Saturday, October 05, 2019

CIÊNCIA COGNITIVA DESTRONANDO MITOS EDUCACIONAIS

A educação contemporânea e eivada por mitos, que não resistem a uma exame parcimonioso à luz das evidências científicas (Christodoulou, 2014, Willingham, 2011) Alguns mitos especialmente importantes dizem respeito ao papel do conhecimento e da instrução na educação. Esses mitos podem ser expressos de diversas maneiras. Abaixo estão sintetizadas algumas formas sob as quais eles aparecem.

PAPEL DO CONHECIMENTO

  • "A educação não deve se reduzir à mera transmissão de conhecimento".
  • "As tecnologica informáticas mudaram tudo. Não há mais necessidade de memorizar, uma vez que todo o conhecimento está disponível na internet".
  • "A decoreba de fatos impede a compreensão".
  • "Mais do que adquirir fatos, as crianças precisam adquirir habilidades de raciocínio crítico".
  • "Transmitir conhecimento é doutrinação".

PAPEL DA INSTRUÇÃO

  • "Não se deve ensinar a uma criança aquilo que ela poderia compreender por conta própria".
  • "A instrução é um método passivo de aprendizagem".
  • "A instrução tolhe a criatividade". 
  • "A aprendizagem deve ser significativa no contexto de vida da criança". 
  • "A aprendizagem deve ocorrer principalmente por experimentação e descoberta, através da colaboração com os pares".
  • "Atividades em projetos são o melhor meio de aprender".
  • "As crianças são curiosas e criativas, quando confrontadas com problemas formulam e testam hipóteses, como se fossem pequenos cientistas, até inferirem a solução e os conceitos subjacentes".

A persistência desses mitos contrasta com sua fragilidade quando examinados face às evidências científicas. Sealy (2019) publicou um belo texto na revista EducatioNext, examinando a relevância dos conceitos de memória episódica e semântica para a educação (vide tradução aqui). A tese da autora é que a aprendizagem que dura é o conhecimento, que depende da memória semântica.

A memória episódica é contextualizada no tempo e no espaço e centrada no self. A memória episódica é emocional e motivacionalmente carregada e sua aquisição depende de vivências marcantes (episódios). Mas, assim como ela vem, a memória episódica vai. A memória episódica é amarrada ao contexto e à perspectiva subjetiva, não servindo de base para generalização, ou seja, abstração e transferência de um contexto para outro.

A memória semântica, incluindo conhecimento conceitual e factual, é menos charmosa porque não é contextualizada e não é emocional e subjetivamente carregada. O desenvolvimento da memória semântica requer esforço repetido. Mas a memória semântica é a única forma de conhecimento que permite a abstração e a generalização de um contexto para outro. A memória semântica e adquirida através de uma série de episódios de estudo, dos quais não persistem lembrancas. Uma característica importante da memória semântica é que não temos uma noção conscientes de como aprendemos, mas esse é o tipo de conhecimento que persiste e tem aplicabilidade na vida.

Ou seja, décadas depois de sair da escola, permanecem apenas as memórias episódicas mais vívidas, aquelas adquiridas no contexto de episódios marcantes. As demais memórias episódicas se esvaem. Mesmo as memórias episódicas que permanecem são de pouca utilidade. Uma característica saliente da memória episódica é que ela é dependente do contexto e precisa sempre ser reconstruída a partir de pistas contextuais. A memória episódica é também reconstrutiva, ou seja, pistas contextuais atuais auxiliam a reconstruir os fragmentos nebulosos disponíveis. Ao contrário, a memória semântica é acessível num átimo, tem relevância prática para as situações da vida e permite assimilar nova informação ao mesmo tempo em que se acomoda à nova informação adquirida.

Eu só tenho um reparo ao texto de Sealy (2019). Ela restringe a discussão à distinção entre memória episódica e semântica. Mas algumas coisas às quais ela se refere, como p. ex., algoritmos de cálculo, não dependem apenas da memória semântica, mas também da memória procedimental. Mas esse é apenas um detalhe, cujo correção tornaria o texto tecnicamente melhor, mas não mudaria a mensagem.
Acho que uma concepção mais adequada dos tipos de conhecimento relevantes para a aprendizagem escolar deveria incluir: a) conceitos, como a propriedade comutativa da adição e multiplicação ou o valor posicional; b) fatos como a tabuada de multiplicação; c) procedimentos como os algoritmos de cálculo; d) hábitos ou condicionamentos como a capacidade para postergar a recompensa.

Os episódios marcantes, as atividades divertidas e atraentes na escola, são importantes do ponto de vista motivacional. Mas são os conceitos, fatos, procedimentos e hábitos que as pessoas continuam usando pela vida afora, após sairem da escola.

Referências

Christodoulou, D. (2014). Seven myths about education. London: Routledge / The Curriculum Centre.


Willingham, D. T. (2011). Por que os alunos não gostam da escola? Respostas da ciência  cognitiva para tornar a sala atrativa e efetiva. Porto Alegre: ARTMED.



COMO O ESTUDO DA MEMÓRIA DESTRÓI MITOS EDUCACIONAIS


Qual é a melhor maneira de ajudar as crianças a se lembrarem das coisas? Não são "experiências memoráveis"

Clare Sealy


Tradução de Vitor Geraldi Haase

Quando olhamos para trás, para o nosso tempo escola, nossas lembranças mais fortes são provavelmente uma mistura de grandes ocasiões: viagens de campo, peças teatrais e torneios esportivos, além de eventos mais pessoais emocionalmente carregadoss. Coisas que aconteceram e que foram realmente engraçadas ou tristes ou que nos fizeram sentir empolgadas, interessadas, entusiasmadas ou zangadas. Não tendemos a lembrar vividamente, se é que o conseguimos, como aprendemos os conteúdos de matemática, inglês ou ciências. Talvez nos lembremos de histórias engraçadas de lições que deram errado, ou ainda nos ressintamos com as injustiças do passado - "mas eu não estava falando" - ou tenhamos uma vaga reminiscência de estar no laboratório de ciências, com trechos fugazes de lembranças dessa ou daquela experiência. Tudo isso nos leva a formular a hipótese inteiramente razoável de que, se queremos que os alunos se lembrem do que lhes ensinamos, precisamos tornar nossas lições mais parecidas com os eventos pontuais, especiais espetaculares. Ou, pelo menos, selecionar atividades especialmente selecionado porque são envolventes, emocionantes e possivelmente incomuns. Eventos memoráveis, nessa visão, devem formar o modelo para a criação de lições memoráveis.

Por mais razoável que pareça, isso é um mito. É um mito porque a memória humana funciona de duas maneiras diferentes, ambas igualmente válidas, mas uma das quais é muito melhor em transferir o que aprendemos para novos contextos. Essa transferência é um pré-requisito essencial para a criatividade e o pensamento crítico.

As duas formas de memória são conhecidas como memória episódica e semântica. Memória episódica é a memória dos 'episódios' de nossa vida - p. ex., nossa memória autobiográfica. Isso não exige esforço de nossa parte, simplesmente "acontece". Não precisamos nos lembrar conscientemente do que aconteceu ontem. Essas memórias acontecem automaticamente. Mas há uma desvantagem. Assim como a memória episódica “vem fácil", ela também "vai fácil”. Se você tentar se lembrar do que almoçou ontem, provavelmente se lembrará. Se você tentar se lembrar do que comeu no almoço há um ano - a menos que tenha sido uma data muito significativa e um almoço particularmente digno de nota -, você não fará ideia.

A memória semântica, por outro lado, envolve muito mais trabalho. Temos que fazer um esforço para criar memórias semânticas. Esse é o tipo de memória que usamos quando estudamos algo conscientemente, porque queremos lembrá-lo. Ao contrário da memória episódica, a aprendizagem semântica não apenas "acontece". O lado positivo, no entanto, é que o esforço envolvido resulta em uma memória duradoura.

Você já frequentou um curso em que realmente gostou de ouvir o palestrante, achou o assunto interessante e o apresentador divertido e envolvente. No entanto, quando você tenta explicar a alguém no dia seguinte sobre o que era o curso, tudo o que resta é uma vaga impressão de suas emoções durante o dia, tingida com fragmentos de conteúdo? Você sabe que o curso foi realmente bom, mas não pode explicar realmente sobre o que era, além de afirmações mais gerais. Isso ocorre porque, nesse ponto, suas memórias são principalmente episódicas e já estão desaparecendo. É provável que isso tenha acontecido se você apenas ouviu o orador em vez de fazer algumas anotações e se não precisou realizar atividades durante o dia que o fizeram pensar muito sobre o conteúdo. Mas, mesmo que você tenha lido, a menos que releia essas anotações algum tempo depois, ou leia o PowerPoint, ou os blogs que eles mencionaram, ou planeje uma reunião da equipe para contar aos outros o que aprendeu, a menos que você se esforce revisitando a mensagem, por mais inspiradora que tenha sido a mensagem na época, sua memória de detalhes reais desaparecerá rapidamente - deixando você na melhor das hipóteses boas lembranças de um dia agradável e interessante.

A memória episódica é altamente contextual - as memórias episódicas são associadas às experiências sensoriais e emoções que experimentamos à época da sua aquisição. Então, quando relembramos nosso curso, lembramos do ar-condicionado defeituoso, do almoço maravilhoso, dos artigos de papelaria sofisticados. Irritantemente, podemos lembrar essas coisas mais fortemente do que realmente queremos lembrar. Os professores provavelmente já tiveram essa experiência com as aulas. Quando os professores pedem aos alunos que se lembrem do que estavam aprendendo no dia anterior, eles lembram todo tipo de coisa: que você usou Post-it Notes, que Maria estava atrasada, que você serviu café e que Pedro fez uma piada hilária. O conteúdo real da lição? Memórias disso são muito mais fracas.

Essas pistas sensoriais e emocionais são acionadas quando tentamos recuperar uma memória episódica. O problema é que, às vezes, os alunos lembram das tags contextuais, mas não do aprendizado real. A memória episódica está tão ligada ao contexto que não serve para lembrar as coisas quando esse contexto não está mais presente. Isso significa que a memória episódica tem sérias limitações em termos de sua utilidade como principal estratégia para educar as crianças, pois tudo o que é lembrado está tão ligado ao contexto em que foi ensinado. Isso não cria uma aprendizagem flexível e transferível que possa ser exercida em diferentes contextos e circunstâncias. No entanto, é essa transferibilidade que é o pré-requisito essencial para a criatividade e o pensamento crítico.

Felizmente, também temos a memória semântica. A memória semântica não tem as limitações da memória episódica. As memórias semânticas são livres de contexto. As memórias semânticas foram liberadas do contexto espacial/temporal  e emocional em que foram adquiridas pela primeira vez. Depois que um conceito é armazenado na memória semântica, ele é mais flexível e transferível entre diferentes contextos. A memória semântica é central, portanto, para o aprendizado de longo prazo, aprendizado que pode ser usado em novos contextos para resolver problemas inesperados. Memória semântica é o que usamos quando resolvemos problemas ou somos criativos. Isso envolve a aplicação de algo aprendido em um contexto a outro contexto novo. As memórias episódicas, por outro lado, não são flexíveis e não são transferidas facilmente, porque estão ancoradas em detalhes.

Isso explica a frustração que os professores sentem no início de cada ano escolar, quando as crianças parecem não ter absolutamente nenhuma pista do que deveriam ter aprendido no ano anterior. Não é que o professor anterior tenha mentido ou se iludido ao dizer que as crianças entenderam frações. O professor anterior apenas não havia percebido que esse entendimento ainda não estava consolidado na memória semântica e ainda era altamente dependente da memória episódica. Era, portanto, altamente dependente de fortes pistas contextuais para ser lembrado. Mude a criança para uma sala de aula diferente, com um professor diferente, sentado ao lado de colegas de classe diferentes e, sem o contexto familiar, e o aprendizado simplesmente não poderá ser lembrado. Isso é mau o suficiente quando as crianças mudam de uma classe para outra, mas o problema é grandemente amplificado quando as crianças mudam de escola, como passar da escola primária para a secundária. Aqui o contexto é imensamente diferente, prédio diferente, caminho diferente para a escola, uniforme diferente. Muito do que era familiar, se foi. Não é de admirar que os professores secundários geralmente pensem que os professores primários superestimam o que seus ex-alunos sabem. Com tanto contexto familiar removido, apenas o que tiver sido armazenado com segurança na memória semântica poderá ser transferido para a vida no ensino médio.

A formação de memórias semânticas requer trabalho e prática. Diferentemente das memórias episódicas, elas não simplesmente "acontecem". Se você quer se lembrar de algo, precisa pensar sobre isso, não apenas experimentá-lo. O psicólogo cognitivo Daniel Willingham explica que “a memória é o resíduo do pensamento”. Quanto mais você pensa sobre algo, maior a probabilidade de se lembrar desse conteúdo. Portanto, os professores precisam garantir que as aulas ofereçam aos alunos a oportunidade de pensar nas coisas que realmente queremos que lembrem, em vez de outras coisas estranhas. Precisamos que eles pensem na mensagem da lição, e não no meio que usamos para ensiná-la. É aqui que as lições "divertidas" podem impedir involuntariamente a aprendizagem. Se o meio escolhido para ministrar a lição é muito intrusivo, é nele que os alunos focam, e não no que quer que seja, realmente queremos que eles aprendam. Por exemplo, lembro-me de alguém sugerindo o uso de pistolas de água para ensinar as crianças sobre ângulos. Esta não é uma sugestão sem algum mérito. Gosto particularmente da maneira como aqui o ângulo é ensinado verticalmente como trajetória, e não apenas horizontalmente, como é mais comum em papel, lápis e transferidor. Talvez o autor desta sugestão seja um professor muito mais habilidoso do que a maioria. Mas não consigo deixar de pensar que muitas crianças estariam pensando mais em oportunidades de acidentalmente esguicharem Joãozinho de propósito do que na natureza de ângulos agudos. Mesmo uma atividade menos aventureira - um jogo de matemática, por exemplo - corre o risco de estimular as crianças a pensarem mais sobre as regras do jogo do que sobre a matemática real. Isso não constitui um problema quando um professor decidir sacrificar uma lição para aprender as regras de um jogo que será usado repetidamente ao longo do ano. Mas isso é altamente problemático se os professores não estiverem atentos às possibilidades de que eles possam estar involuntariamente sabotando o aprendizado, tornando o meio de aprendizado mais proeminente do que a mensagem real. Quando os professores planejam as aulas, precisam estar atentos ao que as crianças vão pensar durante cada parte da aula, e não ao que elas estarão sentindo ou fazendo. Planejamos atividades que garantam que as crianças pensem bem nas coisas certas? Caso contrário, não é surpreendente quando as crianças se lembram muito pouco além dos limites dessa lição específica.

Alguns tipos de atividades envolvem reflexão, mas nem sempre sobre as coisas centrais que queremos que as crianças entendam. Por exemplo, fazer experimentos científicos práticos envolve muito planejamento, o que fazer em seguida, monitorar o que está acontecendo etc. De fato, os elementos práticos requerem tanta energia mental que podem não restar muitos recursos cognitivos para realmente pensar nos conceitos que o experimento deve transmitir. Quando o Ofsted, o Escritório Britânico de Padrões em Educação, investigou o ensino de ciências nas escolas primárias, descobriu que muitas escolas tentavam erroneamente ensinar os conceitos de ciência quase inteiramente por meio de experimentos práticos:

"O equívoco aqui é que 'trabalhar como um cientista' se torna o mecanismo para o ensino de conhecimentos e conceitos. No entanto, abordar o ensino de ciências dessa maneira leva a um problema recorrente em que os alunos se envolvem nessas lições mais com o experimento memorável do que com o conhecimento subjacente que deveriam aprender. Por exemplo, quando os inspetores interrogavam os alunos durante as visitas, os mesmoss conseguiam se lembrar facilmente da tarefa realizada, mas tinham dificuldades para explicar como os processos que estavam investigando realmente funcionavam."

O que não quer dizer que as crianças não devam fazer experimentos científicos, mas que os professores precisam estar cientes de que é improvável que os alunos obtenham entendimento dos conceitos científicos, a menos que os experimentos sejam conduzidos depois que esses conceitos já foram ensinados. Uma vez que os conceitos científicos estejam consolidados, as crianças são muito mais capazes de realmente "pensar como cientistas", com o benefício adicional de que a atividade prática consolida a compreensão do aprendizado anterior.

O mesmo vale para atividades que exigem que as crianças pesquisem informações por conta própria. Se isso for feito como uma maneira de obter informações em primeira instância, é improvável que o esforço cognitivo de localizar as informações corretas deixe poucos recursos de processamento para as crianças realmente se lembrarem muito do que descobriram. As crianças vão pensar sobre onde podem encontrar o que precisam descobrir e se o que estão lendo é relevante, em vez de realmente pensar no que descobrirem. Se lembrar o que foi descoberto é importante - e presumivelmente é,ou então por que perder tempo descobrindo isso - os professores precisam ter em mente que será necessário gastar tempo extra, antes ou depois das atividades de pesquisa, refletindo sobre os conteúdos encontrados.

Esse problema surge mais uma vez no ensino de matemática através da resolução de problemas. Alguns professores acreditam que tarefas enriquecidas, como investigações em que as crianças descobrem relacionamentos por si mesmas, são uma maneira muito melhor de ensinar do que instruir explicitamente às crianças como fazer as coisas. Descobrir é visto como mais criativo, exigindo mais imaginação, mais interessante e, portanto, muito mais provável que as crianças realmente entendam a matemática conceitualmente, em vez de apenas regurgitar um procedimento. No entanto, embora as tarefas enriquecidas tenham seu lugar, elas são completamente inadequadas para o estágio inicial de aprendizado, quando as crianças encontram um conceito pela primeira vez. Se queremos que os nossos filhos se tornem solucionadores críticos e independentes de problemas, precisamos ensiná-los com cuidado e explicitamente para que a memória semântica possa começar a se formar. Por mais intuitivo que pareça, as crianças não se tornam solucionadoras independentes de problemas, resolvendo problemas de maneira independente. Isso ocorre porque quando as crianças estão tentando resolver problemas antes de saberem a matemática necessária para isso, gastam considerável energia mental rastreando o que devem resolver com relação ao que descobriram até agora, tanto que, mesmo quando eles tiverem sucesso, terão esquecido o que realmente fizeram a caminho de finalmente encontrar a resposta!

Há muita pesquisa que mostra que o ensino é muito mais eficaz quando o professor explica explicitamente o material em etapas pequenas e cuidadosamente pensadas, dando às crianças muitas oportunidades de praticar antes de avançar para o próximo pequeno passo. Isso é particularmente verdadeiro na fase inicial da aprendizagem de aquisição de conhecimento. Por exemplo, consulte os "Princípios da Instrução" de Barak Roshenshine, "No que consiste o ensino ótimo" de Coe e cols., ou "O que funciona: práticas baseadas em evidência  para melhorar o desempenho acadêmico na Nova Gales do Sul", do Centre for Education and Statistics of New South Wales, Australia.

Mesmo que as lições se dividam em pequenos passos e envolvam as crianças pensando muito sobre as coisas certas, os professores ainda podem ter a seguinte experiência muito familiar. No final de uma sequência de lições sobre um tópico específico, um professor sente-se razoavelmente confiante de que a maior parte da classe aprendeu a fazer o que quer que estivesse aprendendo - o algoritmo espacial para aprender as operações de multiplicação com números de vários algarismos, por exemplo. As crianças podem ter um desempenho razoável em uma avaliação no final da unidade. No entanto, quando o tópico é revisitado algumas semanas depois, não apenas as crianças não se lembram de como usar o algoritmo espacial, mas também nãose lembram de ter ouvido falar dele antes! Essa situação pode deixar os professores desanimados e se perguntando onde erraram.

A menos que os professores planejem oportunidades para revisar os conceitos novamente mais tarde, em algum momento bem posterior à aprendizagem do conceito, é provável que a memória semântica ainda não seja forte o suficiente para fazer o trabalho que precisamos. Precisamos multiplicar as oportunidades que os alunos têm para pensar muito sobre as coisas importantes que queremos que eles aprendam. Estamos dando aos alunos a oportunidade de pensar sobre os conceitos em um ambiente menos contextualizado? Não é tão difícil utilizar o algoritmo espacial no meio de uma lição em que o professor recém modelou como fazê-lo. Para construir uma forte memória semântica, os alunos precisam de oportunidades para fazer as coisas quando o ensino específico de como fazê-las é menos recente. Eles também precisam de oportunidades para realizá-las quando menos pistas contextuais são fornecidas. Quando, por exemplo, eles não foram informados: "para resolver isso, você precisará multiplicar usando o algoritmo espacial".

Nas aulas, os professores fornecem todos os tipos de pistas e sugestões, garantindo que as crianças dão as respostas certas. Isso é bom como um primeiro passo, mas, a menos que os professores também tenham estratégias que permitam que os alunos superem a mera execuçào das tarefas, pouco poderá realmente ser mantido a longo prazo. Em um artigo de 2015 na Perspectives on Psychological Science, Nicholas Soderstrom e Robert Bjork explicam a diferença entre desempenho e aprendizado. Desempenho é o que podemos ver acontecendo durante o ensino. Aprender, por outro lado, é algo invisível que se passa na cabeça das crianças. Não podemos observar a aprendizagem, apenas podemos inferir. Frustrantemente, o desempenho atual é um péssimo guia para saber se o aprendizado realmente aconteceu ou não. Professores correm o risco de serem enganados pelo desempenho atual e pensarem que ocorreu uma mudança na memória semântica de longo prazo (também conhecida como aprendizado).

Não é incomum as pessoas discordarem dessa ênfase na construção da memória semântica. Às vezes as pessoas argumentam "mas não me lembro de nada que aprendi na escola". Quando as pessoas dizem isso, o que geralmente querem dizer é "não tenho fortes lembranças episódicas de como aprendi coisas específicas na escola". Isso é realmente uma coisa boa pelo qual eles deveriam ser gratos. Não queremos ter que lembrar o contexto ao lado do conteúdo - isso realmente impediria nossa capacidade de pensar. Não temos lembranças de como aprendemos muito do que aprendemos na escola e, no entanto, dispomos do conhecimento. Isso ocorre porque a memória episódica da lição real desapareceu há muito tempo, enquanto a memória semântica formada por pensar muito sobre o conteúdo - embora talvez com certa relutância na época - perdure. É por isso que as pessoas sabem sobre triângulos e oxigênio, Anne Boleyn e Henry VIII, números quadrados e formação de lagos, mistura de cores e Lady Macbeth. As pessoas se lembram de como aprenderam sobre essas coisas? Provavelmente não, ainda assim elas dispõem do conhecimento (ou de quase todo) e, embora uma pessoa não pense na formaçào de lagos há décadas, apenas à sua menção, a memória vem sem esforço. Essa é a beleza da memória semântica. A memória semântica não é, e não precisa ser, amarrada aos detalhes circunstanciais da memória episódica. Não precisamos ter boas lembranças de sentar em rodinha no tapete, enquanto a professora nos contou tudo sobre triângulos para saber sobre triângulos. Você tem, como Solomon Kingsnorth tão gloriosamente disse, "um guia turístico privado do universo, vivendo dentro do seu cérebro", o qual é instantaneamente disponível.

O que você conhece molda o que vê. Você ou eu podemos olhar para uma montanha e apenas ver ... uma montanha. Um geólogo pode olhar para as montanhas de maneira bastante diferente, assim como um ciclista em super forma. Um vê a montanha como nós, mas também vê formações rochosas, o outro estima a marcha que precisa engatar para subir. Ter uma memória semântica ricamente abastecida é, como Ian Leslie colocou no livro "Curious", ter acesso a "uma realidade aumentada, tudo o que você vê é coberto por camadas adicionais de significado e possibilidade".

Se você conhece o tipo de coisas listadas acima - Anne Boleyn e Henry VIII, ou a formação de lagos, por exemplo - você é privilegiado pelo conhecimento. Você teve a oportunidade de pensar muito sobre coisas que você não conhecia e, portanto, tem um vasto repositório de memória semântica disponível, prontamente disponível sempre que você quiser. No entanto, é fácil demais ignorar esse privilégio e subestimar amplamente o quanto sabemos de fato e quanto nossa educação nos beneficiou. Como não nos lembramos como aprendemos o que sabemos, não nos lembramos do esforço investido em ensinar. Podemos supor que as coisas realmente importantes que conhecemos foram aprendidas depois que saímos da escola, sem perceber que foram as memórias semânticas adquiridas na escola que criaram as fundações sobre as quais pudemos construir tão proveitosamente mais tarde. Se as coisas não fossem assim, nossa capacidade de pensar teria diminuído bastante. Poderíamos ter ido a uma escola que achava mais importante fornecer experiências interessantes e emocionantes, e que, embora possa ter sido divertido, pode ter nos legado uma capacidade empobrecida de pensar ou ser verdadeiramente criativo, especialmente se nosso acesso ao conhecimento era limitado em casa. Precisamos tomar consciência do privilégio que foi o acesso ao conhecimento, antes de decidirmos impor nossas próprias agendas, tomando decisões que privem as crianças de sua parte justa da rica herança cultural que nosso mundo oferece e a que têm direito.

A memória episódica pode parecer, à primeira vista, a mais "humana" das duas formas de memória, a memória de pessoas, sentimentos e lugares que nos fazem ser quem somos. A memória semântica parece mais fria, mais robótica. No entanto, é nossa incrível capacidade de armazenar em nossa memória semântica o aprendizado adquirido culturalmente que nos torna tão bem-sucedidos como espécie. O principal objetivo da educação é construir uma poderosa memória semântica, transmitir o conhecimento acumulado ao longo dos séculos de uma geração para a outra; como ler e escrever, como as histórias funcionam, como usar o raciocínio matemático para resolver problemas, a ciência com seu incrível poder preditivo e a miríade de outros conceitos, idéias e práticas. Isso não quer dizer que construir memória semântica seja o único objetivo da educação. Queremos ajudar a formar indivíduos emocionalmente maduros e moralmente responsáveis. Isso envolverá pensar no tipo de lembrança episódica que tentamos construir para nossos filhos. Se tratarmos nossos filhos com bondade e respeito, eles terão lembranças episódicas de como foi ser tratado com bondade e respeito, o que torna mais provável que eles também tratem os outros com bondade e respeitem a si mesmos. Paralelamente à construção do capital cultural na memória semântica, devemos também construir capital social, moral e espiritual. Enquanto a construção da memória semântica desempenhará um papel importante nisso, o mesmo ocorrerá com o desenvolvimento da memória episódica, pois para essas dimensões vitais da experiência humana, recordar o contexto emocional talvez seja ainda mais crucial.

Isso tampouco significa que não deva ser almejado criar o tipo de experiências memoráveis ​​que tocam e movem, e assim por diante. Tais eventos especiais que pontuam a rotina diária da vida escolar são os festivais, os torneios, a festa do fim do ano letivo etc. Eles são especiais porque são pouco frequentes e exigem muitos recursos e são diferentes. Eles contrastam com a familiaridade cotidiana do feijão-com-arroz da vida escolar comum. Mas o cotidiano é o nosso principal objetivo.

Para que eu não crie mais mitos, deixe-me fazer algumas ressalvas.

Quando educamos crianças que têm experiência de vida limitada e que não têm memórias episódicas ricas, será ainda mais importante fornecer o tipo de experiências ricas - viagens à beira-mar, ao teatro e galerias de arte, para ver montanhas, cidades, florestas em primeira mão. Para muitas crianças, essa exposição é parte integrante da vida familiar. Para outras, a experiência além do contexto imediato é praticamente inexistente. Nesse caso, devemos tentar fornecer às crianças os tipos de experiência em primeira mão que ampliam os horizontes. As crianças muito pequenas, independentemente de seus antecedentes, por definição, têm uma experiência de vida menos rica; portanto, precisam de experiências mais memoráveis como uma espécie de pacote de boas-vindas ao mundo.

Também é importante não exagerar a separação entre memória episódica e semântica. Há um grau de sobreposição entre as duas. Elas não são compartimentos estanques. Por exemplo, em um experimento, as pessoas foram solicitadas a listar utensílios de cozinha. Primeiro, os participantes se baseavam no conteúdo de sua memória semântica, mas quando essa estratégia se esgotou, elas passaram a pensar especificamente em suas próprias cozinhas e a se lembrar do que havia lá. Elas Incrementaram sua lembrança da memória semântica com memórias episódicas específicas ao contexto.

Emoções fortes fazem as coisas ficarem na memória episódica, assim como a novidade. Portanto, realizar algum tipo de evento menos rotineiro, inovador ou emocionante para encerrar o aprendizado de algo pode complementar a memória semântica - uma viagem ao final de um projeto de trabalho, por exemplo. Voltando ao exemplo inicial de ensino do conceito de ângulo usando pistolas de água. Talvez fazer isso depois de uma série de lições mais tradicionais possa ser uma boa maneira de colher os benefícios de ambas as formas de memória. Da mesma forma, fazer experimento científico que prove um conceito aprendido é recomendável. Não se trata de uma escolha dicotômica simples entre sempre fazer apenas um ou outro. Tampouco é o caso de que a memória episódica seja de algum modo "ruim" ou inferior. É apenas diferente. É muito mais provável que a construção deliberada da memória semântica resulte em conhecimento duradouro, flexível e transferível do que colocar a maior parte de suas energias na cesta episódica. Por isso a formação de memória semântica deve ocupar a maior parte do tempo que as crianças passam na escola. Mas nem todos os momentos de todos os dias. Conhecer as limitações de ambas as formas de memória pode nos ajudar a fazer escolhas mais sábias e produtivas.


Clare Sealy trabalhou 30 anos como professora da escola primária, 22 dos quais como diretora da Escola Primária St Matthias em Tower Hamlets, no extremo leste de Londres. Recentemente, ela deixou a direção da escola para se tornar coordenadora de currículo e padrões em Guernsey. Ela tem um blog chamado PrimaryTimery. Seus interesses maiores interesses dizem respeito à aplicação da ciência cognitiva na sala de aula, repensando a avaliação para a aprendizagem e o desenvolvimento do currículo. Este artigo é baseado em um capítulo que ela escreveu para The ResearchEd Guide to Education Myths: An evidence-informed guide for teachers (John Catt Educational, 2019, $15, 160 pages).