Thursday, November 26, 2020

PANDEMIA & EDUCAÇÃO: A PERSPECTIVA EVOLUCIONÁRIA


A conexão entre a educação e a evolução é a seguinte. O evento decisivo na evolução humana é a supremacia ecológica. O termo supremacia ecológica se refere ao fato de que os humanos não têm predator natural e, portanto, adquiriram supremacia sobre a sua ecologia biológica e física. A supremacia ecológica ressaltou a importância das pressões seletivas intra-específicas nos humanos. Ab principal pressão selectiva humana tem a ver com as habilidades sócio-cognitivas necessárias para a cooperação intra-grupo e competição inter-grupos. Os problemas cognitivos mais difíceis que enfrentamos no nosso dia a dia são de natureza social, buscando soluções para os jogos estratégicos nos quais nos metemos. A pressão de seleção social permitiu a evolução de habilidades cognitivas cada vez mais complexas, criando o cenário para a seleção da inteligência geral e a evolução da cultura.


A complexidade cultural humana propiciou a invenção de uma série de artefatos, tais como a língua escrita, a aritmética, a imprensa, o computador, a internet etc. A utilização desses artefatos culturais complexos requer uma pedagogia. Ou seja, uma tecnologia de transmissão de conhecimento entre uma geração e outra, com o intuito de preservar e permitir o aprimoramento do legado cultural.


Geary (2007) distingue entre habilidades cognitivas biologicamente primárias e secundárias. A linguagem oral é um exemplo de habilidade primária. As crianças não precisam ser ensinadas a falar, elas adquirem ou desenvolvem a linguagem. Desde que convivam com uma comunidade falante de alguma língua natural. A língua escrita é outra história. A língua escrita não é aprendida espontaneamente, mas exige uma pedagogia e de três a quatro anos de árduo esforço da criança para adquirir fluência. 



As habilidades primárias constituem o equipamento cognitivo padrão da espécie humana, o qual evoluiu no ambiente ancestral. Esse equipamento padrão é constituído por uma série de primitivos conceituais relacionados ao ambiente físico (tempo, espaço, causalidade, quantidade etc.), à vida (seres vivos e inanimados, espécei etc.) e aos relacionamento intra- e interpessoais (self, outro, teoria da mente etc.). As habilidades primárias são adquiridas espontaneamente, no convívio com um cultural qualquer. As crianças possuem aprendizibilidade das habilidades primárias e são intrinsecamente motivadas para sua aquisição.


A história é bem diferente no que se refere às habilidades secundárias. Não existe motivação intrínseca para gostar da escola. O gosto pelo estudo precisa ser adquirido e depende dos resultados, da orientação de um professor e de muito esforço deliberado. As crianças não são intrinsecamente motivadas para aprender a ler, por exemplo. O estudo pode ser inicialmente aversivo. A motivação para o estudo não é intrínseca, depede dos resultados obtidos aqui agora (permitindo o desenvolvimento de auto-eficácia) e de resultados abstratos projetados em um futuro longínquo (os quais precisam ser representados na memória de trabalho).  A motivação para a aquisição de habilidades cognitivas biologicamente secundárias é, portanto, cognitivamente mediada.


Os efeitos da pandemia de COVID-19 foram analisados por David C. Geary sobre esse pano de fundo evolucionário. A suspensão das aulas e o ensino  remoto prejudicam a aquisição de habilidades cognitivas biologicamente secundárias. Ou seja, aquelas habilidades cognitivas que dependem crucialmente da escola. O prejuízo pode ser irreparável para toda uma coorte da população, que vive essa situação inédita. 


Esse drama pandemônico nos afeto no Brasil também. Paradoxalmente, os efeitos podem ser agravados e simultaneamente nuançados, diria um cínico. A pandemia agravou o Apartheid social no Brasil de duas maneiras. Inicialmente, a suspensão das aulas e dificuldade das escolas públicas em implementar a educação remota prejudicaram os mais pobres. Atualmente, com a suspensão continuada das aulas presenciais, as crianças mais pobres continuam sendo prejudicada.

A suspensão das aulas e educação remota aumentou a responsabilidade das famílias e das próprias crianças sobre sua aprendizagem. A educação remota depende muito da motivação do aluno, da sua capacidade de auto-organização, de auto-motivação, de responsabilidade e de engajamento, de habilidades cognitivas de pensamento crítico que propiciem a aprendizagem por descoberta. Os alunos que exigem mais tutoria têm sua aprendizagem prejudicada quanto não recebem essa tutoria dos professores e/ou quando a família, pelas mais diversas razões, não tem condições de oferecer essa tutoria.


A nuance vem de um comentário cínico que ouvi por aí. Talvez possa até ser vantajoso para as crianças as escolas não funcionarem. O currículo anda tão desidratado de conteúdo que, de qualquer maneira, as crianças não aprendem nada na escola. E ficando em casa, se poupam da doutrinação esquerdista.


Referência


Geary, D. C. (2007).  Educating the evolved mind: Conceptual foundations for an evolutionary  educational psychology. In J. S. Carlson & J. R. Levin (Eds.), Educating the evolved mind (pp. 1-99, Vol. 2, Psychological perspectives on contemporary educational issues).  Greenwich, CT: Information Age. 

Monday, November 16, 2020

THOMAS SOWELL E A LAVAGEM CEREBRAL NA SALA DE AULA

A lavagem cerebral em sala de aula é um problema no mundo todo, incluindo o Brasil. Aqui no Brasil, nós tivemos uma proposta muito interessante, o projeto "Escola sem Partido" (ESP). Eu sou muito crítico em relação a essas propostas de mudar a sociedade por decreto. Não gosto disso. Minha índole  política oscila entre o conservadorismo britânico alla Burke e o libertarianismo alla Murray Rothbard. Por vezes um fala mais alto, por vezes outro. Nessa questão do ESP, o Rothbard ganhou a parada.


Apesar das reservas, apoiei o ESP. Inclusive tive a honra de participar de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, discutindo o problema do ativismo político na Universidade (Haase, 2017). Após o ensino, pesquisa e extensão, a Universidade assumiu uma nova missão, o ativismo político. Minha reserva em relação ao ESP se deve à alergia de apoiar mudanças sociais na marra. As mudanças que interessam devem vir de baixo para cima e não de cima para baixo. E o ESP conseguiu isso. O ESP conseguiu colocar a doutrinação escolar na ordem do dia. Criaram-se grupos de pais nas redes sociais denunciando casos escabrosos. Foram submetidos projetos semelhantes em estados e municípios etc. Foi muito inspirador. Infelizmente, esse movimento refluiu. Levou dois baldes de  água fria, um do STF e outro do Bolsonaro.  Sobrou a alternativa bottom-up, do trabalho de formiguinha que precisamos fazer para não deixar essa questão morrer.

Recentemente tive a oportunidade de reler um livro maravilhoso do Thomas Sowell (1993), intitulado "Inside American education". O Sowell é um cara surpreendente, a quem eu não canso de admirar. Algumas das cenas mais divertidas que eu já vi no YouTube são videos do Sowell desbancando na maior categoria e civilidade os argumentos de socialistas, feministas etc. Adoro em especial um video no qual o Milton Friedman está participando da discussão e fica se divertindo. Assim como se tivesse pensando: "Esse é o meu garoto". E o Sowell impecavelmente vestido, falando de modo calmo e educado, apesar da língua presa, conservador com aquele cabelo afro da Década de 1960. Impagável.

A outra coisa surpreendente é a capacidade do Sowell de lidar com dados. Ele pega as estatísticas mais corriqueiras e as examina de forma inusitada. Um exemplo  é o recente "Charter schools and their enemies", escrito aos noventa anos de idade (Sowell, 2020). O Sowell parece pastel de palmito da Rodoviária: quanto mais velho melhor.

"Inside American education" é de 1990 e poucos.  A primeira seção do livro é sobre as escolas. O primeiro capítulo é sobre o anti-intelectualismo na formação de professores, o segundo sobre lavagem cerebral nas escolas e o terceiro sobre a ideologia subjacente. Foi escrito há quase trinta anos, mas continua atual. Vou me concentrar aqui na questão da lavagem cerebral.

As estratégias gramscianas de lavagem cerebral nas escolas já foram analisadas no "Maquiavel pedagogo" (Bernardin, 2013). "Maquiavel pedagogo" é um livro muito bom, recomendável. O "Maquiavel" se baseia em pesquisa psicológica da melhor qualidade. Infelizmente, a orientação teórica é um pouco antiquada, baseada na psicologia social dos Anos 60. De lá para cá, muita água foi trazida a esse moinho. Sowell (1993), propõe uma abordagem bem mais simples, mais direta, mais cognitiva. O objetivo da lavagem cerebral é uma mudança das atitudes e valores da criança.

O primeiro problema que Sowell resolve é definir o que é lavagem cerebral nas escolas e dar exemplos. Quando se discute esse assunto da lavagem cerebral nas escolas, um argumento freqüentemente esgrimido é o negacionismo. Ou seja, simplesmente negar que o problema exista. Sowell resolve isso na medida em que fornece critérios claros do que é do que não é lavagem cerebral. Depois ele dá uma série de exemplos. Vale a pena citar por extenso.

"Uma variedade de programas usados ​​em salas de aula em todo o país não apenas compartilham os objetivos gerais de lavagem cerebral - isto é, mudar atitudes, valores e crenças fundamentais por métodos de condicionamento psicológico - mas também usam técnicas clássicas de lavagem cerebral desenvolvidas em países totalitários: a) Estresse emocional, choque ou dessensibilização, para quebrar a resistência intelectual e emocional; b) Isolamento, seja físico ou emocional, de fontes familiares de apoio emocional na resistência; c) Confrontação de valores pré-existentes, geralmente manipulando pressão dos colegas em sessões de acareação;  d) Tirar do indivíduo as defesas normais, como reserva, dignidade, senso de privacidade ou a capacidade de recusar-se a participar; e) Recompensa a aceitação das novas atitudes, valores e crenças - uma recompensa que pode ser simplesmente liberação das pressões infligidas àqueles que resistem, ou pode assumir outra forma simbólica ou tangível” (Sowell, 1993, p. 57).

Muitos dos exemplos que Sowell discute são retirados de um relatório do Governo Americano (Schlaffly, 1988). Quer dizer, há mais de 30 anos isso já era um problema reconhecido pelo Governo Americano da época. 


Os critério oferecidos por Sowell (1993) ajudam a identificar quando a lavagem cerebral está ocorrendo. A seguir vou mencionar alguns dos exemplos que o Sowell discute:

a) Choque e dessensibilização: O objetivo aqui é chocar, criar dissonância cognitiva e habituar a criança a comportamentos, atitudes e valores fora da curva. Sowell (1993) menciona vários exemplos de programas de "educação par a morte", nos quais, entre outros projetos, as crianças são instadas a visitar um necrotério e tocar nos mortos, escrever sua própria nota de suicídio etc. Em um projeto de educação sexual, as crianças assistiam a um video de uma mulher colocando um absorvente íntimo. Noutros projetos, os meninos precisavam gritar repetidamente "vagina" e as meninas "pênis". Esses projetos são academicamente tão irrelevantes e pueris que lembram o menino e a menina que ficam mostrando os seus "pipis" um para o outro. Só que o objetivo aqui é violar a inocência das crianças. Fizeram furor no Brasil os "projetos" que levaram crianças a museus de arte para assistir e ter aulas sobre exposições com conteúdo sexual apelativo. São freqüentes também no ambiente escolar brasileiro, os "projetos" em que crianças dançam funk de forma lasciva. Já vi foto de dois bebês dançando funk de fraldas.

b) Isolamento da cultura familiar de origem: Uma das principais estratégias da lavagem cerebral é promover o conflito entre pais e filhos, isolando a criança do conforto e apoio da família, ridicularizando os valores familiares e promovendo a vergonha dos pais. Sowell (1993) menciona um projeto que envolvia um "Círculo Mágico". Tudo que acontecesse e fosse dito dentro daquele círculo não deveria ser comentado com os pais. 

c) Confrontação pelos colegas e ostracismo: Quando um menino tem uma opinião conservadora, dissonante daquela do professor, o mesmo incita a turba para massacrá-lo até que ele muda de idéia. Sowell (1993) cita o exemplo de um professor que solicitou repetidamente a um aluno que reiterasse uma opinião conservadora, apenas para expô-lo perante os colegas. Depois de algumas vezes de insistir para que a criança se pronunciasse, o menino comentou: "Mas por que você só fica pedindo para que eu fale? Só eu?" Nem assim o professor parou. No Brasil isso acontece muito com os evangélicos ou alunos conservadores, que são provocados a se manifestar, apenas para sofrer uma acareação ostensiva e agressiva por parte dos colegas.

d) Desmoralização: Um menino que ficou constrangido em ficar repetindo bobamente "vagina, vagina, vagina etc." durante o tal "projeto" foi ridicularizado pelo professor e colegas. Os evangélicos que ousam manifestar suas opiniões são ridicularizados. Tudo isso promove um ambiente anti-acadêmico. O contrário do que se desejaria ver na escola. Por vezes tenho a impressão de que muitos professores pregam pela cartilha do Rousseau mas, realmente, praticam pela cartilha pedagógica do Maquiavel. Impressionamente como conseguem agredir e ridicularizar sem pudor os alunos divergentes. 

e) Reforço ao conformismo: A acareação e a desmoralização reforçam o conformiso. A diversidade de pensamento é tolhida em nome da diversidade. Isso acontece muito com os evangélicos, que não têm espaço para se manifestar em sala de aula. Uma vez me chamou atenção um cavalete escondido em um cantinho atrás do elevador. Fui espiar. Tinha um cartaz anunciando uma reunião de um grupo de universitários evangélicos. Acha que era um momento de discussão e de oração. Comigo acontece também com alunos e colegas na Universidade. Às vezes ouço o pessoal comentando a partir de pressupostos que considero absurdos. Eu certamente teria meia dúzia de argumentos e evidências para questionar tais pressupostos. Entretanto, sou obrigado a calar. Uma vez eu estava organizando um evento e uma colega quis vetar um convidado que eu havia sugerido porque o cara é conservador. Tudo isso é um grande estímulo a ficar de boca fechada. Para quem pode.

O ESP refluiu. Por causa disso mesmo esse trabalho bottom-up de botar a boca no trombone, de denunciar, de não se conformar, de não aceitar os abusos é extremamente importante. Gostei tanto dos critérios do Sowell, que estou pensando em fazer uma coleção de episódios. Quem quiser contribuir, narrando seu causo, encontrará ouvidos atentos. 


Referências

Bernardin, P. (2013). Maquiavel pedagogo. Ou o ministério da reforma psicológica. Campinas: Eccleasiae/Vide Editorial.

Haase, V. G. (2017). Ativismo político na universidade. Brasília: Câmara dos Deputados, Comissão Especial - Escola sem Partido.

Schlaffly, P. (1988). Child abuse in the classroom. Westcheste, Ill: Crossway.

Sowell, T. (1993). Inside american education. New York: Free Press.

Sowell, T. (2020). Charter schools and their enemies. New York: Basic Books.

FREIRE E GRAMSCI: ÁGUA E VINHO DO MOINHO ESQUERDISTA

 Ontem compartilhei no FB um mini-conto do Alexandre Archer, contando a história de uma moça que estudou pedagogia. Lá pelas tantas, nessa história, acabou sobrando para o Paulo Freire.




Algumas pessoas não gostaram da crítica feita ao Patrono do Analfabetismo Funcional Brasileiro. E essas pessoas reagiram vigorosamente. Grosso modo, as reações podem ser classificadas em três categorias principais: a) Argumento da autoridade. "Você sabia que o Paulo Freire é o pesquisador brasileiro mais influente e considerado no mundo inteiro?"; b) Argumento ad hominem contra o mensageiro: "O que você leu do Paulo Freire para poder falar?"; c) Nenhum argumento, apenas uma série de adjetivos depreciativos sobre o suposto mau-gosto, bigotrismo, fascismo etc. de quem escreveu e de quem compartilhou.


Vou fazer uma confissão: Sou virgem de Paulo Freire. Nunca consegui ler o cara. Confesso que já tentei várias vezes, mas não tenho estômago. O cara escreve muito mal, passa o tempo todo fazendo jogos de palavras, diz uma coisa uma hora e outra coisa outra hora. A sensação que tenho é de que, ou o conteúdo é muito profundo para que eu possa apreender, ou é muito raso e não há nada para apreender. Tudo parece uma grande viagem na maionese retórica esquerdista.


Uma  coisa que me incomoda no Paulo Freire é a ignorância psicológica. Ele, simplesmente, não conseguia acompanhar aquilo que estava acontecendo na psicologia à sua época. Considerem a famosa metáfora da "educação bancária". É uma das idéias mais rasas que eu já vi no mundo. Não tem fundamento psicológico nenhum.


Suponhamos que você mostre um clip de papel para duas pessoas. Uma que já conhece o objeto e outra ainda não o conhece. Suponhamos que você faça um teste de "criatividade" com essas duas pessoas, pedindo que mencionem o maior número de usos possíveis para o objeto. Provavelmente, o ignorante em clips de papel vai gerar o maior número de possíveis usos. Nem por isso será mais "criativo" do que o sujeito que já conhecia o uso do clip e, portanto, considerava a tarefa trivial. O ignorante não é mais "criativo", é apenas mais ignorante e, portanto, mais deslumbrado com o objeto desconhecido.


Voltemos ao Paulo Freire. Não tenho a menor dúvida de que a metáfora da "educação bancária" é uma criação da cachola dele. Se estivesse copiando alguém, usaria a metáfora do processamento de informação. A "Pedagogia do oprimido" foi escrita em 1968. Àquela época, o cognitivismo já estava fervendo na psicologia há mais de  20 anos. 


O famoso modelo modal da memória de Atkinson e Shiffrin também foi formulado na Década de 1960. Basicamente, o modelo da "educação bancária" pode ser traduzido ao modelo mais simples e elegante de processamento de informação: o conhecimento pode ser reduzido à informação que é transmitida de um emissor a um receptor a outro e armazenada (mais ou menos fielmente) em algum tipo de memória.


O modelo de processamento de informação teve e continua tendo uma influência grande em psicologia. (Além de ser uma maneira muito mais elegante e politicamente não-comprometida de ilustrar o processo de transmissão de conhecimento.) Só que o modelo de processamento de informação também é tosco. Ele só teve a influência que teve e tem por causa do seu valor heurístico, por causa das hipóteses que permitiu gerar e testar.


As hipóteses geradas e testadas já haviam conduzido àquela época a um modelo bem diferente da natureza da cognição humana. A memória é altamente construtiva e reconstrutiva. Quem conta um conto, aumenta um ponto. Isso já era conhecido desde a Década de 1930 através dos trabalhos de Frederic Bartlett. A memória, simplesmente, não pode ser eqüiparada a uma ficha em um arquivo ou a notas de dólar, que são depositadas e sacadas.


Não é assim que o conhecimento funciona. Já se sabia desde a Década de 1930 que a memória é um sistema altamente dinâmico e não um arquivo estático. Quem bebeu na mesma água do Bartlett foi o Piaget. Segundo Piaget, o mecanismo do desenvolvimento consiste em assimilar informação do ambiente  ao sistema cognitivo e acomodar a estrutura do sistema cognitivo à nova informação assimilada. Ou seja, o conhecimento é um sistema altamente dinâmico, que se reconfigura à medida que novas notas de dólar vão sendo "depositadas" ou "sacadas". Já que as metáforas são imprescindíveis, o sistema de conhecimento poderia ser melhor comparado a um computador ou rede neural do que a um cofre.


Quando Paulo Freire escreveu a "Pedagogia do oprimido", Piaget já era um senhor de avantajados 72 anos e tinha uma obra consolidada. Fiz um "Control F" na "Pedagogia do oprimido". A resposta para "Piaget" foi "Não encontrado". Encontrei, entretanto, doze ocorrências de "Marx", quatro de "Mao" e três de "Guevara". Devem ter sido grandes psicólogos, esse trio formado por Marx, Mao e Guevara. Qual é o ponto? O ponto é que o livro de Paulo Freire era sobre política e não sobre psicologia ou pedagogia. De psicologia o Paulo Freire entendia tanto quanto o Olavo de Carvalho. (Acabou sobrando para o Olavo. Mas também, por que ele se mete a falar sobre psicologia sem entender nada do assunto?) 


Alguém poderia dizer: "Ah, mas naquela época era diferente, a informação não era tão acessível. Os pensadores não tinham tudo ao alcance de um click". Não era assim não. Basta ler autores clássicos como Charles Darwin ou William James. A leitura desses autores é surpreendente no sentido que cada um deles revelava um conhecimento muito grande daquilo que outros pesquisadores da sua época e de épocas anteriores faziam e fizeram ao longo do tempo. A ciência sempre foi um rede altamente conectada e dinâmica. Apenas o turn-over era um pouco mais lento. Mas os pesquisadores estavam todos ligados uns nos outros. 


Vou dar dois exemplos: a) O segundo capítulo dos "Principles of Psychology" é sobre o cérebro. Você quer ler um sumário da neuropsicologia do Século XIX? Leia esse capítulo; b) Leia a "Expressão das  emoções nos animais e no homem" e veja as belíssimas fotos dos experimentos de Duchenne sobre a estimulação elétrica dos músculos faciais na mímica de emoções. Um dos maiores mistérios da ciência é o motivo pelo qual Darwin nunca citou Mendel. O Mendel teria resolvido o problema dele da transmissão dos traços hereditários de uma geração para outro. As informações são contraditórias. Já li que o artigo de Mendel teria sido, mas já li também que não teria sido, encontrando no meio da papelada do Darwin. Só Deus sabe. Parece que o Darwin era avesso à matemática...


Os pensadores e cientistas sembre estiveram ligados uns aos outros. Essa rede se chama alta cultura. Não transmitir conhecimento para as crianças pobres é barrá-las desse baile. Paulo Freire estava conectado em uma outra rede, cujos nós centrais eram Marx, Mao e Guevara. Não é à toa que seu conhecimento psicológico fosse muito rudimentar. Não é à toa que sua produção "intelectual" possa ser considerada mais ideológica do que política. Não é à toa que os cânones da Matrix Freireana não possam ser problematizados. Em educação, tudo pode e dever ser problematizado. Menos os cânones da Matrix. Ai de quem ousar...


Aí vem o argumento da alínea b): "Quem é você para criticar o Paulo Freire, o pesquisador brasileiro mais influente?  O que você leu do Paulo Freire?". Felizmente não li nada. Como me atrevo, então a falar? A minha estratégia foi a seguinte. Como eu não agüentava ler o Paulo Freire, pedi a um aluno que fizesse um resumo pra mim. Esse aluno, que não deve ser nomeado sob pena de se transformar em alvo de ira, escreveu um capítulo, o qual será publicado brevemente. O que eu sei de Freire está ali.


O que me autoriza, entretanto, a problematizar o Freire é que eu li e leio outros autores esquerdistas. O critério pra mim é o seguinte: o cara não pode ser energúmeno nem intelectualmente desonesto. Recentemente, andei lendo umas coisas muito interessantes do Antonio Gramsci. A comparação entre o Freire e o Gramsci é muito ilustrativa. O primeiro era apenas um comunista, o segundo um grande pensador, apesar de comunista.


A minha curiosidade pelo Gramsci foi suscitada por uma citação de E. D. Hirsch Jr., em um artigo que vale a pena ser lido.  O artigo se intitula "Why traditional education is progressive?" e pode ser lido aquiA história do Hirsch é a seguinte. Agora ele está com 90 anos e ativo. É um dos principais psicólogos educacionais americanos. Defende a tese de que a principal função da educação é transmitir conhecimento. Defende a tese de que privar as crianças pobres de  conhecimento é um mecanismo de dominação de classe. Acusam o Hirsch de ser direitista. Ele não é direitista não. Acontece que o Hirsch é um daqueles comunistas "old school", do tempo em que marxistas estavam mais preocupados com a infra- do que com a super-estrutura. Qual não foi a minha surpresa, portanto, quando, ao ler o Hirsch, me deparei com a seguinte citação do Gramsci:


O novo conceito de escolarização está em sua fase romântica, em que a substituição dos métodos “mecânicos” pelos “naturais” tornou-se exageradamente doentia ... Anteriormente, os alunos pelo menos adquiriam certa bagagem de fatos concretos. Agora não haverá mais bagagens para colocar em ordem ... O aspecto mais paradoxal de tudo isso é que esse novo tipo de escola é preconizado como democrático, embora na verdade esteja destinado não apenas a perpetuar as diferenças sociais, mas a cristalizá-las em complexidades chinesas (Gramsci, 1932, Cadernos do Cárcere, XXIX).


Fiquei intrigado com o contraste oferecido por essa citação com as concepções contemporâneas (neomarxistas, neo-colonialistas, pós-modernas etc.) de que a alta cultura não passa de um sistema de dominação ideológica e de que a missão da educação é transformar a realidade fabricando "justiça social". (Nem que seja às custas de genocídio...) Parece que, ao invés de tirar Shakespeare e Dante do currículo, Gramsci estava mais interessado em garantir que a classe operária também tivesse acesso a esse paraíso da alta cultura.


Será que é assim mesmo? Fui conferir no original. Podem me acusar de tudo, menos de ser preguiçoso para ler. Ler, dar aulas e tentar escrever são as coisas que, realmente, faço com gosto. (Além de atender consultas...) Dois textos do Gramsci sobre educação - "A organização da educação e da cultura" e "Em busca do princípio educacional" - estão disponíveis aqui. Vale a pena a leitura. O contraste com o Paulo Freire é brutal.


Antes de ir adiante, é preciso fazer uma advertência. Aquele mesmo aluno, que me me desemburrou do Paulo Freire, me advertiu: "Tenha cuidado. O Gramsci é outro desses caras que uma hora fala uma coisa e outra hora fala outra. No patuá deles, isso se chama dialética". Vamos, finalmente, às conclusões que eu cheguei.


Como bom dialeticista, Antonio Gramsci cultivava visões contraditórias sobre a educação. Por um lado, ele identificava a escola como um aparelho de dominação estatal. Ou seja, como um moedor de carne com a função de reproduzir as relações de classe vigentes na sociedade. Essa é a perspectiva predominante de autores como Paulo Freire e da escola de "pensamento" pós-colonialista. A educação é uma forma discursiva intrinsecamente opressora e conducente à reprodução de relações de dominação entre homens e mulheres, straits and gays, negros e brancos, colonizadores e colonizados. 


Segundo a perspectiva pós-moderna, a alta cultura é intrinsecamente perversa. Não deve ser o business da escola permitir que os garotos da favela acessem a alta cultura. Ao contrário, seguindo Freire, a perspectiva pós-moderna considera que não existem saberes superiores ou inferiores, apenas saberes diferentes. Considera que os diferentes saberes dos oprimidos precisam não apenas ser respeitados, mas também cultivados e, em última instância, devem substituir o saber perverso do macho branco opressor.


No fundo, no fundo, o Gramsci é o culpado isso. Foi ele que fundou o neomarxismo. Até Gramsci, os marxistas se ocupavam apenas em lutar para apoderar-se da infra-estrutura econômica. Gramsci teve o insight brilhante de que poderia ser muito mais eficiente tomar conta do mundo pela superestrutura ideológica. Gramsci foi o pai da guerra ideológica que nos divide atualmente. Gramsci foi o pai da idéia de que os intelectuais orgânicos do Partido deveriam se infiltrar e tomar conta da superestrutura ideológica. Infiltraram-se por todo o lado, mas principalmente tomaram conta da imprensa e da educação. Hoje mandam na internet e policiam o nosso pensamento.


Mas, como falei acima, Gramsci era um dialeticista. Ele conseguia ver os dois lados de uma questão. O outro lado diz respeito ao fato de que o acesso à alta cultura era o caminho para a formação dos intelectuais orgânicos do Partido. A escola é a única chance de o menino da favela acessar a alta cultura e ser alguém na vida... ou servir ao Partido. 


O contraste entre o Paulo Freire e o Antonio Gramsci é brutal. Se o Freire é o pesquisador brasileiro mais considerado internacionalmente, dá pra entender perfeitamente porque a nossa reputação não é das melhores. A palavras "scholarship" é uma das minhas prediletas em inglês. Scholarship tem dois significados principais. Pode se referir a uma bolsa de estudos, ou pode se referir à erudição, a hábitos de honestidade intelectual, de considerar todos os ângulos de uma questão, de correr atrás de toda informação necessária antes de emitir um juízo. Em alemão o pessoal fala em "Bildung" (cultura, formação, erudição) ou "gebildet sein" (ter uma cultura pessoal). É isso. O que sobrava ao Freire em arroubo ideológico, faltava em "scholarship". Pera aí? Talvez ele fosse mais um coitadinho, mais um barrado do baile da alta cultura. Talvez não tivesse "scholarship" sob a forma de bolsa de estudos. Pouco provável. Seu pai era capitão da PM e ele estudou direito na então Universidade do Recifem atual UFPE. Deve ter passado mais tempo no centro acadêmico do que na biblioteca.


P. S. Se você chegou até o final desse "textão", merece um confortinho:




Sunday, November 01, 2020

NEUROTOPOGRAFIA DAS EMOÇÕES: Como mapear as emoções no cérebro?

A localização dos processos emocionais no cérebro é um problema bem complexo, que ficou mais complicado ainda após o advento dos métodos de neuroimagem funcional. Van Essen (2009) revisou 1300 estudos sobre neuroimagem funcional e identificou 39600 focos de ativação no cérebro, acesos por diversas tarefas cognitivas e emocionais. Considerando essa barafunda, será que é possível localizar a percepção, experenciação e expressão emocionais no cérebro? Por incrível que pareça, a resposta é afirmativa. E por mais incrível ainda que possa parecer a velha sistemática do diagnóstico topográfico em 

Como mapear as emoções no cérebro? Ainda bem que tem um caminho. Podemos recorrer ao velho modelo de localização cerebral para mapear as emoções no cérebro (vide mais detalhes em Haase et al., 2008) e Haase et al., 2010 – ambos disponíveis para download). Basicamente, o argumento é que o diagnóstico topográfico em neuropsicologia depende de um “sistema nervoso conceitual” (Hebb, 1955). Ou seja, de um modelo da estrutura funcional do cérebro. A complexidade das correlações anátomo-clinicas pode ser reduzida a um sistema de três eixos, levando em consideração a geometria do cérebro e a sua origem filo- e ontogenética. No eixo látero-lateral, são implementadas as funções executivas no pólo anterior e as funções perceptuais e representatcionais no pólo posterior. No eixo látero- lateral podem ser diferenciadas as funções analíticas do hemisfério esquerdo e as funções holísticas do hemisfério direito. Finalmente, no eixo vertical são diferenciadas as patologias corticais e as patologias subcorticais (causadas por comprometimentos dos sistemas de projeção difusa ascendente, dos núcleos da base e da substância branca).

O sistema proposto por Talairach para a neuroimagem, representa as localizações cerebrais em um espaço definido por três coordenadas. O espaço de Talairach é uma das alternativas disponíveis para formalizar a localização cerebral na estereotaxia e ressonância magnética. O diagnóstico de localização nos três eixos cartesianos tem uma longa tradição em neurologia e neuropsicologia (Luria, 1980, Figura 1). Além da distinção entre o hemisfério esquerdo e o direito, Luria chamou atenção para a separação entre o sistema de projeção ascedente (primeira unidade funcional) e o sistemas corticais posterior (segunda unidade funcional) e anterior (terceira unidade funcional).


Figura 1 - Sistema de três eixos para o diagnóstico topográfico em neuropsicologia. O eixo vertical diferencia: a) lesões corticais manifestadas por meio de síndromes neuropsicológicas clássicas como afasia, apraxia, agnosia, amnésia e assim por diante; b) comprometimentos subcorticisl caracterizados por lentidão psicomotora, déficit no funcionamento executivo. O eixo ântero-posterior diferencia: a) dificuldades  anteriores associadas a déficits na autorregulação e motilidade; b) deficiências posteriores de natureza perceptiva e representacional. Por fim, no eixo látero-lateral, são diferenciadas: a)  disfunções no hemisfério esquerdo associadas a depressão, déficits no controle motor e dificuldades com os aspectos fonológicos e sintáticos da linguagem; b) disfunções no hemisfério associadas com desregulação emocional, aprosodia e dificuldades no processamento discursivo (cf. Sbicigo et al., 2016).

Contemporaneamente o sistema de três eixos foi refinado através de duas dimensões adicionais (Figura 2). A dimensão ventral-dorsal contempla, no pólo hemisférico posterior, a distinção entre sistemas voltados para o processamento da identidade dos objetos/eventos e sistemas encarregados na localização dos objetos/eventos em um referencial espaço-temporal (Mishkin et al., 1983, Rizzolatti & Matteli, 2003). A quinta dimensão recentemente descoberta diz respeito à dicotomia entre as regiões mediais e laterais dos hemisférios cerebrais. Os estudos de neuroimagem funcional indicam que as áreas corticais hemisféricas laterais são ativadas quando a atenção se volta para os objetos físicos e para o ambiente externo. As áreas hemisféricas mediais, por outro lado, são ativadas em tarefas que requerem um foco atencional interior, no self e nas interações sociais (Lieberman, 2007). As áreas mediais dos hemisférios cerebrais, principalmente o cíngulo anterior e o precuneus, fazem parte do padrão default de ativação cerebral, o qual é relevante para a capacidade de insight (Andrews-Hanna et al., 2014, Gusnard & Raichle, 2001).

Figura 2  - Sistema de cinco dimensões para diagnóstico topográfico em neuropsicologia. O diagnóstico de localização tradicional compreende três eixos: vertical, ântero-posterior e látero-lateral (ver Figura 1). Duas dimensões são adicionadas: uma ventro-dorsal e uma médio-lateral. As deficiências dorsais são caracterizadas por déficits na referência espaço-temporal do comportamento e por disfunções de processos cognitivos descontextualizados, como memória de trabalho e inteligência geral. Os déficits decorrentes de lesões ventrais comprometem o reconhecimento da identidade de estímulos, aatribuição de valor hedônico e e autorregulação emocional. As disfunções da superfície lateral dos hemisférios cerebrais afetam o engajamento da atenção no mundo exterior, enquanto as disfunções mediais comprometem a cognição pessoal e social.

A dicotomia entre sistemas ventrais e dorsais também se aplica no pólo hemisférico anterior, sendo relevante para o comportamento emocional e transtornos psiquiátricos (Giaccio, 2006). Segundo Sanides (1969), o córtex cerebral se origina de dois meios primitivos, um sistema paleocortical com epicentro na amígdala e outro arquicortical com epicentro no hipocampo. Análises teóricas conduzidas por Tucker e colaboradores sugerem que os dois sitemas, amigdaliano-ventral e hipocampal-dorsal podem estar associados a distintos padrões funcionais e disfuncionais com relevância para a psiquiatria (Luu & Tucker, 1998, Tops et al., 2014, Tucker et al., 1995).

O sistema ventral, focalizado na amígdala, tem origem paleocortical, é lateralizado para a a esquerda, modulado pela dopamina e funciona principalmente através de feedback (Tucker et al., 1995). De outra parte, o sistema dorsal, centrado no hipocampo, tem origem arquicortical, é lateralizado para a direita, modulado pela noradrenalina e funciona basicamente por feedforward. O sistema ventral é adaptado para funcionar de modo contínuo, reativo às contingências enquanto o sistema dorsal adaptous para funcionar de modo proativo, antecipando contexto e indicando necessidade de mudar de estratégia. Segundo essa perspectiva o córtex cingular anterior, que tem origem embrionária, mista constitui uma importante instância regulatória, monitorizando os padrões de atividade, detectando e corrigindo erros, bem como auxiliando na seleção da melhor estratégia de enfrentamento (Giaccion, 2006).

Referências

Andrews-Hanna, J. R., Smallwood, J., & Spreng, N. (2014). The default network and self- generated thought: component processes, dynamic control, and clinical relevance. Annals of the New York Academy of Sciences, 1316, 29–52,

Giaccio, R. G. (2006). The dual origin hypothesis: an evolutionary brain-behaivor framework for analyzing psychiatric disorders. Neuroscience and Biobehavioral Reviews, 30, 526-550.

Goldman-Rakic, P. (1994). In A. M. Thierry, J. Glowinski, P. S. Goldman-Rakic, & Y. Christen (eds.) Motor and cognitive functions of the prefrontal cortex. The issue of memory in the study of prefrontal function. (pp. 112-121). Berlin: Springer.

Gusnard, D. A,, & Raichle, M. E. (2001). Searching for a baseline: functional imaging and the resting human brain. Nature Reviews Neuroscience, 2, 685-693.

Haase, V. G., Medeiros, D. G., Pinheiro-Chagas, P., & Lana-Peixoto, M. A. (2010). A "conceptual nervous system" for multiple sclerosis. Psychology & Neuroscience, 3, 167- 181 (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-32882010000200006).

Haase, V. G., Pinheiro-Chagas, P., Gonzaga, D. M., Mata, F. G., Lopes-Silva, J. B., & Géio, L. A. (2008). Um sistema nervoso conceitual para o diagnóstico neuropsicológico. Contextos Clinicos, 1, 125-138 (http://revistas.unisinos.br/index.php/contextosclinicos/article/view/5485).

Hebb, D. O. (1955). Drives and the CNS (Conceptual Nervous System). Psychological Review, 62:243-254.

Lieberman, M. D. (20017). Social cognitive neuroscience: a review of core processes. Annual Review of Psychology, 58, 259-289.

Luria, A. R. (1980). Higher cortical functions in man (2nd ed.). New York: Basic Books.

Luu, P., & Tucker, D. M. (1998). Vertical integration of neurolinguistic mechanisms. In B. Stemmer & H. A. Whitaker (eds.) Handbook of neurolinguistics (pp. 150-172). San Diego: Academic.

Mishkin M., Ungerleider, L. G., & Macko K.A. (1983): Object vision and spatial vision: ‘two cortical pathways. Trends in Neurosciences, 6, 414-417.

Rizzolatti, G., & Matelli, M. (2003). Two different streams form the dorsal visual system: anatomy and functions. Experimental Brain Research, 153, 146-157.

Sanides, F. (1969). Comparative architectonics of the neocortex of mammals and their evolutionary interpretation. Annals of the New York Academy of Sciences, 167, 404-423.

Sbicigo, J.B., Piccolo, L. R., Becker, N., Vedana, S. N., Rodrigues, J. C., Salles, J. R. & Haase, V. G. (2016). Current perspecties on the anatomo-clkinical method in neuropsychology. Psychology & Neuroscience, 9, 198-214.

Tops, M., Boksem, M. A. S., Luu, P., & Tucker, D. M. (2010). Brain substrates of behavioral programs associated with self-regulation. Frontiers in Psychology, 1, 152 (doi: 10.3389/fpsyg.2010.00152).

Tucker, D. M., Luu, P., and Pribram, K. H. (1995). Social and emotional self-regulation. Annals of the New York Academy of Sciences, 769, 213–239.

van Essen, D. (2009). Lost in localization - But found with foci? NeuroImage, 48, 14-19.


Thursday, October 29, 2020

A INSTRUÇÃO É O ATALHO PARA A GENERALIZAÇÃO

Terminei de ler um artigo muito interessante sobre a pedagogia natural, escrito por dois psicólogos evolucionários húngaros (Csibra & Gergely, 2009). O artigo está disponível gratuitamente no Google Scholar. A hipótese evolucionária é que a pedagogia - ou seja, os esforços ostensivos para ensinar as crianças, para transmitir conhecimento - é uma estratégia evolutivamente estável.

A instrução é o atalho para a generalização.

Na interação direta com o mundo - leia-se "aprendizagem por descoberta" - a criança aprende indutivamente através da detecção de regularidades estatísticas (aprendizagem bayesiana). Sob essas circunstâncias, pode ser bem complexo generalizar a partir de um contexto específico, criando conhecimento genérico, abstrato e contextualmente inespecífico.


A comunicação ostensiva (instrução) por parte de um adulto é um atalho para a generalização. A instrução dá um by-pass em horas de aprendizagem levando a

diretamente à abstração. Uma instrução sinaliza para uma criança que um determinado referente não se aplica apenas a uma situação específica, mas se reveste de um significado genérico.


Dizer que a pedagogia é uma estratégia evolutivamente estável significa que o cérebro do adulto é hardwared para usar o cérebro da criança é hardwired para fazer o melhor uso possível desse transmitido.


Csibra e Gergely (2009) revisam evidências experimentais de que o cérebro do bebê é programado para a) conferir atenção preferencial a sinais ostensivos por parte do adulto, b) conferir significado referencial mais amplo aos objetos e eventos que são ostensivamente sinalizados pelo adulto e c) interpretar e codificar preferencialmente a comunicação referencial-ostensiva do adulto como conhecimento generalizável.


As crianças aprendem muita coisa observando e explorando as situações concretas. Nesses casos, entretanto, é difícil fazer generalizações. Na imitação, uma criança precisa inferir relações de meios e fins entre o comportamento do modelo e os objetivos alcançados. Na exploração, uma criança procede por tentativa e erro até que algum comportamento seja reforçado. A instrução é a via régia para a generalização. A auto-instrução pela leitura deveria ser o objetivo da educação escolar.


Além de ser capaz de aprender bayesianamente, detectando regularidades estatísticas e induzindo generalizações a partir de casos particulares, o cérebro humano é programado para instruir e aprender generalizações de modo mais direto, rápido e eficiente pela instrução. A instrução é o atalho para superar o contexto imediato, para ir além do aqui e do agora. Uma pedagogia que negligencia a instrução negligencia a estratégia evolutivamente estável que constitui a nossa cultura. Uma pedagogia que negligencia a instrução é uma antipedagogia. Algumas coisas são tão óbvias, que as pessoas acabam esquecendo.


Referência

Csibra, G., & Gergely, G. (2009). Natural pedagogy. Trends in Cognitive Sciences, 13 (4), 148-153.



Sunday, October 25, 2020

A GUERRA DA LEITURA CONTINUA


Estamos próximos da publicação do Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (RENABE). Vocês não perdem por esperar. O RENABE vai bombar. Foi redigido por um grupo de pesquisadores brasileiros dos mais destacados na área de alfabetização, coordenados pelos Profs. Renan Sargiani e Josiane Toledo. O RENABE sistematiza a fundamentação científica e procurar estabelecer diretrizes consensuais que fundamentam a Política Nacional de Alfabetização proposta pelo Prof. Carlos Nadalim. Tive a honra de contribuir revisando a conexão entre desenvolvimento da literacia e numeracia. 


Nesse meio tempo, enquanto o RENABE não vem, vou dar a dica de um artigo muito interessante de Susan Brady (2020), publicado no início do ano. A guerra da leitura continua. Não morre nunca. Parece a Hidra. De um lado os proponentes de uma alfabetização baseada em evidências, enfatizando a instrução explícita no princípio alfabético (conhecimento das letras, dos sons das lertras, relações entre letras e sons, consciência fonêmica etc.). A ciência da leitura foi e continua sendo muito influenciada pela visão simples da leitura. Ou seja, de que a decodificação visual das palavras isoladas é um pré-requisito importante para a compreensão leitora.


Do outro lado tem o povo pedagógico que considera ser a leitura uma habilidade natural do ser humano, um desenvolvimento da linguagem oral, a qual é adquirida de forma contextualizada e significativa. Se essa teoria fosse verdadeiras, todas as crianças de todas as culturas aprenderiam a ler. Não haveria necessidade de professoras. E os consultórios dos neuropsicólogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos se esvaziariam. Os consultórios desses profissionais todos são movidos pelo fracasso da instrução.


Legenda: Adulto tentando "ensinar" a criança a ler, no contexto e um relacionamento muito significativo, com muito carinho e consideração pelo significado, mas sem explicar para a criança como é que o código escrito funciona.


É difícil entender o porquê da oposição ferrenha contra a ciência da leitura. Suspeito que as razões sejam ideológicas. Uma corrente hegemônica está mais interessada em doutrinar do que em instruir. Brady (2020) não fala nada sobre isso. Mas ela aponta três estratégias de resistência contra a ciência da leitura: a) Corpo mole (“tokenism”), que consiste em fazer de conta que está adotando a prática baseada em evidências mas continua tocando o businesse as usual; b) Bloqueio à formação, que consiste em privar os graduandos de pedagogia do acesso à metodologia científica; c) Co-optação e distorção, que consiste em criar uma nova terminologia, supostamente incorporando evidências e/ou distorcer as afirmações ou fatos. Vale a pena ler esse artigo.


Não sei dizer qual é a estratégia mais perniciosa. Mas todas elas são usadas no Brasil. A BNCC faz de conta que incorpora as evidências científicas, mas continua no rame-rame. O bloqueio à ciêncian os cursos de pedagogia é feroz. As distorções talvez sejam o aspecto mais nefasto. A discussão sempre é levada para o lado da política. De um lado tem a turma do Mal, os. Cientistas malignos que são contra a educação pública, gratuita e de qualidade e defendem a privatização do ensino, elitização etc. Do outro lado, os ungidos pelo Bem, discípulos do patrono do analfabetismo funcional brasileiro.


A estratégia de distorção é periodicamente empregada na pedagogia. Em 2004, Richard Mayer chamou a atenção para o fato de que a história da pedagogia nos últimos cento e poucos anos pode ser descrita como a proposição de uma doutrrina romântica, “progressista”, a qual é invariavelmente refutada pelas evidências, mas como a Hidra, insiste em renascer sob os mais diversos nomes. Muda-se o rótulo, o vinho continua sempre o mesmo. E a guerra da leitura não termina.





REFERÊNCIAS


Brady, S. (2020). Strategies used in education for resisting the evidence and implications of the science of reading. The Reading League Journal, 1 (1), 33-40.


Mayer, R. E. (2004). Should there be a three-strikes rule against pure discovery learning ?. American Psychologist, 59 (1), 14-19.


Saturday, October 24, 2020

QUEM CONTA UM CONTO, AUMENTA UM PONTO


Há um ano aconteceu a Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (CONABE). Os vídeos estão disponíveis no YouTube. A CONABE foi uma iniciativa inédita na educação brasileira. A CONABE reuniu especialistas do Brasil e do Mundo para discutir os fundamentos científicos de uma política nacional de alfabetização (PNA).


Eu trabalho com dificuldades de aprendizagem escolar desde 1978, quando fui estagiar nas enfermarias de neurologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Aprendi a fazer o Exame Neurológico Evolutivo (ENE). Aprendi também que tem um negócio chamado de dislexia do desenvolvimento. Só que, no Brasil àquela época era muito difícil identificar quem tinha e quem não tinha dislexia porque a qualidade do ensino oferecido era baixíssima. A maioria das crianças não se alfabetizava simplesmente porque não era ensinada a ler e a escrever. Faziam o quê na escola?

 

Lá já se vão mais de 40 anos. Não mudou nada. As crianças continuam não se alfabetizando na escola. Cansei de atender adolescentes de 15 anos que estavam concluindo o ensino fundamental e eram analfabetos. Quer dizer, esses jovens passavam de um ano para outro e... continuavam analfabetos. Aparentemente ninguém, professora, pedagoga, diretora etc.,  jamais havia se preocupado em alfabetizá-los.

 

Nesses 40 anos nenhum governo tentou fazer qualquer coisa para alfabetizar as crianças brasileiras. Ao contrário. Parece que estavam mais interessados em doutrinar ideologicamente as crianças do que ensinar-lhes a ler, escrever e fazer contas. Nesse meio tempo o Paulo Freire foi nomeado patrono do analfabetismo funcional brasileiro. Esse processo todo culminou na famigerada BNCC, que abriu mão, explicitamente, de alfabetizar as crianças.

 

Até que, em 2019 foi lançada a Política Nacional de Alfabetização, seguida da CONABE, para consolidar sua fundamentação evidenciaria. Tive a honra de participar da CONABE junto com colegas ilustres de diversas partes do Brasil e do mundo. Em 40 anos, nenhum governo havia me perguntado o que eu achava ou deixava de achar sobre educação. Apesar de eu descascar na clínica o abacaxi resultante do fracasso da pedagogia brasileira.

 

A partir da CONABE foi criado um grupo de trabalho que trabalhou intensamente durante um ano e redigiu um documento denominado Relatório Nacional de Alfabetização Baseado em Evidências (RENABE). O RENABE será divulgado nas próximas semanas. Aguardem. Alguns dos melhores especialistas do Brasil deram o melhor de si para revisar a literatura empírica e procurar estabelecer algumas diretrizes consensuais, fundamentadas em evidências. Como diz o nome.

 

Certamente, a PNA, CONABE e o RENABE podem e devem ser criticados. Certamente poderiam ser melhores e deverão ser aperfeiçoados. Mas foi o que conseguimos fazer, por enquanto. Já foi muito. Considerando que não havia nada. Ao menos nada sério e cientificamente fundamentado.

 

Críticas sempre são bem vindas. O only game in town na ciência digna do nome é buscar evidências contraditórias,  falsificando hipóteses e modelos teóricos. Mas muitas críticas são injustas, destrutivas e revelam mais o despeito dos seus formuladores. Revelam a inveja sentida pelos que não fazem nada têm de alguém que faz algo, por mais modesto que esse algo seja.

Uma das críticas (injustas) foi de que a ênfase na alfabetização preconizada  pela PNA, supostamente, reduziria o “letramento” ao método fônico. A realidade demonstrou que essa crítica era desonesta. Foram criados os programas Tempo de Aprender e Contapra Mim. O programa Tempo de Aprender oferece formação continuada remota para professores do ciclo de alfabetização. Que eu saiba, mais de 4000 municípios já aderiram de forma voluntária e algumas centenas de milhares de professores cursaram o programa.

 

Mas quero conversar aqui sobre o Conta pra Mim. As evidências científicas sobre aquisição de literacia e numeracia se acumulam avalassadoramente mostrando a importância das atividades culturais informais na família para a educação. As atividades de contar histórias para as crianças pequenas talvez não sejam tão importantes para aprender a ler as palavras. Mas são fundamentais para adquirir vocabulário e desenvolver os esquemas textuais que permitem a compreensão leitora. E, portanto, a habilidade de aprender pela leitura.

 

Conheço os colegas e colaboraram na elaboração do Conta para Mim e li muitos dos documentos. O negócio é genial. É um ovo de Colombo, no sentido de que é algo muito simples que ninguém havia feito antes. E tudo isso foi feito em menos de dois anos. Quer dizer, muita gente teve oportunidade de fazer alguma coisa durante mais de 30 anos. Desde a Constituição de 1988. E não fez nada.

 

Daí alguém faz muito em dois anos e vêm as críticas maldosas e invejosas. Como a crítica de que a PNA reduziria a literacia ao método fônico não se sustentou mais no momento em que apareceu o Conta pra Mim, a alternativa foi criticar este último. Um grupo de mais de 3000 daqueles “especialistas” que frequentam os programas da Globolixo resolveu criticar o Conta pra Mim porque o programa adapta as histórias.

 

Essa é outra crítica burra, daquelas que acaba virando tiro no pé. Vejamos. Antes o governo não fornecia nada e agora está fornecendo histórias adaptadas. Qual é o pó? Será que só se pode adaptar histórias para torná-las politicamente corretas e afinadas com o ideário esquerdista?

 

Mas, adaptar histórias constitui um problema em si? Claro que não sou nenhum especialista em literatura infantil. Graças a Deus. Não preciso usar a linguagem empolada dessa gente, cheia bakhtinismos e foucaltismos. Mas eu sei o suficiente para me dar conta de que isso é uma cretinice. Sei que quem conta um conto, aumenta um ponto. Vejam o caso das centenas de versões dos mitos gregos. Sei também que a defesa do literalismo textual se reveste, em grande parte, de uma dose de totalitarismo cultural, de cerceamente da própria atividade literária.

 

Sei também da minha experiência pessoal. Que nesses tempos de relativismo cultural, interseccionalismo e subjetivismo narcisista parece ser a única que conta. Lá na Colônia, onde me criei, não tinha muito acesso à Literatura. Em Tuparendi não tinha nem banca de jornais, quanto mais livraria. Em Santa Rosa tinha uma banca de jornais e um bazar chamado Organizações Ypiranga. Eu lia o que me caia nas mãos.

 

Comecei lendo o Monteiro Lobato, que havia sido a iniciação da minha mãe. Meu pai era da época da Seleta em Prosa e Verso. Até eu precisar estudar de verdade para o Admissão ao Ginásio, nas vésperas das provas eu me deitava na rede e lia a Aritmética da Emília, Emília no País da Gramática, Geografia de Dona Benta, História do Mundo para Crianças etc. No Admissão ao Ginásio acabou a farra. Tive que ralar pela primeira vez.

 

Eu adorava ler umas adaptações de diversos tipos de livro de folclore, literatura, história etc., os quais misturavam texto com história em quadrinhos. Primeiro eu lia as histórias em quadrinho. Ficava curioso. Queria mais. O recurso então era ler o texto. Lembro-me de um livro sobre o Júlio César. Aprendi que, às margens do Rubicão, ele teria dito “Alea jacta est”. Durante meses o Júlio César foi meu herói. Foi assim também que tomei conhecimento da História em duas Cidades. Foi muito mais tarde que descobri que o Edmund Burke havia sentido um horror semelhante ao meu com as atrocidades cometidas na Revolução Francesa. e em todas que vieram depois, emendo eu.Também ia com as amigas da minha irmã ler fotonovelas, tomar coca-cola e comer sonhos no Bar do Roos. Deve ter sido lá que começou a minha ceva.

 

Um advogado amigo do meu pai, o Dr. Ney Goulart, morava em Santa Rosa. Nós éramos fascinados com os filhos dele, Maria Clarice e José César. Eles eram um pouco mais velhos do que eu e meus irmãos e tinham uma turma mais urbana de amigos. Envolviam-se com atividades diferentes daquelas usuais lá no mato e na roça de Tuparendi. O José César tinha muito orgulho de uma coleção de livros de detetives que ele guardava no fundo do seu guarda-roupa. Os mais cobiçados eram os da Brigitte Monfort. Eu pegava emprestado e lia um depois do outro. Eram proibidos para menores de 16 anos. Evidentemente, àquela época eu ainda estava longe dos 16. Isso só redobrava o prazer.

 

Houve um sábado que estávamos numa festa de aniversário na Casa da Maria Clarice e do José César. Não sei porque cargas d’água fui lá no Ypiranga. No mostruário tinha um o Livro de Ouro da Mitologia, de Thomas Bulfinch. Eu já tinha lido o Monteiro Lobato. Meu preferido eram os Doze Trabalhos de Hércules. Comecei a folhear o livro. Fiquei doidinho. Voltei correndo para a festa e pussuqueei a minha mãe até ela convencer o meu pai a me dar o dinheiro para comprar o livro. Fiquei vários meses envolvido e fantasiando com o Livro de Ouro da Mitologia. Foi um achado.

 

Tinha também as coleções de folhetos da Abril Cultural: Os Imortais da Literatura Universal; Personagens da Nossa História; Grandes Personagens da História Universal. A Abril Cultural também contribuiu para educar o meu gosto musical através dos Grandes Compositores da Música Clássica, As Grandes Óperas, História da Música Popular Brasileira. Foi daí que peguei a mania da ópera.

 

Até eu ir para Porto Alegre, estudar no Anchieta, esse era o meu viver. Esse era o meu ler. No Anchieta pude conviver com jovens de famílias muito mais intelectualizadas do que a minha. Tive oportunidade de me fascinar com as aulas de literatura do Prof. Cláudio Moreno. Aprendi que tinha um mundo da cultura superior, ao qual eu não tinha acesso lá na Colônia. Aprendi que, para além do gosto, havia critérios para avaliar a qualidade literária de uma obra. Havia uma hierarquia no panteão. Virei freguês das livrarias do Globo, Kosmos, Sulina, Lima e Palmarinca. Virei freguês das atividades culturais do Instituto Goethe e dos concertos e recitais da ProArte e OSPA. Virei rato de cinemateca.

 

Descobri que tinha um monte de coisa a cujos originais eu não havia tido acesso. Descobri que tinha muito mais coisa para ler do que eu sonhara. Foi uma epifania. O estado anterior a essa epifania provavelmente era muito semelhante ao de uma adolescente vinda no interior de Minas que atendi.

 

A menina foi encaminhada por suspeita de “dislexia” e “TDAH”. Conversei com os pais e fiquei fascinado quando fui conversar com ela. Ela era uma gracinha. Falava pelos cotovelos e lia tudo que lhe caísse nas mãos. Seu discurso era encantador. Revelava uma compreensão parcial do mundo, pueril, ingênua porém oriunda das suas reflexões mais profundas. Genuína. Não tive como não me identificar profundamente com ela. Solicitei um teste de QI e deu na tampa: 145. A menina era super-dotada e lascaram o diagnóstico de “dislexia”, provavelmente porque muitas das suas convicções revelavam uma compreensão parcial da realidade, e “TDAH”, provavelmente porque tinha muito a dizer e falava pelos cotovelos.

 

Resumindo a ópera. Os jovens brasileiros recebem uma “educação” que quando consegue alfabetizá-los, produz analfabetos funcionais. Não conseguem compreender o que lêem e não conseguem usar a leitura para aprender. Porisso mesmo não adquirem gosto pela leitura e não vão pra frente na vida. Daí vem um povo e fica torcendo o nariz para um programa do governo que oferece uma oportunidade para as crianças adquirirem gosto pela leitura. Não passa de um bando de pernósticos que deseja, no seu mais íntimo, evitar que a plebe coma do biscoito fino da literatura.