Sunday, March 06, 2016

As síndromes neuropsicológicas clássicas iluminam o cérebro

Quando o paciente está em coma, hemiplégico e cachimbando, até o porteiro da Santa Casa sabe que se trata de um AVC hemorrágico. Quando o paciente tem miose e incoordenação motora de um lado e um sinal de Babinski do outro, é preciso um neurologista para reconhecer uma síndrome de Wallenberg, ou infarto lateral do bulbo.

As síndromes neuropsicológicas clássicas são relevantes por si próprias. As “síndromes” consistem em padrões co-ocorrentes de alterações do comportamento observados sistematicamente em adultos com lesões cerebrais adquiridas em determinadas localizações.



Através da investigação clínica, os neurologistas da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX descobriram relações sistemáticas entre uma série de síndromes e uma meia dúzia de sistemas neurais distintos.

Entre os principais feitos da neuropsicologia clássica podem ser mencionados a identificação do papel desempenhado pelas áreas perisilvianas esquerdas na linguagem, pelo lobo parietal esquerdo na aritmética, pelas áreas occípito-temporais ventrais no reconhecimento visual de objetos, pelas áreas occipito-parietais dorsais na localização espacial de objetos e programação da ação, pelas áreas temporais mediais na memória de longo prazo e emoções, pelas áreas frontais na auto-regulação etc.

As descobertas neuropsicológicas clássicas têm sido confirmadas, ampliadas e reinterpretadas pelos métodos contemporâneos de investigação, principalmente de neuroimagem funcional. Elas constituem o legado e o fundamento de um campo interdisciplinar que está atingindo sua maturidade.

Poucos fenômenos escaparam à atenção dos neuropsicólogos clássicos. Um dos mais notáveis é a memória semântica. Os neurologistas clássicos investigavam primordialmente o comportamento de pacientes com AVC. É raro encontrar lesões seletivas das áreas neocorticais temporais inferiores em pacientes com AVC. Dessa forma, foi necessária aguardar a caracterização das seqüelas de encefalite por Herpes e a descoberta da demência semântica para começar a compreender a representação de conhecimentos factuais e conceituais no cérebro.

Outro fenômeno com o qual os neuropsicólogos clássicos nem sonhavam é o chamado modo default de funcionamento do cérebro. Os estudos de neuroimagem funcional em repouso demonstraram que quando a atenção não é requerida por estímulos externos, ela se volta para o ambiente interno, para o self e para a sociabilidade. Enquanto a atenção ao mundo externo ativa áreas laterais dos hemisférios cerebrais, a atenção ao mundo interno ativa as áreas mediais.

A atenção ao mundo interno constitui o modo default de funcionamento do cérebro. Ou seja, aquele modo ao qual o cérebro recorre quando não existe uma tarefa mais premente a ser resolvida. A atividade na rede default aumenta de coerência à medida que o indivíduo amadurece, diminundo os padrões de atividade sincronizada com o envelhecimento e com os diversos transtornos psiquiátricos. O modo default pode estar relacionado à capacidade de insight, desempenhando um importante papel na cognição e saúde mental.

O conhecimento em neuropsicologia não estagnou na época clássica. Mas não deixa de ser surpreendente o modo como as novas descobertas são consilientes com os fatos tradicionalmente estabelecidos. Significa que estamos ampliando nossos horizontes em cima de uma base sólida, em cima dos ombros de gigantes, para usar uma metáfora gasta porém útil.

A neuropsicologia e o método anátomo-clinico muito contribuíram para o desenvolvimento da chamada “psiquiatria biológica”. Os neurologistas do século XIX observaram, p. ex., que pacientes com lesões prefrontais ventromediais apresentavam alterações do comportamento social, principalmente sob a forma de impulsividade e dificuldade para prever as conseqüências do comportamento.

Os psiquiatras também observaram síndromes comportamentais fenomenologicamente semelhantes em diversos tipos de doenças mentais, como p. ex., o transtorno bipolar. Surgiu então a hipótese de que muitos sintomas psiquiátricos pudessem refletir disfunções mais sutis de redes neurais que se encontram lesionadas em pacientes neurológicos. Essa hipótese somente pode ser verificada a partir do momento em que os exames de neuroimagem funcional se tornaram disponíveis. Mas sua origem pode ser encontrada na neuropsicologia.

O argumento que eu defendo então é que o conhecimento das síndromes clássicas é relevante não apenas para os neuropsicólogos que trabalham com doentes neurológicos, mas também para aqueles que trabalham com doentes psiquiátricos ou com crianças e jovens com transtornos do desenvolviemtno. As síndromes clássicas têm esse papel fundacional na nossa disciplina.

E o motivo é muito simples. Diagnosticar significa reconhecer padrões. Esse conceito pode ser ilustrado através de um tipo de figuras fragmentárias chamadas de figuras de Gollin (vide ilustrações). A familiaridade com os estímulos torna o reconhecimento mais fácil e rápido.



Kurt Goldstein sentenciou que os sintomas são respostas às nossas perguntas. Somente constitui um sintoma neuropsicológico ou uma síndrome um padrão que é reconhecido como associado a um determinado significado. A uma determinada localização lesional ou ao comprometimento de um certo componente em um modelo de processamento de informação.



Muitas vezes o reconhecimento de padrões precisa ser efetuado a partir de fragmentos. A partir de formas incompletas ou frustras de uma determinada síndrome. São esses os casos mais desafiadores, os que exigem maior experiência e habilidade por parte do clinico.




Quando os déficits neuropsicológicos são nítidos e típicos, os escores dos testes como que falam por si mesmos. A realidade constitui-se, entretanto, de uma maçaroca de informações que é preciso destrinchar. O desempenho em alguns testes pode ser normal ou deficitário, mas isso pode constituir erro de medida. Por outro lado, em outras tarefas cognitivas o desempenho pode se situar no limte inferior da normalidade. É nesses casos que há necessidade de reconhecer um padrão que permita selecionar fenômenos clinicamente relevantes de ruído causado por erro de medida.



Isso é especialmente relevante no caso das doenças psiquiátricas e transtornos do desenvolvimento. Nessas duas situações é que o diagnóstico neuropsicológico se reveste da características primordial de completação de padrões a partir de fragmentos. Sem conhecimento prévio dos padrões sindrômicos não há como reconhecer seus fragmentos.

Poder-se-ia questionar a relevância do conhecimento das síndromes clássicas, identificadas em adultos, para a caracterização dos problemas neuropsicológicos do cérebro em desenvolvimento. Afinal o cérebro em desenvolvimento é muito mais plástico e dinâmico do que o cérebro adulto.

Uma posição teórica denominada construtivismo neural defende a hipótese de que o cérebro do bebê seria uma espécie de tábula rasa na qual a cultura e a experiência inscrevem as correlações estrutura-função observadas no adulto. As funções nãos eriam localizáveis no cérebro do bebê, apenas no adulto e como conseqüência do processo de desenvolvimento. Segundo essa posição os padrões sindrômicos neuropsicológicos observados em adultos corresponderiam à lesão de atratores. Ao comprometimento de padrões atividade para os quais o sistema convergiu epigeneticamente em função da experiência e aprendizagem cultural.

Assim sendo, conforme o construtivismo neural seria um nonsense total querer aplicar conhecimentos derivados da neuropsicologia de adultos à caracterização das relações estrutura-função do cérebro em desenvolvmento. Segundo essa perspectiva, a neuropsicologia cognitiva seria muito estática para ser aplicada ao cérebro em desenvolvimento. O exame neuropsicológico forneceria apenas quadros instantâneos de um processo dinâmico, os quais poderiam levar a inferências falsas.

Até hoje os trabalhos de inspiração neuroconstrutivista foram incapazes de mostrar situações nas quais a aplicação dos princípios de correlação anátomo-clinica derivados da neuropsicologia de adultos desviasse os pesquisadores da rota correta. Obviamente, o cérebro em desenvolvimento é mais plástico e dinâmico. Portanto, os métodos clássicos da neuropsicologia nem sempre acertam no alvo de forma precisa. Sempre existe uma margem de erro e necessidade de correções. Mas as correlações anátomo-clincas observadas no adulto permanecem como um arcabouço, como um referencial extremamente útil.

Diversos resultados de pesquisa contemporâneos salientam a relevância das síndromes neuropsicológicas clássicas para a neuropsicologia do desenvolvimento.

Algumas vezes a neuroplasticidade falha e podem ser observadas síndromes neuropsicológicas clássicas adquiridas muito cedo na infância. E essas síndromes adquiridas precocemente se caracterizam por padrões anátomo-clinicos muito semelhantes àqueles observados nos adultos. É o caso, p. ex., de blindsight após lesões occipitais primárias, agnosia visual para objetos após lesões occipiti-temorais ventrais, síndrome de Bálint, simultanagnosia e ataxia óptica após lesões parietais superiores, heminegligência visoespacial após lesões da encruzilhada têmporo-parieto-occipitial direita, afasias sutis porém persistentes após lesões perislivianas esquerdas e transtors graves e persistentes de conduta após lesões prefrontais ventromediais.

A possibilidade de ocorrência dessas síndromes em bebês e crianças pequenas sugere que existe uma blueprint genética que especifica, dentro de determinados limites epigenéticos, as correlações anátomo-clinicas possíveis de cada estrutura cerebral. Quando a neuroplasticidade funciona, essas correlações são mascaradas. Quando ela falha essas correlações são evidenciadas.

Adicionalmente, as pesquisas genético-moleculares têm mostrado que os mecanismos de regulação da plasticidade sináptica são susceptíveis a uma enorme variabilidade interindividual. Os processos sinápticos envolvidos no desenvolvimento cerebral, aprendizagem e recuperação lesional são regulados pelos mesmos mecanismos gênicos. E a falha desses mecanismos gênicos está implicada na origem de diversos ranstornos do desenvolvimento, tais como deficiência intelectual, síndromes genéticas e transtornos de aprendizagem.

Uma outra linha de evidências relevantes vem dos estudos com as correlações de atividade cerebral em repouso, uma técnica de neuroimagem recentemente desenvolvida. O participante permanece na máquina de ressonância magnética funcional por alguns minutos, em repouso. Ou seja, ativando mais pronunciadamente apenas sua rede default.

A seguir os pesquisadores se utilizam de algoritmos poderosos para identificar padrões de correlação cruzada em repouso entre as diversas áreas cerebrais. Os estudos de análise da conectividade funcional demostraram que aquela meia dúzia de redes neurais identificadas pelos neuropsicólogos clássicos exibe padrões de correlação de atividade tão poderosos, que os mesmos podem ser detectados em repouso.

Ao contrário do que supunham os neuroconstrutivistas, o cérebro do bebê não é uma tábula rasa. A blueprint está lá desde o inicio. A mesma meia dúzia de redes neurais que caracteriza o cérebro adulto também pode ser identificada pela conectividade em repouso do cérebro bebê. A diferença é que a atividade no bebê é mais localizada. O processo de desenvolvimento não consiste então em uma localização progressiva das funções cerebrais, mas sim em uma integração progressiva de um conjuntos de redes que funcionam inicialmente de um modo mais independente.

O cérebro do bebê não é menos, mas mais localizacionista doque o cérebro do adulto. O desenvolvimento e a aprendizagem permitem integrar de forma progressiva e hierárquica esses diversos módulos. A diferença entre o bebê e o adulto é que a diminuição da plasticidade sináptica dificulta a reconfiguração do sistema em caso de lesão no cérebro maduro.

O localizacionismo é outro ponto contencioso. Muitas vezes se ouve dizer que “o localizacionismo caiu”. Não caiu nada. O que caiu foi o localizacionismo estrito. Mas nenhum pesquisador sério desde Carl Wernicke defende posições localizacionistas estritas. Wernicke já tinha uma concepção do cérebro como um rede integrada e plástica. “Localizacionismo estrito” é um espantalho, um recurso retórico usado pelos inimigos da neuropsicologia.

A concepção de localizacionismo que prevalece na neuropsicologia é aquela de um localizacionismo distribuído. Luria falava em sistemas funcionais. Um sistema funcional, como p. ex., a expressão ou a compreensão verbal, tem uma determinada função adaptativa e recruta determinadas redes neurais. Diferentes configurações de atividade dessas redes correspondem a sistemas funcionais distintos. Muitas redes são compartilhadas por mais de um sistema funcional. Mas as configurações espaço-temporais de atividade dos diversos sistemas funcionais são singulares, únicas. Essa concepção tem sido reforçada a partir dos estudos contemporâneos de neuroimagem que investigam a conectividade estrutural e funcional do cérebro.

A caracterização neuropsicológica dos transtornos de aprendizagem como dislexia e discalculia serviu-se das síndromes observadas nos adultos como modelos. Correções, ampliações e reinterpretações se fizeram necessárias. Mas não houve nenhuma mudança radical de rumo. Até agora, tudo indica que a neuropsicologia sempre esteve no caminho certo.

Vejamos o caso da dislexia. A recodificação fonológica é o mecanismo primordial de aprendizagem da leitura de palavras isoladas. Mas os mecanismos lexicais de leitura passam a ter importância crescente a partir do momento em que a correlação grafema-fonema é automatizada. Assim, sendo o modelo de dupla rota, fonológica e lexical, do adulto permenece sendo o modelo descritivo mais completo das dificuldades de leitura associadas ao desenvolvimento. E mais ainda, o modelo de dupla rota demonstra valor heurístico na medida em que previu a existência de uma série de subtipos de dislexia que não eram clinicamente reconhecidas.

Finalmente, examinemos o que acontece com a cognição numérica. Os fatores cognitivos subjacentes à aprendizagem da aritmética em crianças são os mesmos relevantes para a acalculia dos adultos: memória de trabalho, memória semântica, processamento fonológico, habilidades visoespaciais e senso numérico. Da mesma forma que na acalculia do adulto, o lobo parietal, principalmente esquerdo, também foi implicado na discalculia do desenvolvimento.

Os padrões de ativação cerebral observados em crianças ao aprenderem operações aritméticas simples são um pouco diferentes daqueles observados nos adultos. As crianças, p. ex., ativam mais fortemente o córtex pré-frontal do que o giro angular esquerdo. Mas a rede parieto-frontal ativada em crianças é idêntica à rede parieto-frontal ativada em adultos.

Uma outra diferença entre adultos e crianças na aprendizagem de operações aritméticas simples é que as crianças ativam o hipocampo quando estão memorizando fatos aritméticos novos e os adultos não. Fica claro então, que há diferenças entre crianças e adultos. Mas o significado da ativação do hipocampo em crianças aprendendo fatos aritméticos somente pode ser inferido se considerarmos o papel do hipocampo na aprendizagem a longo prazo, o qual foi elucidado em adultos há mais de sessenta anos.

Acredito então que o estudo das síndromes neuropsicológicas clássicas, as grandes síndromes, é relevante não apenas para a neuropsicologia de adultos, mas também para a neuropsicologia aplicada a transtornos do desenvolvimento cerebral. A Profa. Marilena Chauí uma vez declarou que “Toda vez que o Lula fala, o mundo se ilumina”. Eu falo assim: “O conhecimento das síndromes neuropsicológicas ilumina o cérebro”. O Lula não ilumina mais o mundo, mas continua enchendo a paciência. A neuropsicologia não é mais a única fonte de luz. mas continua sendo um facho poderoso.


Referência das figuras de Gollin

Goldenberg, G. (2007). Neuropsychologie. Grundlagen, Klinik, Rehabilitation. München: Urban & Fischer.


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