Wednesday, February 20, 2013

Transtornos da memória semântica: o que é típico e o que é patológico?


As alterações do sistema semântico são uma das coisas mais irritantes do envelhecimento. Esse negócio já me pegou. E há muito tempo. A gente quer falar uma coisa e não vem o nome. Quer se lembrar do nome de um autor e o raio não vem. Isto incomoda demais na sala de aula. Estou careca de saber uma coisa. Já dei aula dezenas de vezes sobre aquilo. E na hora o negócio não vem. Termina a aula e o negócio vem.

O pior é que tem uma série de demências degenerativas, tais  como a doença de Alzheimer e a demência semântico, nas quais um dos principais sintomas é a dificuldade com a memória semântica.
Como saber se as dificuldades que alguém enfrenta com a memória semântica são normais ou patológicas? A neuropsicologia cognitiva tem uma resposta para esta questão.

Uma primeira distinção importante deve ser feita entre anomia e déficits na memória semântica. No envelhecimento típico vão ocorrendo alterações microvasculares na substância branca que lentificam o processamento de informação. Vão surgindo devagarinho microlesões vasculares na substância branca, as quais aparecem nos exames de ressonância magnéticas como pontos de hiperintensidade de sinal (leucoaraiose). Este é o substrato neurofuncional das dificuldades de resgate que começam a incomodar a todos a partir e uma certa idade e que já me pegaram. A informação está lá. Não foi perdida. Mas, devido a essas disfunções da integração córtico-cortical de longa distância, o resgate fica mais difícil, mas lento. E às vezes falha temporariamente. Por vezes é dificultado apenas o acesso ao nome (anomia). O indivíduo consegue se lembrar do conceito e de todos os fatos associados. O que falta temporariamente é o acesso ano nome.

Outras vezes o problema é com a própria informação semântica. O que não vem é o conteúdo mesmo. Nestes casos é importante considerar uma distinção entre transtornos do acesso e degradação das próprias representações semânticas (Warrington & Shallice, 1979). Warrington e Shallice estabeleceram uma série de critérios para distinguir entre estas duas condições: 1) Consistência: Se a representação semântica está degrada, o individuo deve apresentar dificuldades repetidas com determinados itens. Nos transtornos de acesso as dificuldades são variáveis, inconsistentes de um item para outro; 2) Priming: Na degradação da representação semântica não ocorre o fenômeno de priming. Ou seja, a apresentação prévia de um estímulo semanticamente relacionado não ativa o campo semântico do estímulo alvo e. portanto, não facilita o reconhecimento deste; 3) Frequência dos itens: Itens mais frequentes são mais consolidados na memória semântica e possuem representações mais redundantes. Itens mais frequentes são, portanto, mais fáceis de resgatar. No transtorno de acesso não deve haver efeito de frequência; 4) Velocidade de apresentação: Pacientes com déficits de acesso são desproporcionalmente mais afetados pelo intervalo de apresentação entre um estímulo e outro do que pacientes com degradação das representações semânticas.

É possível então estabelecer uma nítida correlação estrutura-função. As dificuldades com a memória semântica no envelhecimento típico, associadas a disfunções metabólico-vasculares da conectividade córtico-cortical, dificultam mais o resgate de informação e aparecem como anomia ou déficit de acesso semântico. A degradação das representações semânticas, com déficits mais graves, consistentes de um ensaio para outro, e não exibindo efeitos de priming, frequência de ocorrência e velocidade de apresentação, é mais típica das doenças degenerativas e progressivas.

Referência

Warrington, E. K. & Shallice, T. (1979). Semantic access dyslexia. Brain, 102, 43-63.

A neuropsicologia no conflito das faculdades


Haase, V. G. & Salles, J. F. (2011). A neuropsicologia no conflito das faculdades. Boletim da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp), Dezembro.


O estudo psicológico da criatividade científica tem mostrado como em muitos casos as descobertas originais e mudanças de paradigma dependem de um longo período de gestação no qual evidências oriundas de diversas disciplinas são integradas, múltiplas hipóteses e modelos concorrentes são gerados e testados, sendo retidos aqueles que resistem ao teste de hipóteses (Simonton, 2002). O caso de Charles Darwin e da teoria da evolução por seleção natural é emblemático, conforme investigado por Gruber (Gruber & Wallace, 2001). Darwin trabalhou na fronteira entre disciplinas, principalmente nos limites entre o que hoje chamamos de Geologia e Biologia. Apesar de, provavelmente, ter experimentado alguma espécie de insight, foi apenas através do árduo trabalho de geração e teste de hipóteses concorrentes ao longo de mais de 20 anos que Darwin conseguiu dar forma à sua teoria.

A história da Neuropsicologia também ilustra a importância do trabalho interdisciplinar para o progresso científico (Shallice, 1988). Apesar de a denominação ser posterior, a Neuropsicologia surgiu com a descoberta de que o método anátomo-clínico também podia ser utilizado para encontrar associações sistemáticas entre localizações lesionais e alterações do comportamento/cognição. Inicialmente a neuropsicologia era praticada por médicos, que estudavam casos isolados e testavam suas hipóteses localizacionistas através da observação clínica e de tarefas psicologicamente rudimentares, criadas ad hoc. A partir de 1865, os estudos de Paul Broca sobre a representação cerebral da linguagem no hemisfério esquerdo fundaram a disciplina e constituem uma grande influência até os dias de hoje para a Neuropsicologia. Ainda, profissionais de reabilitação das lesões cerebrais/comunicação no pós-guerra (Décadas de 1930 e 1940) tratavam dos pacientes com sequelas, especialmente de linguagem (afasias). Por conta destes fatores, a Neuropsicologia era denominada Afasiologia. A partir dos anos 1930 iniciou-se de forma mais sistemática a colaboração interdisciplinar. A contribuição de outras disciplinas levou a um refinamento da caracterização dos processos neuropsicológicos, p. ex., através do uso de métodos psicométricos e de análises linguísticas (Alajouanine, Ombredane & Durand, 1939, McBryde & Weisenburg, 1935, Ombredane, 1929). Um marco da interdisciplinaridade foi a publicação em 1939 da obra Le syndrome de désintégration phonétique dans l’aphasie, cujos autores eram um neurologista (Alajouanine), uma linguista (Durand) e um psicólogo (Ombredane).
A neuropsicologia ganhou novo impulso interdisciplinar nos anos 1960 com a chamada Revolução Cognitiva (Gardner, 1996). Os modelos de processamento de informação e a abordagem quase-experimental de casos isolados permitiram que as hipóteses de correlação estrutura-função fossem formuladas de forma mais precisa e empiricamente testável, contribuindo para aumentar seu poder descritivo e validade preditiva. No entanto, o ímpeto interdisciplinar foi adiante. Desde meados dos anos 1990, uma nova e poderosa ferramenta tecnológica/metodológica, a neuroimagem funcional (especialmente a fMRI) permite que os modelos cognitivos (de processamento de informação ou PPD/PDP) e seus correlatos neurais sejam testados in vivo e de forma não-invasiva. O escopo interdisciplinar foi então expandido e surgiu a Neurociência Cognitiva (Posner & DiGirolamo, 2000).

A Neuropsicologia que já era interdisciplinar, congregando esforços de psicólogos, médicos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, linguistas, etc., passou a fazer parte de um programa mais amplo de pesquisa e clínica, a Ciência Cognitiva, a qual abarca um leque de especialistas que vai da Física e Informática à Filosofia e Antropologia. A trajetória da Neuropsicologia e da Neurociência Cognitiva são ilustrativas de um movimento que vai da multidisciplinaridade (diferentes profissionais trabalhando em equipe) para a interdisciplinaridade (diferentes profissionais trabalhando com objetivos comuns) e desta para a transdisciplinaridade, na qual um fundo comum de pressuposições teóricas e métodos é compartilhado por profissionais de diferentes extrações formativas (Drechsler, 1999).

E quais são as características mais evoluídas e transdisciplinares da Neuropsicologia? Uma das bases teóricas mais sólidas da Neuropsicologia é o pressuposto da modularidade. O cerne metodológico é a avaliação das correlações anátomo-clínicas, ou estrutura-função no jargão contemporâneo, e das dissociações entre funções e tarefas. Mas a Neuropsicologia ainda não evoluiu a ponto de se constituir em uma faculdade autônoma. Pode-se fazer uma analogia entre o estado atual da neuropsicologia com a evolução do Pokémon Pikachu. O personagem se originou de uma forma bebê denominada Pichu e hesita em evoluir para Raiochu. A Neuropsicologia ainda é aprendida na pós-graduação e praticada por profissionais oriundos de faculdades distintas e congregados em diferentes corporações de artes e ofícios. A situação é paradoxal. Se por um lado, o desenvolvimento é gigantesco, por outro ainda não foi o suficiente para lhe conferir a força e o status de uma corporação própria, resguardando-a do conflito das faculdades[1].

O conflito das faculdades se instala no momento em que uma corporação de artes e ofícios declara que a Neuropsicologia lhe pertence. E que profissionais de outras áreas não podem “brincar” com ela. Quando uma corporação diz assim: “só os meus afiliados podem utilizar instrumentos de exame dos processos neuropsicológicos, mesmo nos casos em que esses outros profissionais de outras áreas tenham sido os responsáveis pelas pesquisas de normatização e validação de tais instrumentos”. Além de ignorar a evolução histórica e a natureza inter- e transdisciplinar do conhecimento neuropsicológico, esta posição negligencia a longa tradição de exame do estado mental em Neurologia e Psiquiatria (Hodges, 1994, Strub & Black, 1993) e da linguagem e funções cognitivas relacionadas em Fonoaudiologia. A qual, em última análise, remonta ao próprio Hipócrates (Todman, 2008). Profissionais de Medicina, fonoaudiologia, Terapia Ocupacional e outras profissões trabalham no seu dia a dia com pacientes que precisam ter seu estado mental avaliado a partir de uma perspectiva neuropsicológica. Perspectiva esta que se baseia no conhecimento cumulativo sobre correlação anátomo-clínica e não primordialmente em construtos psicológicos. Nós vivemos em uma época de assistência à saúde baseada em evidências, na qual a validação e normatização de procedimentos diagnósticos é um imperativo ético (Porter, 2004). Os profissionais de saúde não têm apenas o direito, eles têm o dever de validar seus instrumentos avaliativos/diagnósticos.

O Conselho Federal de Psicologia tem se pronunciado de maneira reiterada no sentido de tentar impedir que profissionais de outras áreas utilizem os instrumentos de diagnóstico validados e normatizados por esses mesmo profissionais de outras áreas que não a psicologia. Se este conselho defende que sua legislação contempla os trabalhos com todas as funções neuropsicológicas, é bem verdade que a legislação de outras profissões da área da saúde também contempla. É de se perguntar se os melhores interesses dos pacientes neuropsicológicos estão sendo contemplados com esta atitude. Também pode-se perguntar se os próprios interesses corporativos dos psicólogos são atendidos por esta resolução. Que benefícios podem auferir os psicólogos do isolamento de outros profissionais que atuam no campo interdisciplinar da Neuropsicologia, atendendo crianças, adultos e idosos com dificuldades de aprendizagem, transtornos de desenvolvimento e doenças neurológicas e psiquiátricas? Além de refletir esforços interdisciplinares, o interesse atual por Neuropsicologia e Neurociência Cognitiva pode ser tomado como uma medida do sucesso da própria Psicologia. Do exame sistemático e validado do estado mental pelos mais diferentes profissionais resultará um aumento e não uma diminuição da demanda pelos serviços dos profissionais de Psicologia.

A atual disputa das faculdades que vivenciamos no Brasil é reminiscente de uma mais antiga, que foi objeto do último livro publicado por Immanuel Kant, em 1798 (Kant, 1993). Na obra intitulada “O conflito das faculdades”, Kant procura salientar a importância da Filosofia frente às faculdades mais estabelecidas, como a Teologia, o Direito e a Medicina. Aos interesses pragmáticos dos quais derivava o poder das faculdades mais estabelecidas à época, Kant contrapôs a defesa da racionalidade e da busca da verdade, as quais ele associava à Filosofia. Sabidamente, Kant era um idealista e no mundo contemporâneo prevalecem os interesses pragmáticos. Não seria o caso então de nos perguntarmos, para além dos interesses corporativos, como os interesses pragmáticos dos pacientes neuropsicológicos serão mais bem atendidos?


Referências

Alajouanine T., Ombredane A. & Durand M. (1939). Le syndrome de désintégration
phonétique dans l’aphasie. Paris: Masson.

Drechsler, R. (1999). Interdisziplinäre Teamarbeit in der Neurorehabilitation. In P. Frommelt & H. Grötzbach (Orgs.) Neurorehabilitation. Grundlagen, Praxis, Dokimentation (pp. 54-64). Berlin: Blackwell.
Gardner, H. (1996). A nova ciência da mente. Uma história da revolução cognitiva. São Paulo: EDUSP.

Gruber, H. E. & Wallace, D. B. (2001), Creative work. The case of Charles Darwin. American Psychologist,  56, 346-349.

Hodges, J. R. (1994). Cognitive assessment for clinicians. Oxford: Oxford University Press.

Kant, I. (1993). O conflito das faculdades. Lisboa: Edições 70.

McBride, K. & Weisenburg, T. (1935). Aphasia. New York: Commonwealth Fund.

Ombredane, A. G. (1929). Les troubles mentaux de la sclérose en plaques. Paris: PUF.

Porter, R. (2004). Das tripas coração. Uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record.

Posner, M. I., & DiGirolamo, G. J. (2000). Cognitive neuroscience: origins and promise. Psychological Bulletin, 126, 873-889.

Simonton, D. K. (2002). A origem do gênio. Perspectivas darwinianas sobre a criatividade.  Rio de Janeiro: Record.

Strub, R. L. & Black, F. W. (1993). The mental status examination in neurology (3rd. ed.). Philadelphia: Davis.

Todman, D. (2008). Epilepsy in the Graeco-Roman world: Hippocratic medicine and Asklepian temple medicine compared. Journal of the History of Neuroscience, 17, 435-441.


[1] É preciso salientar aqui, entretanto, que não estamos defendendo que a Neuropsicologia se constitua em uma faculdade autônoma. Apenas registramos o fato de que não é.

Sunday, February 17, 2013

“Avaliação da funcionalidade na Síndrome de Turner: o uso do modelo da CIF”


Não percam mais uma atividade do  II Congresso Mineiro de Neuropsicologia, que acontecerá entre 17 e 20 de abril de 2013 na UFMG. A Andressa Moreira Antunes, pesquisadora do Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND-UFMG) vai falar sobre funcionalidade na síndrome de Turner, a partir da perspectiva biopsicossocial da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF-OMS).

A síndrome de Turner é uma condição decorrente de alterações do segundo cromossoma sexual feminino, cromossoma X. Pode ser causada por uma deleção completa ou parcial de um cromossoma X, bem como por outros tipos de anomalias, tais como translocações ou cromossoma X em anel. As anomalias podem estar presentes apenas em uma fracção das células (mosaicismo).  Além do fenótipo somático, caracterizado por diversos graus de baixa estatura, alterações hormonais, malformações somáticas etc., o fenótipo cognitivo e comportamental é bastante característico (vide revisões em Kesler, 2007,  Ross et al., 2000). Um dos achados mais salientes é uma discrepância entre o QI verbal e o QI de execução. Estas pessoas apresentam geralmente uma inteligência verbal normal associada a dificuldades cognitivas específicas no domínio visoespacial, funções executivas e na aprendizagem da matemática. Dificuldades relacionadas a timidez e ansiedade social são também classicamente mencionadas (Kesler, 2007, Ross et al., 2000).

Para compreender o interesse pela funcionalidade na síndrome de Turner podemos começar por uma historinha acontecida há quase trinta anos. Um professor estava falando sobre deficiência intelectual numa daquelas disciplinas  introdutórias à psicologia (PSY 101) nos Estados Unidos, com centenas de alunos em um auditório. Uma moça levantou o dedo e disse que tinha um erro no livro escrito e adotado pelo professor. Lá no livro dizia que a síndrome de Turner seria uma causa de deficiência intelectual. A moça chamou atenção para o fato de que ela tinha síndrome de Turner e estava na faculdade. Ela acabou passando com conceito A. O professor teve que corrigir o livro na edição seguinte.

Se isto já era verdade há quase trinta anos atrás, imaginem hoje em dia. Mas não é verdade apenas para a síndrome de Turner. É verdade para todas as síndromes genéticas e para os fenômenos biológicos de um modo em geral. Uma característica distintiva dos fenômenos biológicos é a variabilidade interindividual. E isto vale também para as síndromes genéticas. Não existem dois indivíduos iguais. A variabilidade é imensa e este é um dos principais motivos pelos quais é muito difícil estabelecer um diagnóstico. Os profissionais fixam na cabeça um protótipo e só pensam no diagnóstico quando os sinais e sintomas são muito evidentes. Isto contribui para que a prevalência das síndromes genéticas pareça ser muito menor do que realmente é. Um grande número de casos simplesmente não é diagnosticado. E como não são diagnosticados, os indivíduos afetados, suas famílias e suas educadoras não se beneficiam dos conhecimentos advindos do diagnóstico. A síndrome de Turner (e outras) constituem um fator de risco para deficiência intelectual. Mas nem todos os indivíduos vão ser afetados e no mesmo grau. E a probabilidade de realizar um diagnóstico é menor quando o indivíduo não apresenta malformações graves ou deficiência intelectual.

Esta questão da variabilidade é mais verdade ainda hoje, e principalmente no que se refere à síndrome de Turner. Uma parte da variabilidade fenotípica é relacionada à própria variabilidade dos mecanismos genéticos. Diferentes tipos de alterações cromossômicas, tais com mosaicismo e translocações, causam manifestações fenotípicas distintas. Mas tem também um fator adicional. A introdução do tratamento com hormônio de crescimento e estrógenos mudou completamente o panorama (Davenport et al., 2007). O tratamento permite uma normalização da aparência física, principalmente, no que se refere à estatura, mas também no desenvolvimento de características sexuais secundárias. Uma grande questão neuropsicológica atual é saber até que ponto o tratamento é eficiente na reversão no perfil específico de dificuldades de aprendizagem (Davenport, 2012). Ao invés de apresentarem deficiência intelectual, a maioria das pessoas afetadas tem dificuldades de aprendizagem, relacionadas a um perfil discrepante de habilidades. Como já foi mencionado, as dificuldades maiores são observadas nas áreas da cognição visoespacial e a na aprendizagem da matemática.  Considerando que a frequência de síndrome de Turner em nativivas é de 1/2000 (Davenport et al., 2007) e que  expectativa de vida vem aumentando progressivamente, podemos ficar imaginando quantas meninas que lutam com dificuldades de aprendizagem da matemática apresentam uma síndrome de Turner que não foi diagnosticada.

O tratamento medicamentoso resulta em benefícios cognitivos? Nós ainda não temos informações suficientes para responder de forma definitiva a esta questão (Davenport, 2012). Mas há razão para otimismo. Os estudos sobre funcionalidade, atividades e participação indicam atualmente que para a maioria das portadoras de síndrome de Turner o prognóstico é muito bom (McCauley et al., 2001, Rolstad et al., 2007). Há uma perspectiva real de normalização. De levar uma vida produtiva e feliz, de realizar o potencial de desenvolvimento. Daí a importância do diagnóstico. Somente o diagnóstico, realizado o mais precocemente possível, permite identificar as eventuais dificuldades, instituir o tratamento e orientar as famílias e educadoras. Sem diagnóstico, sem chance.

E o diagnóstico deve ser o mais amplo possível. O diagnóstico não se deve limitar ao estabelecimento da etiologia e comorbidades. Nem restringir-se aos déficits cognitivos. O diagnóstico precisa abranger também o impacto da condição de saúde sobre os diversos níveis de funcionamento do indivíduo. Aí é que entra a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), proposta pela Organização Mundial da Saúde (Andrade et al., 2009, Haase et al., 2012). O modelo biopsicossocial subjacente à CIF permite avaliar o impacto das condições de saúde de forma mais abrangente, integrando informações sobre a estrutura e função do organismo com a capacidade funcional (atividades e participação), os facilitadores e barreiras ambientais e as  características subjetivas do indivíduo. Estudos utilizando o referencial da CIF são importantes para que compreendamos melhor, p. ex., como aspectos relacionados ao fenótipo cognitivo e comportamental repercutem na vida e o que pode ser feito para prevenir e melhorar, para potencializar o desenvolvimento.

Como foi dito acima, no caso da síndrome de Turner as notícias são muito boas. Vejamos o caso do funcionamento social. Dificuldades sociais, caracterizadas como timidez e ansiedade social foram frequentemente descritas em pessoas com a síndrome de Turner, as quais podem estar relacionadas a alterações anátomo-funcionais na amígdala e circuitos conexos (Burnett et al., 2010). No entanto, estas dificuldades não aparecem em todas as pessoas afetadas e muitas vezes são detectáveis apenas através de registros psicofisiológicos ou de imagem neurofuncional. Um fator de risco é relacionado ao fenômeno de imprinting, ou origem parental do material genético. O risco de dificuldades sociais é maior nos casos em que o cromossoma X conservado é de origem materna (Skuse et al., 1997). O mesmo fenômeno pode ocorrer em relação às habilidades cognitivas, tais como a aprendizagem da matemática (Ergür et al., 2008). Estudos com grupos de mostram por outro lado, que os níveis de adaptação psicossocial nas pacientes de Turner são normais (McCauley et al., 2001). A prevalência de transtornos psiquiátricos não é diferente daquela observada na população em geral. Ou seja, a variabilidade interindividual é muito grande. Diversos fatores influenciam o fenótipo. A síndrome de Turner pode ser considerada como um fator de risco para déficits cognitivos e dificuldades de adaptação psicossocial Mas um grande contingente de pacientes funciona muito bem.

Uma medida das possibilidades é dada por um estudo conduzido na Suécia com 57 mulheres portadoras de síndrome de Turner com idade média de 36 anos (Rolstad et al., 2007). Dentre as que tinham relacionamentos conjugais, a atividade sexual tinha se iniciado com apenas 2 a 3 anos de atraso em relação à média da população em geral. Trinta e cinco por cento das participantes estavam casadas ou tinham um relacionamento conjugal estável. E majoritariamente estas mulheres relataram satisfação com os relacionamentos conjugais. Também não diferiam da população em geral quanto à expressão do desejo sexual e frequência da atividade sexual. Além da variabilidade genética, certamente uma grande percentagem da variância fenotípica é explicada por fatores ambientais (Stochholm et al., 2012). O acesso a serviços diagnósticos e terapêuticos, a qualidade da educação e do aconselhamento psicológico, o funcionamento e incentivo fornecido pela família etc., todos estes são fatores que influenciam o prognóstico, tanto no que se refere à mortalidade, morbidade e funcionalidade.  A distribuição do diagnóstico da síndrome de Turner apresenta uma distribuição bimodal em relação à idade (Batch, 2002). O primeiro pico ocorre logo após o nascimento, quando são identificados os casos mais graves.  Um segundo pico ocorre na adolescência, em função da ausência do desenvolvimento de características sexuais secundárias. Um grande desafio atual é identificar as meninas portadoras da síndrome na idade escolar. Numa época da vida na qual elas ainda possam se beneficiar mais significativamente da terapia normal e numa época na qual elas também possa se beneficiar do diagnóstico e intervenções para dificuldades de aprendizagem.


Referências

Andrade, P. M. O., Ferreira, F. O. & Haase, V. G. (2009). A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e o trabalho interdisciplinar no Sistema Único de Saúde (SUS). In V. G. Haase, F. O. Ferreira & F. J. Penna (Orgs.) Aspectos biopsicossociais da saúde na infância e adolescência (pp. 67-88). Belo Horizonte: COOPMED (ISBN: 978-85-7825-003-4) (http://www.coopmed.com.br/site/catalog/product_info.php?products_id=74).

Batch, J. (2002). Turner syndrome in childhood and adolescence. Best Practice & Research Clinical Endocrinology and Metabolism, 16, 465-482.

Berch, D. B. & Bender, B. G. (2000). Turner syndrome. In  K. O. Yeates, M. D. Ris, & H. G. Taylor (Eds) Pediatric neuropsychology. Research, theory, and practice (pp. 252-273). New York: Guilford.

Burnett, A. C., Reutens, D. C. & Wood, A. G. (2010). Social cognition in Turner's syndrome. Journal of Clinical Neuroscience, 17, 283-286.

Davenport, M. L. (2012). Growth hormone therapy in Turner’s syndrome. Pediatric Endocrinology Reviews, 9 (Suppl. 2), 723-724.

Davenport, M. L., Hooper, S. R., & Zeger, M. (2007). Turner syndrome. In M. M. Mazzocco & J. L. Ross (Orgs.) Neurogenetic developmental diserders. Variations of manifestion in childhood (pp. 3-45). Cambridge, MA: MIT Press.

Ergür, A. T., Öcal, G., Bergeroglu, M., Tekin, M., Kiliç, B. G., Aycan, Z., Kutlu, A., Adiyaman, P., Stklar, Z., Akar, N., Sahin, A., & Akçayöz, D. (2008). Paternal X could relate to arithmetic function: study of cognitive function and parental origin of X chromosome in Turner syndrome. Pediatrics International, 50, 172-174.

Haase, V. G., Pinheiro-Chagas, P. & Andrade, P. M. O. (2012). Reabilitação cognitiva e comportamental. In A. L. Teixeira & A. Kummer (Orgs.) Neuropsiquiatria clinica (pp. 115-123). Rio de Janeiro: Rubio (http://www.rubio.com.br/descricao.asp?cod_livro=A46792).

Kesler, S. R. (2007). Turner syndrome. Child and Adolescent Psychiatric Clinics of North America, 16, 709-722.

McCauley, E., Feuillan, P., Kushner, H., & Ross, J. L. (2001). Psychosocial develpment in adoelscentes with Turner syndrome. Developmental and Behavioral Pediatrics, 22,   360-365.