Haase, V. G. (2014). Trinta anos de redes
neurais e neuroimagem funcional: o que sobrou da neuropsicologia. Boletim daSBNp, Setembro, pp. 12-15.
A década de 1980 testemunhou dois avanços
importantes na neurociência cognitiva. Em 1986 foi publicado o livro de
referência das redes neurais conexionistas ou processamento distribuído e
paralelo (McClelland et al., 1986, Rumelhart et al., 1986). Dois anos depois
foi publicado o estudo clássico de Petersen e cols. (1988), usando tomografia por emissão de pósitrons
para identificar as áreas cerebrais ativadas pelo processamento lexical. As
redes neurais demonstraram que era possível simular desempenhos cognitivos
relativamente complexos utilizando modelos com algumas dezenas ou centenas de
unidades muito simples, organizadas de forma maciçamente paralela, sem uma
arquitetura previa sofisticada, sem programação explícita e servindo-se apenas
de uma regra de correção de erro nas respostas do sistema. Os comportamentos
complexos simplesmente emergem da dinâmica de um sistema de input-output com
uma camada intermediária, desde que seja utilizada uma regra de aprendizagem ou
correção de erro, a qual diminui a discrepância entre os padrões de ativação
exibidos pela rede e os padrões almejados de output.
Aparentemente, os modelos de rede neural
questionaram a pressuposição tradicional em neuropsicologia de localizacionismo
funcional, uma vez que desempenhos cognitivos complexos podem emergir em sistemas
organizados de forma não-modular. Mais ainda, lesões em sistemas não-modulares
podem, inclusive, resultar em efeitos de dissociação dupla entre funções
preservadas e comprometidas (Kello, 2003), os quais são tradicionalmente
interpretados como evidência para uma organização modular do cérebro-mente. A
neuroimagem funcional reforçou esta hipótese ao mostrar que tarefas cognitivas
relativamente simples e especificas podem recrutar uma rede distribuída de
estruturas cerebrais para sua implementação.
As
investigações com redes neurais e neuroimagem funcional parecem sugerir,
portanto, que a atividade neural subjacente mesmo às tarefas cognitivas mais
simples e específicas recruta uma rede neuronal geograficamente dispersa no
cérebro. Isto contribuiu para abalar a confiança dos neuropsicólogos nos
postulados do localizacionismo. Ao longo das décadas seguintes foi
progressivamente diminuindo a quantidade de estudos com pacientes e aumentando
a proporção de estudos com neuroimagem funcional nos principais periódicos de
neuropsicologia, tais como Neuropsychologia ou Cortex. A história da
neuropsicologia se caracteriza por uma disputa recorrente entre defensores e
detratores do “localizacionismo” (Haase et al., 2012, Lecours et al., 1992). O
localizacionismo parece estar mesmo em baixa nos tempos atuais.
Alguns episódios vivenciados por mim podem
ser tomados como evidência do baixo astral localizatório que assombra a
neuropsicologia atual:
1. Uma
aluna foi apresentar um pôster em um congresso e ficou muito frustrada porque a
avaliadora lhe disse que sua interpretação dos resultados era muito
localizacionista e que o localizacionismo teria “caído”. Ela não soube o que
responder;
2. O
revisor de um artigo que eu enviei para publicação também questionou algumas
das minhas interpretações dos resultados por serem, supostamente, muito
localizacionistas. Eu soube o que responder e o paper foi publicado;
3. Em
uma discussão de um grupo de trabalho eu defini a característica distintiva da
neuropsicologia como sendo o estudo das correlações estrutura-função em
pacientes com algum tipo de lesão ou disfunção cerebral. Um dos colegas
participantes da discussão teve muita dificuldade em aceitar essa afirmação.
Não ficou claro, entretanto, como ele propunha caracterizar alternativamente e
neuropsicologia. Ou seja, o que ele colocaria no lugar da boa e velha
correlação anátomo-clinica. Eu continuo convencido de que a correlação
anátomo-clinica não morreu e permanece sendo a característica distintiva da
neuropsicologia. Antes eu andava nos corredores da FAFICH e me xingavam de
positivista. Agora me xingam de localizacionista. Consola-me pensar que estou
em boa companhia.
Historicamente o pêndulo tem oscilado entre
o localizacionismo e o anti-localizacionismo. As redes neurais e os métodos de
neuroimagem parecem colocar a neuropsicologia clássica em questão. Mas será que
é assim mesmo? Acredito que trinta anos depois temos condições de traçar um
quadro mais equilibrado da situação, incorporando as evidências de redes
neurais e neuroimagem funcional ao corpo de doutrina da neuropsicologia
(Shallice & Cooper, 2011). Esta perspectiva mais equilibrada do
localizacionismo deve considerar, entre outras, as seguintes evidências
teóricas e empíricas:
1. O
localizacionismo estrito é um mito. Talvez nem mesmo Broca fosse um
localizacionista tão ingênuo assim como se lhe costuma atribuir. O
localizacionismo burro parece existir apenas como um espantalho criado na
cabeça dos seus adversários. Carl Wernicke, p. ex., já tinha uma concepção conexionista
e distribuída da localização cerebral (Gage & Hickok, 2005), muito
semelhante à que é defendida contemporaneamente (Haase et al., 2008, 2010,
Mesulam, 1998).
2. As
duplas dissociações em redes não estruturadas modularmente ocorrem apenas
quando o sistema consiste de um número pequeno de unidades. Em redes
não-modulares maciçamente maiores predominam os efeitos de massa após lesões de
magnitude crescente (Bullinaria & Chater, 1995). Conseqüentemente, não se
pode esperar efeitos de dissociação dupla após lesões de um sistema tão
complexo como cérebro humano se o mesmo
não for organizado modular e hierarquicamente.
3. Estudos
de neuroimagem funcional usando a técnica de conectividade funcional mostram
que o padrão de conexão para as principais redes funcionais descobertas pelos
neuropsicólogos é tão forte que pode ser identificado mesmo em repouso (Meunier
et al., 2010).
4. As
pesquisas sobre conectividade funcional mostram também que as principais redes
funcionais desvendadas pelos neuropsícólogos já estão ativas desde o nascimento
(Power et al., 2010). Ou seja, o cérebro humano não é uma tábula rasa ao
nascimento, mas sim, uma estrutura complexa, modularmente hierarquizada, mas
que também suporta processamento paralelo e se adapta de forma plástica e
dinâmica em função da experiência.
5. Além
de validar a localização lesional das principais síndromes neuropsicológicas
(Catani et al., 2012), as pesquisas com tractografia têm demonstrado amplamente
a validade do conceito de síndrome de desconexão proposto pelos neuropsicólogos
clássicos (Catani & ffythce, 2005, Geschwind, 1965a,b).
6. Os
métodos de neuroimagem funcional atualmente disponíveis são muito imprecisos
quanto à sua resolução espacial e temporal. Métodos neurofisiológicos com uma
maior resolução temporal demonstram, p. ex., que padrões de ativação que
parecem distribuídos em uma janela temporal de alguns segundos correspondem, na
verdade, à uma ativação sequencial com uma dinâmica de dezenas a centenas de
milissegundos (Sahin et al., 2009).
7. Os
padrões de ativação distribuída em estudos de neuroimagem funcional indicam as
áreas cerebrais potencialmente envolvidas em uma tarefa, mas não podem
identificar as áreas que são cruciais para um determinado desempenho cognitivo
(Price, 2000). Desta forma, a neuroimagem pode ser mais útil no contexto da
descoberta, ou seja, na identificação de possíveis correlações
estrutura-função. Os estudos com pacientes e a estimulação magnética
transcraniana, por outro lado, são imprescindíveis no contexto de verificação,
para identificar as áreas cuja integridade funcional é absolutamente necessária
para um dado exercício funcional.
Até cerca de 30 anos atrás a neuropsicologia
era o único método não-invasivo para inferir relações sistemáticas entre a integridade
anatômica de determinados circuitos funcionais e a implementação de diversos
processos psicológicos (Shallice, 1988). Este panorama mudou radicalmente. Em
função do desenvolvimento tecnológico dispomos atualmente de recursos que
permitem investigar as correlações estrutura-função in vivo. Entretanto, ao
invés de desbancarem a neuropsicologia, as novas tecnologias contribuem mais
para validá-la, complementá-la e expandí-la.
À medida que o conhecimento se acumula fica
mais claro que as novas tecnologias também se ressentem de importantes
limitações. As redes neurais são mais úteis na formulação precisa e
matematização de hipóteses do que na sua verificação. Além de importantes
restrições estatísticas decorrentes das análises superpostas e probabilidade de
erro de tipo II, bem como quanto à sua
resolução espaço-temporal, a neuroimagem funcional também é mais útil na
formulação de hipóteses do que na sua verificação. Acrescida da estimulação
magnética transcraniana, a neuropsicologia permanece sendo o único método
disponível para estabelecer relações necessárias entre a integridade anatômica de uma dada estrutura
neural e um determinado processo psicológico.
A melhor compreensão das vantagens e
limitações de cada método permite aos pesquisadores utilizar-se de uma
estratégia de validação convergente para testar seus modelos (Shallice &
Cooper, 2011). Os modelos mais válidos são aqueles sustentados por um conjunto
maior de evidências convergentes a partir de diferentes abordagens. O
localizacionismo não morreu. Seu sobrenome é distribuído. Mas você viu algum
autor na história recente da neuropsicologia defender um localizacionismo
estrito, burro? Do tipo tal função é implementada por tal centro? Desde Freud
(1891) ninguém mais pensa assim em neuropsicologia. Só os adversários e os
quinta-coluna, que querem corroer a neuropsicologia por dentro. A
neuropsicologia não é mais o único nem o principal método inferencial para
estabelecer correlações estrutura-função. Nasceram uma série de irmãs mais
jovens. Mas a neuropsicologia continua aí e até hoje não pode ser descartada.
Nâo é mais uma princesinha, mas também não é uma borralheira.
Referências
Bullinaria, J. A., & Chater, N. (1995). Connectionist modelling: implications for
cognitive neuropsychology. Language and Cognitive Processes, 10, 227-264.
Catani,
M. & ffytche, D. H. (2005). The rises and falls of disconnection syndromes.
Brain, 128, 2224-2239.
Catani,
M., Dell'Acqua, F., Bizzi, A., Forkel, S., Williams, S., Simmons, A., Murphy,
D. & de Schotten, M. T. (2012). Beyond cortical localisation in
clinico-anatomical correlation. Cortex, 48, 1262-1287.
Freud,
S. (1891) Zur Auffassung der Aphasien: Eine kritische Studie. Leipzig:
Deuticke.
Gage,
N., & Hickok, G. (2005). Multiregional cell assemblies, temporal binding
and thre representation of conceptual knowledge in cortex: a modern theory by a
"classical" neurologyist: Carl Wernicke. Cortex, 41, 823-832.
Geschwind,
N. (1965a). Disconnection syndromes in animals and man. Part I. Brain, 88,
237-294.
Geschwind,
N. (1965b). Disconnection syndromes in animals and man. Part I. Brain, 88, 585-644.
Haase, V. G., Pinheiro-Chagas, P., da Mata,
F. G., Gonzaga, D. M., Silva, J. B. L, Géo, L. A. & Ferreira, F. O. (2008).
Um sistema nervoso conceitual para o diagnóstico neuropsicológico. Contextos
Clinicos, 1, 125-138.
Haase, V. G., Medeiros, D. G.,
Pinheiro-Chagas, P. & Lana-Peixoto, M. A. (2010). A "Conceptual
Nervous System" for multiple sclerosis". Psychology &
Neuroscience, 3, 167-181.
Haase, V. G., Salles, J. F., Miranda, M. C.,
Malloy-Diniz, L., Abreu, N., Argollo, N., Mansur, L. L., Parente, M. A. M. P.,
Fonseca, R. P., Mattos, P., Landeira-Fernandez, J., Caixeta, L. F., Nitrini,
R., Caramelli, P., Teixeira Jr. A. L., Grassi-Oliveira, R., Christensen, C. H.,
Brandão, L., Corrêa da Silva Filho, H., da Silva, A. G. & Bueno, O. F. A.
(2012). Neuropsicologia como ciência interdisciplinar: consenso da comunidade
brasileira de pesquisadores/clínicos em neuropsicologia. Neuropsicologia
Latinoamericana, 4, 1-8
(http://neuropsicolatina.org/index.php/Neuropsicologia_Latinoamericana/article/view/125).
Lecours,
A. R., Chain, F., Poncet, M., Nespoulos, J. L., & Joanette, Y. (1992).
Paris 1908: The hot summer of aphasiology or a season in the life of a chair.
Brain and Lanaguage, 42, 105-152.
McClelland,
J. L., Rumelhart, D., & the PDP
Research Group (eds.) (1986). Parallel distributed processing. Explorations in
the microstructures of cognitive. Volume 1. Foundations. Cambridge, MA: MTI
Press.
Mesulam,
M. M. (1998). From sensation to cognition. Brain, 121, 1013-1052.
Meunier,
D., Lambiotte, R., & Bullmore, E. T. (2010). Modular and hierarchically
modular organization of brain networks. Frontiers in Neuroscience, 4, 200, (doi: 10.3389/fnins.2010.00200).
Petersen,
S. E., Fox, P. T., Posner, M. I., Mintun, M., & Raichle, M. E. (1988).
Positron emission tomographic studies of the cortical anatomy of single-word
processing. Nature, 331, 585-589.
Power,
J. D., Fair, D. A., Schlaggar, B. L., & Petersen, S. E. (2010). The
development of human functional brain networks. Neuron, 67. 735-748.
Price,
C. J. (2000). The anatomy of language: contributions from functional
neuroimaging. Journal of Anatomy, 197, 335-359.
Rumelhart,
D., McClelland, J. L. & the PDP Research Group (eds.) (1986). Parallel
distributed processing. Explorations in the microstructures of cognitive.
Volume 1. Foundations. Cambridge, MA: MTI Press.
Sahin,
N. T., Pinker, S. Cash, S. S., Schomer, D. & Halgren, E. (2009). Sequential
processing of lexical, grammatical, and phonological information within Broca's
area. Science, 326, 445-449.
Shallice,
T. (1988). From neuropsychology to mental structure. Cambridge: Cambridge
University Press.
Shallice,
T. & Cooper, R. P. (2011). The organisation of mind. Oxford: Oxford
University Press.