianças com dificuldades sociais e cognitivas necessitam de que a descoberta seja complementada por algum tipo de instrução mais formal. Habilidades mais rotineiras, tais como a decodificação visual de palavras e fatos aritméticos podem ser aprendidos espontaneamente pelas crianças mais bem-dotadas cognitivamente. Mas as crianças com dificuldades podem não adquirir essas habilidades se não receberem instrução explícita. O resultado pode ser visto nas escolas brasileiras sob a forma de adolescentes com inteligência normal que não sabem ler as palavras ou que precisam contar nos dedos para fazer as contas.

Ademais, a grande vantagem dos métodos instrucionais é liberar recursos de processamento (Sweller et al., 2011, Willingham, 2011). A capacidade humana de processamento de informação é sabidamente limitada. Se a criança loca recursos para descobrir conceitos e procedimentos rotineiros, que deveriam ser automatizados, sobram menos recursos de processamento para formas mais complexas de cognição. James (1890) considerava que a educação é o cultivo dos bons hábitos. Com isso ele queria dizer que quanto mais processos cognitivos forem automatizados, forem implementados sem requerer atenção ou esforço consciente, mais recursos de processamento são liberados para o lazer e para formas mais complexas de reflexão. A aquisição de perícia é um bom modelo cognitivo para compreender a aprendizagem. Nas fases iniciais o desempenho é muito sujeito a erro e exige atenção e esforço, ativando estruturas corticais pré-frontais, associada a processamento cognitivo controlado*. À medida que o indivíduo adquire perícia, o processamento vai se automatizando*, exigindo menos atenção, tornando-se mais eficiente e ativando áreas corticais posterior e/ou subcorticais (Willingham, 2011, Zamarian et al., 2009). Aprender a ler as palavras é um pré-requisito para poder ler para aprender. Aprender os fatos aritméticos é indispensável para progredir nas habilidades matemáticas mais complexas.  O que é impossível é formar um cidadão consciente e crítico que não sabe ler nem fazer as contas.

Finalmente a abordagem pedagógica a ser empregada precisa considerar o tipo de conhecimento ou habilidade cognitiva a ser adquirido. Do ponto de vista evolutivo, Geary (2008) classificou as habilidades cognitivas em biologicamente primárias e biologicamente secundárias. A linguagem oral é um protótipo de habilidade cognitiva biologicamente primária. Os bebês não precisam ser ensinados a falar. A motivação é intrínseca e o processo de desenvolvimento da linguagem oral ocorre espontaneamente. Basta que a criança conviva com uma comunidade falante de uma língua nativa. Com a língua escrita é diferente. A lectoescrita* é um artefato cultural, constituindo uma forma biologicamente secundária de conhecimento. Uma forma de conhecimento que é possibilitada, mas não é garantida pelo equipamento cognitivo padrão da espécie. A aprendizagem da leitura e escrita requer, na maioria dos casos, a intervenção de uma pedagogia. Aí a motivação é extrínseca, cognitivamente mediada. Aprender a ler exige esforço. A fluência na leitura de palavras requer três anos de árduo esforço (Dehaene, 2012). A motivação para aprender depende da capacidade de abrir mão de prazeres menores imediatos, tais como brincar ou assistir TV, por recompensas maiores e mais abstratas que são projetadas no futuro e precisam ser mantidas na memória de trabalho* para regular o comportamento. A motivação para o estudo depende fundamentalmente dos resultados; melhores resultados associam-se a melhor auto-eficácia* e consequentemente maior motivação (Bandura, 1989).  Mas anteriormente, os resultados dependem do método pedagógico empregado.

A tipologia de Geary (2008) pode ser aplicada também à aprendizagem da matemática. Algumas habilidades numéricas, tais como os conceitos de cardinalidade, ordinalidade, contagem e as operações são adquiridas espontaneamente pelas crianças no contexto da vida cotidiana. As crianças são intrinsecamente motivadas para isso e não há necessidade de uma pedagogia formal. A aprendizagem do sistema arábico, dos algoritmos de cálculo, das frações, dos problemas verbalmente formulados etc., é bem mais complexa, exige esforço e uma pedagogia formal. É wishful thinking acreditar que as crianças possam adquirir de forma lúdica, espontânea e sem esforço todos os conhecidos e habilidades demandados pelo mundo contemporâneo. A aprendizagem de habilidades cognitivas biologicamente secundárias, novamente, requer esforço e motivação cognitiva. O papel da pedagogia é promover essas habilidades.

A pedagogia é uma estratégia evolutivamente estável, uma característica distintiva da espécie humana, um instinto mesmo (Strauss & Ziv, 2012). A função adaptativa da pedagogia não é preparar o indivíduo para uma sociedade utópica. O objetivo é bem mais prosaico: simplesmente transmitir o legado cultural de uma geração para a seguinte. Outras características evolutivas humanas fazem com que essa tarefa tenha se tornado crescentemente complexa. A neotenia, ou imaturidade relativa do cérebro do bebê humano, possibilitou o surgimento da cultura e a influência da mesma sobre as últimas etapas do desenvolvimento cerebral. O resultado é o surgimento de uma evolução cultural* que é mais rápida e cumulativa do que a evolução biológica*. O resultado é o acúmulo crescente de uma massa de informação que precisa ser transmitida de uma geração para outra em um ritmo cada vez mais veloz. Esse é o desafio da pedagogia. Face às limitações de processamento de informação (capacidade cognitiva) não é realista, eficiente ou justo esperar que as crianças redescubram a cada geração conceitos e procedimentos que a Humanidade levou milhares de anos para desenvolver. As crianças não são epistemólogos, nem cientistas. O desafio da pedagogia é criar atalhos que possibilitem à criança percorrer rápida e eficientemente a trajetória de evolução cultural, assenhorando-se de um repertório básico de conhecimentos e habilidades que lhe permita liberar recursos para processar o novo, para inventar e exercer seu potencial criativo em um patamar superior ao das gerações anteriores.

Por enquanto, a educação no Brasil está formando indivíduos pré-literatos. Uma grande parcela da população vive em situações semelhantes àquelas que antecederam a universalização do ensino primário no Hemisfério Norte. A ciência cognitiva acredita ter algumas respostas para esse desafio. Pode dar certo ou não. Mas a utilização de uma metodologia científica, a fundamentação em evidências é uma garantia de que se as coisas não funcionarem nós teremos condições de verificar isso e mudar o rumo, caso seja necessário.

REFERÊNCIAS

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GLOSSÁRIO:

Auto-eficácia: é a autopercepção ou a crença na capacidade de aprender
Abordagem construtivista: corrente teórica em direciona as práticas pedagógicas em boa parte do mundo
Bases neurocognitivas: conhecimento teórico que embasa as ciências cognitivas e neurociências
Ciências Cognitivas: é o estudo da mente
Cognição: É o conjunto dos processos mentais usados no pensamento na classificação, reconhecimento e compreensão para o julgamento através do raciocínio para o aprendizado de determinados sistemas e soluções de problemas.
Domínio cognitivo: cada uma das funções mentais (ou funções cognitivas). Por exemplo: memória de trabalho, atenção, habilidades visoespaciais, linguagem
Evolução biológica:  é a mudança das características hereditárias de uma população de uma geração para outra. Este processo faz com que as populações de organismos mudem e se diversifiquem ao longo do tempo.
Evolução cultural: termo comum à psicologia evolucionista, se refere as implementações culturais que nossa espécie vem alcançando com o decorrer do tempo.
Lectoescrita: Habilidade adquirida de poder ler e escrever
Memória declarativa: ou de longo prazo como o nome sugere, é aquela que pode ser declarada (fatos, nomes, acontecimentos, etc.) e é mais facilmente adquirida, mas também mais rapidamente esquecida.
Memória de trabalho (ou memória operacional): É um depósito temporário de armazenamento de informações que podem ser acessadas, manipuladas e reorganizadas para serem utilizadas em alguma tarefa
Mente: a atividade mente, como pensamentos, sentimentos e a experiência subjetiva
Metacognição:  é o conjunto de conhecimentos sobre os próprios conhecimentos, e de processos de percepção, avaliação, regulação e organização dos próprios processos cognitivos. Ela pode ser pensada como cognições de segunda ordem: pensamentos sobre pensamentos, aprender a aprender, conhecimentos sobre conhecimentos, reflexões sobre ações 
Modelos neurocognitivos: são modelos teóricos sobre o funcionamento da mente, com evidências demonstradas dentro das ciências cognitivas e neurociências
Motivação: quantidade de esforço e tempo que uma pessoa emprega em determinada atividade.
Neuroimagem funcional: técnica de exame do funcionamento cerebral
Processamento automático: pensamento inconsciente, não intencional, involuntário e fácil
Processamento controlado: pensamento consciente, intencional, voluntário e requer esforço.

Worked examples: corrente teórica associada a instrução direta do aluno, com base nas ciências cognitivas.