Tuesday, May 24, 2016

Como as crianças aprendem a ler e escrever as palavras e os números?

Crianças que têm dificuldades para aprender a ler e escrever as palavras frequentemente também tem dificuldades para aprender aritmética. A co-ocorrência de dificuldades persistentes de aprendizagem da leitura (dislexia) e da aritmética (discalculia) constitui um exemplo de comorbidade.

A comorbidade entre dislexia e discalculia pode ser verdadeira em alguns casos. Ou seja, os mecanismos cognitivos subjacentes às dificuldades de leitura e de aritmética são distintos e a co-ocorrência dos dois fenômenos é obra do acaso.

Por outro lado, a co-ocorrência das dificuldades de aprendizagem de leitura e aritmética pode ser devida a um mecanismos cognitivo comum, que seja responsável pelas dois tipos de dificuldades. Tradicionalmente o processamento fonológico tems ido identificado como um importante correlato da aprendizagem da leitura. Pesquisas recentes estão mostrando que o processamento fonológico também é importante para a aprendizagem de diversos aspectos da aritmética também.

Por processamento fonológico entende-se a capacidade de acessar rapidamente as formas fonológicas das palavras (nomeação automatizada rápida), manter e processar essa informação na memória de trabalho fonológica e identificar e manipular conscientemente os sons constituintes das palavras (consciência fonêmica).

Além de ser um correlato da aprendizagem da leitura, o processamento fonológico tem sido consistentemente implicado na aprendizagem de alguns aspectos da aritmética, principalmente da habilidade de ler e escrever números nos diversos formatos (transcodificação numérica) e memorização dos fatos aritméticos.

Adicionalmente, crianças e adolescentes com dislexia apresentam um padrão bastante específico de dificuldades de aprendizagem da aritmética com dificuldades na leitura e escrita de números, memorização dos fatos e resolução de problemas verbalmente formulados.
É fácil compreender a razão pela qual a  memória de trabalho fonológica é importante para a memorização dos fatos aritméticos.

Os fatos aritméticos consistem de associações problemas-resposta para as operações mais simples e mais frequentes com apenas um algarismo. De tanto repetir essas operações, a criança acaba memorizando os resultados como fatos, os quais podem ser então resgatados automaticamente, O resgate de fatos aritmético facilita enormemente a aprendizagem de formas mais complexas de matemática, tais como cálculo multidigital.

A capacidade de representar, acessar, manter e manipular as informações fonêmicas é muito importante também para as tarefas  de transcodificação numérica.

Vejamos o que acontece na tarefa de ditado de numerais arábicos. O indívudo escuta um numeral que é ditado e, portanto, apresentado oralmente. A partir do numeral verbal ouvido, a criança precisa acessar sua forma fonológica e mantê-la na memória de cruto prazo para posterior processamento.

De posso das representações fonológicas, a criança busca na memória de longo prazo se já existe algum numeral correspondente àquele estímulo, o qual tenha sido lexicalizado pela repetição de frequente. Tal é o caso, p. ex., de datas históricas, marcas de carro ou de avião etc. A partir da  forma lexical de um número podem ser ativdos mais ou menos diretamente os mecanismos de transcrição no código arábico.

Se a forma fonológica do numeral verbal não corresponde a uma forma lexical previamente armazenada então o processo é um pouco mais complexo. Essas representações fonológicas precisam ser mantidas na memória de curto prazo enquanto é ativado um processo de transcrição passo a passo, bastante laborioso, de modo que ocorra a transcrição no código arábico.

É possível concluir então que as três formas de processamento fonológico (resgate rápido automatizado, representação na memória de curto-prazo e consciência fonêmica) são importantes para o processo de ditado de numerais arábicos.
Pesquisas conduzidas por Julia Beatriz Lopes-Silva (Lopes-Silva et al. 2014, 1016) no Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimetno (LND) dão suporte empírico à hipótese do processamento fonológico como uma via comum entre a leitura e escrita de palavras e números.

A tarefa utilizada é o teste de supressão de fonemas, uma tarefa que avalia tanto a precisão das representações fonêmicas, quanto sua manipulação na memória de curto prazo. Na tarefa de supressão de fonemas a criança precisa descobrir qual a  palavra resultante da remoção de um fonema de uma palavras estímulo. P. ex., caída sem /i/ vira cada, pRato sem /r/ vira pato, cLaro sem /l/ vira caro etc.

Em um primeiro estudo foi observado que o desempenho na tarefa de supressão de fonemas é associado tanto ao desempenho em escrita de palavras quanto em escrita de numerais arábicos (Lopes-Silva et al., 2014). Os efeitos da memória de trabalho fonológica, operacionalizada pelo teste de digit span, sobre a transcodificação numérica são mediados pelo desempenho na tarefa de supressão de fonemas.
Posteriormente foi observado que o desempenho na tarefa de supressão de fonemas é preditivo tanto da leitura e escrita de palavras quanto de números. Quando se inclui a inteligência nos modelos de análise, os efeitos da memória de trabalho fonológica e visoespacial desaparecem, mas os efeitos da supressão de fonema continuam.

Ou seja, o desempenho em uma tarefa de processamento fonológico que avalia tanto a memória quanto a precisão das representações fonêmicas, é um elo comum entre a leitura e escrita de palavras e de números. O efeito do processamento fonológico permanece mesmo quando é estatisticamente controlada a influência da inteligência.

Esses resultados têm importantes implicações educacionais. Tarefas de manipulação de fonemas, as quais promovem a consciência fonêmica, são importante não apenas para a aprendizagem da leitura mas também para a aprendizagem da aritméticas. Tais tarefas inclui a identificação das letras das palavras, a identificação dos sons correspondentes às letras, a manutenção dos sons na memória por breves períodos de tempo, a pronúncia das palavras sem determinados sons, a troca de sons entre uma palvra e outra etc.

Referências

Lopes-Silva, J. B., Moura, R., Júlio-Costa, A., Haase, V. G., & Wood, G. (2014). Phonemic awareness as a pathway to number transcoding. Frontiers inPsychology,  5, 13 (doi:10.3389/fpsyg.2014.00013).

Lopes-Silva, J. B., Mour, R., Júlio-Costa, A., Wood, G., Salles, J. F., & Haase, V. G. (2016). What is specific and what is shared etween numbers and words? Frontiersin Psychology, 7, 22 (DOI: 10.3389/fpsyg.2016.00022).

Obs.: Os artigos citados são de acesso livre e podem ser consultados na internet.






Friday, May 20, 2016

Como as crianças aprendem aritmética?

A aritmética básica consiste nas habilidades de contar, fazer contas e memorizar os fatos aritméticos. A maioria das crianças adquire essas habilidades de modo intuitivo e às custas de muita prática.


CONTAR

Contar é a primeira atividade explicitamente matemática demonstrada pelas crianças. A contagem começa a partir dos dois ou três anos. Primeiro as crianças aprendem a recitar a série dos numerais verbais, p. ex., um, dois, três... até dez ou mais. Inicialmente isso é feito de forma não quantitativa. Ou seja, a criança não associa os numerais verbais a quantidades. A série de numerais verbais funciona como uma espécie de moldura seqüencial que vai gradualmente sendo associada às respectivas magnitudes numéricas. A criança vai aprendendo a contar aos pouquinhos. Apesar de poder recitar os números até dez, no início a criança pode fazer um uso quantitativo do numeral um apenas. Depois do dois, do três, até o quatro. À razão de um numeral por ano. A partir do cinco a criança começa a entender que cada número a mais acrescenta uma unidade numérica (princípio sucessor) e que o número final resultante da contagem corresponde à quantidade de itens no conjunto (princípio cardinal).  A contagem é geralmente efetuada com a ajuda dos dedos. As crianças aprendem a mostrar a idade com auxílio dos dedos e a série vai aumentando, à medida que os anos passam, que a habilidade sensoriomotor se aperfeiçoa e que a criança desenvolve o conceito de número. Os dedos constituem uma importante ferramenta para contar. Os dedos ajudam a estabelecer uma ordem fixa, a criar correspondências um para um entre os dedos e numerais e, à medida que se fixa o padrão de contagem nos dedos prevalente em um cultura, a ordem canônica, os dedos adquirem uma dimensão simbólica, passando a representar os números. As crianças com dificuldades de aprendizagem da aritmética são mais lentas para aprender a contar.



FAZER CONTAS

A partir do momento em que a criança intui o princípio de cardinalidade, ela está em posição para usar esse conhecimento na realização de operações aritméticas, iniciando pela adição. As operações começam a ser resolvidas no momento em que a criança entende que, além de acrescentar, somar significa contar dois ou mais conjuntos em sucessão. Uma série de estratégias é empregada de forma mais ou menos sistemática porém temporãmente sobreposta na resolução dos problemas por meio da contagem. No início a criança começa a contar a partir de qualquer número, independentemente da sua magnitude. Depois a criança aprende que é mais vantajoso contar a partir do maior. Algumas crianças passam por uma fase de contar sistematicamente a partir do primeiro, independentemente de ser o maior ou o menor. Inicialmente a resolução por contagem também se serve dos dedos. Na maioria das crianças o uso dos dedos fornece um apoio concreto à realização das operações, aliviando a carga de memória de trabalho. Numa segunda fase as crianças não precisam mais usar os dedos e contam verbalmente para resolver os problemas. Adquirida a adição simples, a conseqüência lógica é intuir a multiplicação (adição repetida) e a subtração (inverso da adição). Com a experiência a criança começa a memorizar as associações entre problemas e soluções, adquirindo os fatos aritméticos para as operações simples de adição e multiplicação. A expansão dos repertório de operações aritméticas conhecidas permite utilizar a estratégia de decomposição para resolver problemas mais complexos. A divisão é mais difícil e sua aprendizagem geralmente requer algum tipo de intervenção pedagógica. As crianças com dificuldades de aprendizagem da aritmética começam a usar a contagem para resolver problemas mais tarde e persistem usando a contagem por mais tempo.


FATOS ARITMÉTICOS

A prática com a resolução de problemas aritméticos simples com um algarismo leva à memorização das associações entre problemas e respostas como fatos aritméticos. Apenas os fatos de adição e subtração são memorizados. Não existem fatos de subtração e de divisão porque essas operações não são comutativas. Ou seja, para realizar a subtração e divisão é sempre necessário determinar qual número é o maior. Assim as associações problemas-respostas para subtração e divisão não podem ser armazenadas em formato puramente verbal.

Os fatos aritméticos passam então a constituir um domínio especializado da memória semântica verbal. Quando automatizados, podem ser resgatados rapidamente e auxiliar na resolução de problemas progressivamente mais complexos.

Os fatos aritméticos ou tabuadas constituem uma das maiores realizações civilizatórias. A aprendizagem dos fatos exige algum tipo de intervenção pedagógica porque requer muita prática e motivação. A aquisição dos fatos é um processo difícil, laborioso e lento. Para ter uma idéia da dificuldade envolvida na tarefa, tente memorizar a lista abaixo:

João é carteiro e mora na rua das Hortênsias
Pedro é padeiro e mora na rua das Camélias
Pedro é professor e mora na rua das Hortênsias
José é pedreiro e mora na rua das Rosas
Roberto é padeiro e mora na rua das Margaridas
Paulo é carteiro e mora na rua das Camélias
Joaquim é padeiro e mora na rua das Rosas
Mário é padeiro e mora na rua das Rosas
Tiago é professor e mora na rua das Margaridas
Samuel é professor e mora na rua das Rosas
Manuel é pedreiro e mora na rua das Rosas
Pedro é pedreiro e mora na rua das Hortênsias

É extremamente difícil memorizar essa lista. A tarefa demandaria horas e dias de trabalho exaustivo. A dificuldade deriva do fato de que os itens ocorrem de forma recorrente e não se associam a um significado inerente. A memorização dos fatos é uma situação parecida. As associações problemas-respostas não são arbitrárias apenas porque resultam dos procedimentos de contagem. O significado então é inferido a partir dos conceitos e procedimentos envolvidos em cada operação. E o processo pecisa ser repetido inúmeras vezes até que as associações se consolidem na memória de longo prazo.

A alternativa ao exercício é a decoreba verbal. A qual é mais difícil ainda. Estudos de neuroimagem mostram que a aprendizagem estratégica, resolvendo os problemas, é mais eficiente do que a decoreba. Entretanto, os padrões de ativação cerebral entre as duas são complementares. A decoreba ativa um padrão mais localizado de áreas corticais em torno da região perisilviana esquerda da linguagem. A aprendizagem estratégica ativa uma rede mais complexa de áreas corticais, incluindo áreas parietas envolvidas na imaginação e representação visoespacial. A utilização dos dois métodos de forma complementar pode ser vantajosa.

A dificuldade na aquisição dos fatos aritméticos é causada pelas demandas impostas ao processamento na memória de trabalho. Como os itens dos problemas e de muitas soluções são recorrentes, além de manter as associações problemas-respostas na memória é preciso inibir as respostas concorrentes errôneas. A aprendizagem ineficiente ou errônea dos fatos é um dos principais empecilhos à aprendizagem da aritmética e constitui o sintoma cardeal da discalculia do desenvolvimento.

As pesquisas neurocognitivas estão permitindo desenvolver um modelo da aprendizagem dos fatos aritméticos pela criança. Inicialmente a aprendizagem demanda processamento controlado. O processo é lanto, laborioso, exige atenção consciente, é muito propenso a erro e demanda esforço mental. O processamento controlado inicial ativa áreas do córtex pré-frontal esquerdo, principalmente na superfície dorsolateral.

Nessa fase inicial ocorre ainda ativação de áreas do sulco parietal esquerdo responsáveis pela avaliação da magnitude numérica e manipulação dos símbolos numéricos.

A consolidação das associações entre problemas e respostas depende de sua elaboração no hipocampo. A ativação hipocampal durante a aquisição dos fatos aritméticos tem sido obsevada apenas em crianças e não em adultos.

Finalmente, com a experiência o processo vai se automatizando, tornando-se mais rápido, eficiente, menos laborioso e menos sujeito a erro. Com a automatização o foco de ativação cerebral move-se para áreas corticais posteriores, concentrando-se na região do giro angular.


BOOTSTRAPPING CONCEITUAL

Como as crianças aprendem a aritmética? Ninguém sabe. Os conhecimentos disponíveis são apenas descritivos e não explicativos. É possível afirmar que a aprendizagem da aritmética envolve intuição e prática. O papel desempenhado pela prática é fácil de compreender. A prática automatiza um  procedimentos, transformando-o em segunda natureza.

O papel da intuição é mais difícil de compreender. Um modelo especulativo para o desenvolvimento do coneito de número e muitas outras categorias é o bootstrapping conceitual. Literalmente, bootstrapping significa erguer-se levantando-se pelos cadarços das próprias botas. O termo é usado em ciência cognitiva para descrever processos auto-organizatórios, nos quais um sistema vai se construindo à medida que funciona. O desenvolvimetno cognitivo pode ser comparado a um avião que vai sendo construído em pleno vôo.

De acordo com a hipótese de bootsrapping conceitual, a aprendizagem da aritmética resulta da interação entre primitivos conceituais e procedimentais. As operações realizadas com os conceitos levam à emergência de novos conceitos e novas operações e assim sucessivamente. De uma certa forma, a hipótese de bootstrapping representa uma solução de compromisso entre a perspectiva inatista e construtivista.

Os primitivos conceituais são a habilidade de quantificar de forma precisa pequenos conjuntos (subitizing) e a habilidade de estimar de forma aproximada grandezas maiores (sistema numérico aproximado). O primitivo operacional é a habilidade de adquirir a recitação da série dos numerais  verbais.

Com a prática, a criança vai aprendendo a associar a série dos numerais verbais com o seu significado quantitativo. Isso ocorre de forma lenta, à razão de um algarismo por ano, e envolve apenas as grandezas pequenas. Até chegar ao número cinco, quando ocorre uma explosão conceitual e a criança capta os princípios da sucessão e cardinalidade, generalizando-os e associando o processo com todas as grandezas numéricas possíveis. Assim, o significado numérico representado no sistema numérico aproximado vai sendo conectado aos numerais simbólicos e tornadno o conceito de número progressivamente mais exato e abstrato.

Um processo semalhante ocorre com as operações e os fatos aritméticos. A criança pratica com primitivos conceituais inatos. Pratica e pratica até que ocorre uma mudança qualitativa e ela intui um princípio novo, um conceito derivado, o qual é generalizado para outras situações. Outras situações essas que são praticadas e praticadas até que...

Segundo a perspectiva do bootstrapping conceitual não existe oposição entre conhecimento conceitual e conhecimento procedimental. Um leva ao outro. A interação de primitivos conceituais e operacionais leva à emergência de uma série sucessiva e integrativa de conceitos e procedimentos derivados cada vez mais complexos.

Segundo essa perspectiva não existe, então, incompatibilidade entre a compreensão conceitual aritmética e a aprendizagem dos algoritmos e fatos. Uma leva a outra. Uma depende da outra. Executar os algoritmos ou memorizar os fatos sem compreendê-los é de pouca utilidade. Mas apenas compreender também não tem utilidade prática alguma.



REFERÊNCIAS CONSULTADAS

Berteletti, I., & Booth, J. R. (2016) Finger representation and finger-based strategies in the acquisition of number meaning and aritmethci. In D. B. Berch, D. C. Geary, & K. M. Koepke (eds.) Development of mathematical cognition. Neural substrates and genetic influences (pp. 109-144). San Diego: Academic

De Smedt, B. (2016). Individual differences in arithmetic fact retrieval. In D. B. Berch, D. C. Geary, & K. M. Koepke (eds.) Development of mathematical cognition. Neural substrates and genetic influences (pp. 219-243). San Diego: Academic.

Dehaene, S. (2011). The number sense. How the mind creates mathematics (Revised and updated edition).Oxford: Oxford University Peess.

Menon, V. (2016). A neurodevelopmental perspective on the role of memory systems in children’s math learning.  In D. B. Berch, D. C. Geary, & K. M. Koepke (eds.) Development of mathematical cognition. Neural substrates and genetic influences (pp. 79-107). San Diego: Academic.

Sarnecka, B. W., Goldman, M. C., & Slusser, E. B. (2015). How counting leads do children's first representations of exact, large numbers. In R. Kadosh & A. Dowker (eds.) The Oxford handbook of numerical cognition (pp. 291-309). Oxford: Oxford University Press.


Thursday, May 05, 2016

Por que reinventar a roda? A importãncia do conhecimento factual na aprendizagem

Pode parecer óbvio: Quanto mais se sabe, mais se aprende. Mas nem todos se rendem ao óbvio. Uma concepção muito difundida nos meios educacionais é de que a educação não pode se reduzir à mera transmissão do conhecimento.

Paulo Freire (1981) criou a metáfora bancária, segundo a qual a educação não poderia ser reduzida ao mero depósito de conhecimento. Na sua opinião, a educação deveria transcender à mera transmissão de conhecimento, focalizando mais a formação da cidadania e o desenvolvimento da consciência crítica, de classe, de gênero, de etnia etc.

A metáfora da educação bancária é pobre. Reflete a ignorância de Paulo Freire quanto ao que acontecia na psicologia já na sua época. Na psicologia, os anos 1960 e 1970 foram caracterizados pelo florescimento de uma metáfora computacional (Lachman, Lachman & Butterfield, 1979, Lindsay & Norman, 1972, 1977, Neisser, 1967). Paulo Freire passou longe disso. Preferiu restringir-se aos seus insights derivados da práxis, ao invés de estudar o estado atual do conhecimento na sua época. 

O caso do Paulo Freire pode ser, portanto, tomado como um primeiro exemplo da importância do conhecimento. Se ele tivesse estudado mais, se ele tivesso tomado conhecimento do que se passava na psicologia na sua época, teria usado uma metáfora mais sofisticada. E não teria se aferrado a uma bobagem como a tal metáfora bancária. E olhe que ele viveu no exterior por muitos anos e poderia ter se instruído um pouco mais.

Na metáfora computacional, o ser humano é comparado a um computador digital e analisado como um sistema processador de informação. Ou seja, como um sistema que capta e transduz  informação, processando-a e tomando decisões para emitir respostas que podem ser externamente observáveis como comportamentos ou internamente executadas como pensamento.

Essa versão inicial da metáfora computacional é muito semelhante à metáfora bancária de Paulo Freire. Segundo a metáfora computacional simplista, aprender se reduz a captar e processar informação, armazenando-a a seguir como se fosse uma ficha em uma gavetinha, ou melhor, um arquivo em determinado diretório de um computador digital.

Tanto a metáfora bancária de Paulo Freire quanto a metáfora computacional simplista são inadequados porque ignoram o papel ativo do aprendiz. Aprender realmente não se reduz a armazenar e acumular fatos na memória de longo prazo. Para que a aprendizagem se processe há a necessidade de que o aprendiz desempenhe um papel ativo. Há necessidade de esforço e elaboração consciente. O novo material precisa ser associado de forma ativa com os materiais previamente adquiridos e armazenados. Quando isso acontece não ocorre apenas um acréscimo de nova informação, mas uma transformação radical da informação previamente adquirida. Novas associações são criadas, novos conceitos podem emergir etc. etc.

A metáfora simplista da memória como arquivo foi rapidamente abandonada devido à sua inadequação. As concepções atuais da memória de longo prazo consideram-na como uma estrutura dinâmica de conhecimento, a qual é extremamente flexível, ainda que ou por causa disso mesmo sujeita a erro, plástica, adáptel às circunstâncias e, portanto, mutável com o tempo. São essas características dinâmica de longo prazo que lhe possibilitam influenciar o processo de aprendizagem (Willingham, 2011).

“Transmitir conhecimento” não se reduz, portanto, a depositar dinheiro em um banco ou uma ficha em uma arquivo. O processo de aquisição de conhecimento não se dá no vazio. A aprendizagem não escreve em uma lousa em branco. A aprendizagem depende de o novo conhecimento ser assimilado às estruturas prévias, bem como de uma acomodação do conhecimento prévio às novas informações.

O importante aqui é salientar que não existe aprendizagem sem a aquisição de novos fatos ou habilidades. Não existe aprendizagem sem que a memória de longo prazo seja alterada. A memória de longo prazo não é um arquivo inerte, mas uma estrutura dinâmica, ativa, que se acomoda à nova informação assimilada, para usar  novamente os termos piagetianos. Mas não existe aprendizagem sem memorização. A memória é o critério pelo qual a aprendizagem pode ser medida. Aprender significa transformar a memória.

Diversos são os tipos de conhecimentos a serem aprendidos. Em aritmética, p. ex., o conhecimento conceitual diz respeito à compreensão das noções de magnitude numérica e das operações. O conhecimento procedimental é a seqüência de operações necessárias para resolver um determinado problema, a qual precisa ser automatizada para ser executada de forma eficiente. E, por último, o conhecimento factual corresponde às associações entre os problemas simples com um algarismo e de ocorrência mais freqüente e suas respostas. O resgate do conhecimento factual também precisa ser automatizado como pré-condição para a aquisição de habilidades matemáticas mais complexas.

Sob a influência dos construtivismos, a educação contemporânea tem focalizado muito o conhecimento conceitual, em detrimento do conhecimento procedimental e factual. A ênfase recai sobre compreender e não sobre memorizar. Memorizar é considerado um aspecto secundário. Afinal, não adianta nada memorizar sem compreender, como se vê em algumas situações patológicas. Por exemplo, meninas com a síndrome do sítio frágil no cromossoma X tipicamente memorizam os fatos aritméticos despidos do seu significado numérico, quantitativo (Murphy & Mazzocco, 2008).

O termo memória ou conhecimento não-declarativo se refere a condicionamentos, hábitos ou habilidades psicomotoras, as quais são geralmente aprendidas e resgatadas de forma implícita. Ou sem, sem a necessidade e percepção consciente.

O termo memória ou conhecimento declarativo se refere àqueles conteúdos mentais que podem ser expressos verbalmente, sob a forma de proposições, e que geralmente são adquiridos e resgatados de forma explícita e intencional. A memória declarativa é geralmente subdividida em episódica e semântica. A memória episódica diz respeito a eventos que são situados no tempo e no espaço e referenciados na primeira pessoa.

A memória semântica consiste do conhecimento factual que é organizado categoricamente e pode ser comparado a um grande léxico mental multimídia. Nesse ensaio estou focalizando o conhecimento factual. Que evidências existem quanto à relevância do conhecimento factual para a aprendizagem escolar?

Uma demonstração intuitiva da importância do conhecimento factual para a aprendizagem é fornecidade por Willingham (2011). Tente memorizar a lista de letras, exibida na Figura 1,


Figura 1. Procure memorizar essa lista de letras (Willingham, 2011).

A experiência inevitável é de que se trata de uma tarefa muito difícil. A tarefa é facilitada entretanto, se as letras estímulos são reorganizadas como disposto na Figura 2:


Figura 2. Agora procure memorizar essa lista de letras. Qual é a lista mais fácil, a primeira ou a segunda? (Willingham, 2011).

A diferença entre uma lista e outra é que na segunda os itens são organizados de forma tal que se revestem de significado. A categorização semântica é um dos principais efeitos observáveis na aprendizagem de listas verbais. Sempre que os itens podem ser categorizados, a aprendizagem é facilitada. Isso sugere que a memória de longo prazo é representada em um meio semântico e não perceptual.

A importância do conhecimento factual para o desempenho cognitivo é reconhecida há muitos anos. Merece destaque o trabalho de Herbert Simon com jogadores de xadrez. Foi observado que a superioridade de desempenho de grandes mestres comparativamente a diletantes não se deve tanto à superioridade estratégica ou de armazenamento e processamento na memória de trabalho, mas à memorização prévia de milhares de jogadas (Simon & Chase, 1973).

O efeito da  memorização prévia de um grande número de jogadas é evidenciado em situações de torneio relâmpago. Nas quais os jogadores jogam com pressão de tempo. Jogadores menos inexperientes precisam pensar para selecionar a melhor jogada. Jogadores mais experientes dispõem de um amplo estoque previamente armazenados de configurações de jogos e podem resgatar de forma automática a melhor jogada. 

A importância do conhecimento factual para a compreensão e memorização de textos foi demonstrada experimentalmente por Bransford e Johnson (1972). Esses autores solicitaram aos participantes que lessem procurassem compreender e memorizar a passagem apresentada na Figura 3.


Figura 3. Leia e procure compreender e memorizar o texto acima (Bransford & Johnson, 1972).

Geralmente os participantes enfrentam muita dificuldade com  a tarefa usada por Bransford e Johnson. Entretanto, o desempenho é facilitado quando se lhes informa previamente que o texto descreve os procedimentos para lavar roupas.

Recentemente o papel do conhecimento factual tem sido enfatizado também na aprendizagem da leitura. Segundo a teoria simples da leitura, a aprendizagem da mesma pode ser analisada em dois estágios sucessivos porém parcialmente superponíveis (Cain, 2010, Gough, 1996).

Em línguas cuja escrita é baseada na correlação entre grafemas e fonemas, tais como as línguas indo-européias e semíticas, as crianças iniciam o processo de leitura pela decodificação de palavras isoladas. O papel do vocabulário é menos importante na aprendizagem da leitura de palavras isoladas (Shatil & Share, 2003). Para decodificar as palavras isoladas é preciso que a criança entenda o princípio alfabético e tenha capacidade de recodificação fonológica. Ou seja, de associar sistematicamente os conjuntos de letras com os sons correspondentes, mantendo suas representações ativas na memória de trabalho e gerando pronúncias plausíveis.

A independência entre o reconhecimento visual de palavras isoladas através da decodificação fonológica e o conhecimento factual é atestada pelo fato de que é possível ler pseudopalavras. Ou seja, conjuntos de letras que obedecem às convenções fonotáticas da íngua, mas que não constituem itens do léxico. São itens pronunciáveis, mas que não constituem palavras. Inicialmente todas as palavras são lidas como se fossem pseudopalavras, uma vez que não ainda não existe uma representação lexical ortográfica. O significado é acessado secundariamente através da pronúncia.

Com a experiência a criança vai automatizando o processo de leitura de palavras isoladas, gradualmente criando representações morfêmicas e lexicais ortográficas. O processo de automatização da leitura de palavras dura cerca de três anos e vai pouco a pouco permitindo que a criança acesse de forma mais direta o significado das palavras, sem o recurso à mediação fonológica.

Paralelamente à automatização da leitura de palavras isoladas a criança começa a trabalhar a compreensão de leitura. A compreensão leitura é um processo bem mais complexo (Cain, 2010). A compreensão depende do concurso de diversas habilidades cognitivas, tais como inteligência verbal e capacidade de fazer inferências, vocabulário, memória de trabalho e habilidades de processamento textual propriamente dito.

O conhecimento de mundo, operacionalizado sob a forma de vocabulário, é um dos principais preditores da compreensão de textos (Hirsch, 2006, Shatil & Share, 2003). Na prática, a importância do vocabulário é ilustrada por um fenômeno educacional observado nos EUA há vários anos, o chamado “fourth grade slump”.

O reconhecimento do papel dos mecanismos de mediação fonológica na aprendizagem de leitura de palavras isoladas estimulou o surgimento de vários programas específicos de treinamento dessas habilidades já a partir da  pré-escola. Graças a esses programas, as dificuldades escolares iniciais das crianças de minorias étnicas diminuíram progressivamente nos EUA nas últimas décadas. Nos EUA atualmente, as dificuldades de aprendizagem das crianças de minorias étnicas se acentuam a partir do quarto ano, o chamado “fourth grade slump” (vide Figura 4).



Figura 4 – “Fourth grade slump”. Graças aos programas de treinamento em decodificação fonológica, as diferenças étnicas de aprendizagem da leitura de leitura de palavras isoladas estão desaparecendo nos EUA. As diferenças tornam-se evidentes apenas a partir do quarto ano, à medida que a ênfase da aprendizagem recai sobre o processamento textual.
O “fourth grade slump” pode ser interpretado como decorrente de deficiências no vocabulário (Hirsch, 2006). Até o terceiro ano o ensino da leitura se debruça sobre a decodificação visual de palavras isoladas. É apenas gradualmente e, principalmente, a partir do terceiro ano, que o processamento textual passa a adquirir prioridade. É a partir desse momento, então, que as crianças desprivilegiadas, com menos acesso a estímulos, brinquedos e informação passam a experimentar dificuldades.

Em outros sistemas de escrita, tais como os caracteres chineses o vocabulário pode desempenhar um papel importante desde o início da aprendizagem da leitura. Ou seja, já na fase de reconhecimento dos caracteres (Li, Wang, Tong & McBride, 2016). Isso se deve ao fato de que os caracteres chineses se fundamentam nos morfemas e não nos fonemas como unidade de correlação entre a ortografia e a pronúncia.

Apesar da importância inegável do conhecimento factual para a aprendizagem, o mesmo é desprezado pelas abordagens construtivistas, sob a alegação de que a educação não pode ser restringir à mera transmissão de conhecimento. Essa postura é muitas vezes justificada em alegações de que 1) com o advento da internet a informação está amplamente disponíveil através do Google, Wikipedia e outros recursos, 2) o que importa é que o indivíduo adquira habilidades de domínio geral, que possam ser transferidas de um contexto para o outro e que lhe permitam resolver de forma flexível uma ampla gama de problemas (Christodoulou, 2010). Essas duas pressuposições são falsas e precisam ser refutadas.

Quando nós estávamos passando nossa temporada de praia esse ano, recebemos ajuda de uma moça muito inteligente e de índole agradável. Quando perguntávamos se ela sabia fazer algum prato, ela respondia sem titubear: “Eu não sei, mas o Google sabe”. E ela tinha razão. Mas até certo ponto.

O Google sabe das coisas. Mas para fazer uma busca eficiente é importante conhecer as palavras chave que levarão à informação almejada. Os alunos de pós-graduação nem sempre conseguem achar os papers relevantes para sua dissertação ou tese. Em alguns casos a ineficiência da busca é causada por falta de empenho, ou em português castiço, a boa e velha preguiça. Em outros casos, entretanto, a dificuldade para encontrar a informação se deve à falta de conhecimento sobre o assunto, manifestada no uso de termos ineficientes de busca.

A busca eficiente de informação na internet depende da seleção correta das palavras chave ou termos de busca. A qual, por sua vez, depende da experiência prévia e do domínio sobre uma área do conhecimento. Isso pode ser ilustrado novamente através de uma reminiscência pessoal.

Uma vez eu estava interessado em revisar a literatura sobre intervenções para melhorar o processamento ortográfico. Eu comecei buscando com o termo “writing” e não encontrava nada. Fiquei cabreiro. Pensei assim: “Nâo pode ser. Esse é um dos assuntos mais pesquisados na psicologia do desenvolvimento. A literatura sobre o assunto deve ser imensa”. Até que lá pelas tantas eu me dei conta de que estava fazendo um uso incorreto do termo de busca. “Writing” em inglês significa composição. A palavra usada em inglês para ortografia é “spelling”. A partir do momento em que percebi e corrigi minha ignorância, a busca obteve sucesso.

Apesar de toda a informação do mundo estar disponível na internet, para acessá-la é preciso saber o que procurar e quais estratégias de busca serão mais eficientes. Isso exige experiência prévia com a tarefa e domínio do assunto a ser pesquisado de forma a selecionar os termos corretos de busca. Portanto, o conhecimento factual não pode ser desprezado.

A outra alegação é que o aluno não deve receber o peixe, mas deve sim, aprender a pescar. Ou seja, mais importante do que transmitir informação seria propiciar experiências que permitissem ao estudante adquirir hábitos auto-didáticos. De forma que possam desenvolver um conjunto de estratégias para resolver o maior número possível de independentemente do seu conteúdo ou contexto específico de ocorrência.

Esse mito se baseia na pressuposição errônea de que é possível adquirir conhecimentos independentes de conteúdo, de domínio específico. De que é possível desenvolver habilidades formais de racioníio. Infelizmente, isso não é possível. As habilidades cognitivas inespecíficas de domínio, correspondem aos construtos psicológicos inteligência geral (fator g) ou executivo central da memória de trabalho. Até hoje não surgiram procedimentos eficientes e com resultados duradouros e generalizáveis de treinamento da inteligência e memória de trabalho (Redick et al., 2015). Infelizmente. Quem descobrir isso, vai ganhar algum prêmio Nobel.

A pressuposição de que é possível adquirir, desenvolver ou treinar habilidades cognitivas independentes de domínio estimulou o surgimento de programas de fomento ao pensamento crítico (Hapern, 2003). Trata-se de uma miragem. Se existe alguma coisa bem demonstrada na psicologia do desenvolvimento é o fato de que o conhecimento é específico de domínio, representado pela perícia. A aquisição de perícia em um determinado domínio custa dez anos de trabalho árduo, acumulando conhecimento conceitual, factual e procedimental (Van Lehn, 1989).

E a perícia em um domínio não é facilmente transferível para outro. Para que ocorra a transferência de um domínio para outro é necessário que primeiro o indivíduo adquira pericia em uma área de conhecimento e, a seguir, se debruce sobre a outra.

O mito do conhecimento inespecífico de domínio se reflete também sob a forma de programas destinados a estimular a criatividade (Finke, Ward & Smith, 1996). Há evidências de que a aprendizagem por descoberta estimula o comportamento exploratório de pré-escolares comparativamente ao método instrucional (Bonawitz et al., 2011). Mas daí não decorre que seja possível fomentar a criatividade.

Ao contrário, as pesquisas sobre casos concretos de  comportamento altamente criativo mostram que a criatividade literária, artística e científica emerge a partir da aquisição de perícia em mais de um domínio do conhecimento, principalmente, em áreas fronteiriças de domínios distintos (Simonton, 1999). Ou seja, o gênio ou produção culturalmente relevante resulta 99% do suor e 1% da criatividade.

O desprezo pelo conhecimento factual é um problema que precisa ser enfrentado com o intuito de melhorar a qualidade de ensino e elevar o nível cognitivo da população.  A negligência do conhecimento factual leva ao desprezo dos métidos instrucionais de ensino. E não apenas no Brasil. Christodoulou (2014) relata, p. ex.,  que na Grâ-Bretanha os professores e escolas são fiscalizados pelas autoridades educacionais e severamente punidos quando adotam métodos instrucionais de ensino.

Segundo, Tomasello e cols. (1993) a aprendizagem cultural pode ocorrer por imitação, instrução ou colaboração. Cada uma dessas vias para o conhecimento se associa a um perfil característico de vantagens e desvantagens. A aprendizagem colaborativa e por descoberta estimula o comportamento exploratório e uma atitude ativa por parte do aprendiz (Bonawitz et al., 2011). Mas nem tudo precisa ser aprendido por descoberta. Há uma série de fatos e habilidades que podem ser transmitidos de  forma direta e mais eficiente de uma geração para outra. A roda não precisa ser reinventada a cada geração sucessiva (vide Figura 5). A aprendizagem por instrução de fatos e ferramentas culturais bem estabelecidos capacita melhor os indivíduos, e poupa recursos escassos de processamento, para exercer a criatividade em domínios ainda inexplorados pela Humanidade.



Figura 5. A roda não precisa e não deve ser reinventada a cada geração sucessiva. A instrução é um método eficaz de transferir conhecimento factual e procedimental de uma geração para outra. Com isso o individuo melhor se capacita e poupa recursos escassos de processamento para exercer sua criatividade em domínios ainda inexplorados.


Adicionalmente, a aprendizagem colaborativa e por descoberta se caracteriza por uma série de desvantagens. A aprendizagem espontânea em situações relativamente pouco estruturadas, em interação com colegas, pode não ser a melhor estratégias para crianças com dificuldades no comportamento social, tais como autismo,  hiperatividade ou inteligência mais baixa.

A aprendizagem por descoberta, em contextos informais ou pouco estruturados, pode também impor demandas cognitivas excessivas para o aprendiz. Na tentativa de encontrar a solução, o aluno esgota suas capacidades de processamento controlado na memória de trabalho. Com isso sobram menos recursos de processamento para a memorização (Sweller, Ayres & Kalyuga, 2011).

Os comportamentos externamente observáveis e a diversão intrínseca a algumas tarefas e projetos podem ter uma saliência cognitiva maior para o aluno, desviando seus recursos do processamento interno, encoberto (Mayer, 2004). A atividade é crucial para a aprendizagem. Mas o aspecto relevante é a atividade cognitiva e não a atividade comportamental. A aprendizagem depende de o indivíduo estabelecer associações relevantes entre fatos novos e fatos previamente conhecidos. Incorporando-os e, ao mesmo tempo, modificando a estrutura prévia de conhecimento.

Isso pode ser feito internamente, sem a necessidade de engajamento em comportamentos externamente observáveis. Do que a aprendizagem não pode prescindir é da atividade cognitiva. E atividade cognitiva pode ser estimulada de diversas maneiras. Inclusive através de instrução e exercícios.

As evidências revisadas e as considerações realizadas têm importantes implicações pedagógicas. A mais importante delas é que não há razões para privilegiar uma abordagem educacional sobre outras. A aprendizagem colaborativa por descoberta estimula o comportamento exploratório (Bonawitz et al., 2011). Mas há boas evidêncisa experimentais de que o método instrucional é mais eficiente para a aquisição de conhecimentos abstratos (Klarh & Nigam, 2004). De um modo geral, os estudos de meta-análise mostram que os programas caracterizados por um componente instrucional são mais eficazes (Alfieri et al., 2011, Hattie, 2009, Kroesbergen &  van Luit, 2003 ). As evidências científicas indicam, portanto, de que já passa da hora para que o conhecimento e a instrução formal deixem de ser as borralheiras da educação.


O desprezo pelo conhecimento factual tem um paraefeito adicional. Antigamente as professoras eram consideradas como detentoras do conhecimento. Em algumas comunidades mais remotas as professoras constituíam-se mesmo em uma espécie de baluarte com a ignorância. Se a missão de transmitir conhecimento perde significado, então as professora snão precisam mais, elas próprias, adquirir conhecimentos. Será que isso não serve também de justificativa para a preguiça e ignorância? Se a informação está toda na internet e basta se servir, então não há necessidade de lutar contra a ignorância e armazenar o conhecimento na própria cachola.

Referências

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