Sunday, March 12, 2017

SOMOS TODOS RAROS

Ontem aconteceu no ICB-UFMG o VI Seminário do Dia Mundial das Doenças Raras de Belo Horizonte. Esse encontro ocorre todos os anos no dia 29 de fevereiro. Esse ano atrasou um pouco. O evento foi organizado pela Profa. Maria Raquel Santos Carvalho do Laboratório de Genética Humana e Médica (LGHM-UFMG) e pela Sra.  Juliana Oliveira, da Menkes Brasil e da Associação dos Familiares e Amigos dos Portadores de Doenças Graves (AFAG Brasil).

Foi um sucesso absoluto. O público foi muito maior do que esperávamos: mais de 400 pessoas. As apresentações foram de altíssimo nível e houve uma grande participação nos debates após as apresentações.




Um ponto alto foram as atividades escoteiras para as crianças e jovens com o Grupo Escoteiro 46 Lagoa do Nado. Agradeço muito aos chefes Mário e Igor pela colaboração. Adorei ouvir o Chefe Igor falando que os escoteiros investem na formação do caráter. Chega a ser emocionante ouvir alguém falando e se preocupando com o caráter das crianças e dos jovens nessa altura do processo de desconstrução civilizatória que vivenciamos. É  preciso coragem para acreditar em caráter e sair do armário. Parabéns aos escoteiros.
 

Vou comentar um poquinho sobre cada uma das apresentações.

Wagner Fulgêncio Elias, coordenador do núcleo de doenças raras da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais falou sobre os esforços da Secretaria de Saúde e do SUS no sentido de formular políticas específicas e aperfeiçoar a atendimento às pessoas com doenças raras. Estamos todos na expetativa da implementação de portaria do Ministério de Saúde que contempla o atendimento genético clinico e exames genético-moleculares pelo SUS.

A seguir, a Profa. Maria Raquel Carvalho, do Laboratório do LGHM-UFMG falou sobre a importância do diagnóstico e sobre a disponibilidade crescente e barateamento dos exames genético-moleculares. É crescente o número de doenças genéticas tratáveis, as quais precisam ser diagnosticadas o mais precocemente possível. Mesmo nos casos de doenças para as quais ainda não há tratamento específico, o diagnóstico é importante porque ajuda na prevenção e tratamento precoce das  morbidades associadas, além de ter um efeito psicológico incomensurável.  Além de montar e padronizar várias técnicas diagnósticas e de formar recurso humanos na sua utilização, a Profa. Raquel está trabalhando na análise custo-eficiência dos exames e no fluxograma ou árvore decisória para o diagnóstico. Os resultados indicam que, com o barateamento do custo dos exames, a sua implementação no SUS é perfeitamente viável e com alta sensibilidade e especificidade. As pesquisas da Profa. Raquel têm sido financiadas através do Program de Pesquisa para o SUS (SUS-FAPEMIG).

Os efeitos psicológicos da ausência de diagnóstico e da verdadeira via crucis que as pessoas precisam percorrer para conseguir um diagnóstico foram discutidos pela Profa. Eutênia Valadares, da Faculdade de Medicina da UFMG e do Hospital da Baleia. O diagnóstico é muito difícil, por várias razões. Porque os profissionais de saúde não conhecem as doenças raras. Porque o acesso a médicos geneticistas e exames genético-moleculares ainda não é dispensado pelo SUS. A Profa. Eugênia relatou os dados de uma pesquisa na qual mães de crianças com doenças genéticas foram entrevistadas. A história se repete: Todas elas relatam como foi difícil  estabelecer o diagnóstico, uma verdadeira batalha que exige muita energia e comprometimento, e como o diagnóstico correto é importante. É o diagnóstico que possibilita o aconselhamento. Muitos profissionais de saúde descuidam do processo de aconselhamenbto, desconsiderando a necessidade de avaliar o impacto do diagnóstico, a necessidade de informação precisa e as orientações necessárias para tratamento e prevenção de complicações.

Na seqüência eu falei sobre as necessidades de pesquisa e assistência na área psicossocial para as pessoas com doenças raras. O LND-UFMG está envolvido com o desenvolvimento de dois produtos com vistas à implementação de atendimento neuropsicológico às doenças raras no SUS. O Exame Neuropsicológico Inicial (ENI-UFMG) está sendo validado como um processo diagnóstico breve, que permite formular hipóteses sobre a maioria das condições neuropsicológicas relevantes em três sessões. O Programa de Treinamento de Pais visa aconselhar os pais quanto ao manejo da disciplina e foi discutido acima. Essas pesquisas têm sido financiadas através do Programa de Pesquisa para o SUS (SUS-FAPEMIG), ao qual somos muito gratos. Em colaboração com a Federação das APAES de Minas Gerais e da APAE de Belo Horizoonte, estamos realizando um curso semipresencial de neuropsicologia do desenvolvimento com dois anos de duração. Esse curso está capacitando 350 educadores das APAEs de todas as regionais de Minas Gerais nos conceitos dessa disciplina, no uso da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF-OMS) para a identificação das necessidades assistenciais dos alunos e família, bem como na implementação de programas de treinamento de pais. Agradecemos imensamente à comunidade da APAE pela oportunidade de ampliar a oferta de serviços numa escala demograficamente relevante. Esse trabalho está sendo possibilitado pela captação de recursos da iniciativa privada através de um programa de renúncia fiscal do Ministério da Saúde. O Estado Brasileiro possibilita diversos mecanismos pelos quais pesquisadores e entidades da sociedade civil podem ter acesso a financiamento com o intuito de implementar programas assistenciais e educacionais no âmbito de pesquisa, os contribuam com dados para a formulação de políticas de saúde efetivas.

A acadêmica de psicologia Myrian Silveira do Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimetno (LND-UFMG) falou então sobre a abordagem comportamental ao aconselhamento de pais. A maioria das doenças raras é de etiologia genética e compromete o sistema nervoso central causando deficiência intelectual. Um grande número dessas crianças e jovens apresentam problemas de  comportamento, principalmente relacionados à disciplina. A tendência de  pais e professores é de lidar com os problemas disciplinares através da punição. A punição é ineficiente e, no longo prazo, apenas agrava os problemas comportamentais. A psicologia desenvolveu estratégias eficientes para lidar com os problemas comportamentais através do incentivo, sem usar punição, promovendo e incentivando os bons comportamentos e a aquisição de habilidades. Isso é implementado sob a forma de uma terapia breve e denominada treinamento de pais. Através do trabalho cooperativo com a Federação das APAEs o LND-UFMG está formando profissionais aptos a implementar programas de treinamento de pais em todo o Estado de Minas Gerais.

A  terapeuta ocupacional Márcia da Nóbrega Rezende da Prefeitura de BH discorreu sobre a importância da terapia ocupacional no atendimento de pessoas com doenças raras. As doenças raras são crônicas e sistêmicas, exigindo assistência multiprofissional, na qal as aspectos psicossociais são cruciais. A terapia ocupacional dispõem de ferramentas para diagnosticar e promover a adaptação e desenvolvimetno no contexto das atividades da vida diária, das mais simples às mais complexas. Resolvendo assim problemas reais da vida e do desenvolvimetno no contexto real de vida da pessoa. Márcia é também mãe de um jovem com síndrome de Williams e apresentou um trabalho belíssimo, integrando sua formação e experiência profissional com sua experiência de mãe. Muito ilustrativo e inspirador.

A advogada Mariana Resende Batista discutiu então a questão do acesso a direitos constitucionais para pessoas com doenças raras. A falta de políticas públicas efetivas para o manejo das doenças raras faz com que muitas pessoas não tenham outro recurso senão recorrer à judicilização em busca da garantia dos seus direitos. Mariana mostrou o caminho da roça.

(Pessoalmente, eu considero esse fenômeno da judicialização um problema muito complexo. A judicialização certamente resulta do fato de que os cidadãos têm consciência de que o Estado não tem condições de lhes garantir os direitos assegurados pela Constituição. Os empecilhos resultam muitas vezes de descaso, burocaracia, ineficiência pura e simples e, freqüentemente de uma composição desses fatores. Frente a negativa face à demanda de um tratamento, o cidadão fica desorientado. É muito difícil julgar se a negativa se deve a descaso, razões econômicas ou, simplesmente pelo fato de que um certo tratamento não é eficiente ou apresenta efeitos colaterais inaceitáveis. Assim sendo, muitos pacientes obtém acesso ao uso de determinados medicamentos por meio de decisões judiciais. As pessoas incorrem então no risco de se submeter a tratamentos caros, desnecessários, ineficientes e, até mesmo, prejudiciais. Essa situação infeliz vai perdurar enquanto os cidadão não recuperarem a confiança nos agentes do Estado e nos profissionais des saúde. Temos um longo caminho pela frente e  a sociedade cifil organizada desempenha um importante papel nessa luta.)

Para encerrar, Juliana Oliveira, da Menkes Brasil e da AFAG Brasil falou sobre sua experiência de mãe de um menino que faleceu de doença de Menkes e como ativista na área das doenças raras. Juliana parte do pressuposto de que cada um tem uma missão da vida e que a morte não significa apenas uma perda, mas pode representar também o êxito de uma missão. Após o passamento de seu filho, Juliana tomou para si a missão de transmitir sua experiência e expertise adquiridas sofridamente no atendimento ao seu filho para outras famílias com a mesma doença e com problemas semelhantes. Um trabalho corajoso e admirável. Um exemplo de ativismo e associativismo. Foi um privilégio poder ouvir seu depoimento e testemunhar o seu trabalho e de outros companheiros de jornada na luta pelo reconhecimento e assistência às pessoas com doenças raras. Fico extremamente feliz de ver a sociedade brasileira se organizando em busca do atendimento das suas necessidades e garantia dos seus direitos. Precisamos de mais pessoas abnegadas como Juliana.

Seguiram-se as discussões, as quais contaram com uma participação muito ativa e interesse do público. A má nota foi dada por ativistas políticos que se infiltram em atividades da comunidade com o intuito de promover suas agendas partidárias. O repúdio da platéia foi geral, visível nas faces das pessoas e nas manifestações corajosas de muitos participantes, que expressaram verbalmente  seu repúdio a essas tentaivas de manipular a angústidas das famílias e das pessoas com doenças raras para fins político-partidários. O Brasil está cansado de partidos que ficam metendo o bedelho em tudo quanto é domínio da vida ou instituição, instrumentalizando as pessoas com o único intuito de promover agendas partidárias.

As discussões que se seguiram às apresentações foram uma bela oportunidade para conhecer e reconhecer o trabalho admirável de pessoas inteligentes, engajadas na agenda das doenças raras e com coragem e disposição para trabalhar e lutar.



Quando foi visitar os EUA no Século XIX, o sociólogo francês Alexis de Tocqueville ficou impressionado com o grau de associativismo da sociedade. O associativismo constitui uma medida de capital social. O VI Seminário do Dia das Doenças Raras de Belo Horizonte foi um belíssimo exemplo de como a sociedade brasileira está organizada e fazendo progressos no sentido de obter melhorias concretas para seus problemas de saúde. Trabalhando de forma copoperativa porém crítica com o Estado e com pesquisadores.

Como pesquisador, eu gostaria de encerrar essa notícia, sublinhando a necessidade de as associações da sociedade civil trabalharem cooperativamente com pesquisadores. As necessidades de pesquisa são imensas. As doenças raras são muitas. Poderão chegar a 11000 conhecidas no total nos próximos anos. Isoladamente elas são raras, em conjunto afestam até 8% da população. Cada doença se caracteriza por um perfil e necessidades específicas. Mas há necessidades assistenciais  compartilhadas pelas diversas doenças. Em um país caracterizado pela carência de recursos e ineficiência do estado, a cooperação entre associações e pesquisadores pode contribuir para fundamentar em evidências as demandas assistenciais e as políticas públicas. Além dos benefícios práticos e psicológicos, as associações podem constituir-se em veículo para arregimentar pessoas com doenças raras em número suficiente, de tal forma que suas necessidades possam ser melhor caracterizadas. Em maior ou menor grau, somos todos raros. Todos temos nossas mazelas. Mas, ao mesmo tempo, todos temos nossas fortalezas e a  organização e participação social e política é a nossa força.


AGRADECIMENTOS: As nossas pesquisas das quais resultaram os resultados apresentados na Royal Society foram conduzidas nos Departamentnos de Psicologia (VGH) e Biologia Geral (MRSC) e nos PPGs em Neurociências e Saúde da Criança e do Adolescente da UFMG (VGH) e Genética (MRSC) da UFMG, sendo financiadas pelo DAAD, CAPES, FAPEMIG (APQ-02755-SHA, APQ-03289-10, APQ-02953-14, APQ-03642-12), SUS, CNPq (308157/2011-7, 308267/2014-1). Os custos parciais da viagem foram financiados por uma bolsa de produtividade científica do CNPq (308267/2014-1). VGH também é afiliado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comportamento, Cognição e Ensino da UFSCAR (CNPq 465686/2014-1, FAPESP 2014/50909-8)


REFERÊNCIAS: Você quer se informar mais sobre a neuropsicologia e assistência psicossocial às doenças raras?


Haase, V. G. (2017). Por que se importar com as doençasraras? Neuropsicologia e Desenvolvimento Humano.


Haase, V. G.,& Prado, A. C. A. (2013). Doenças raras:associativismo, democracia e qualidade de vida. Síndromes, 3, 40-45.


Haase, V. G., Oliveira, L. F. S., Pinheiro, M. I. S., Andrade, P. M. O., Ferreira, F. O., de Reitas, P. M., Jaeger, A., & Teodoro, M. L. M. (2016). Como a neuropsicologia pode contribuir para a eeucação de pessoas comdeficiência intelectual e;ou autismo? Pedagogia em Ação


Sunday, March 05, 2017

POR QUE SE IMPORTAR COM AS DOENÇAS RARAS?

As doenças raras são definidas na Europa como aquelas que têm uma freqüência populacional menor do que 1/2000 (1/2500 nos EUA). Essas doenças são raras quando consideradas isoladamente. Em conjunto, entretanto, elas comprometem cerca de 5% da população. Então, acabam não sendo raras e constituem um problema significativo de saúde com relevância epidemiológica.

A importância demográfica das doenças raras cresce à medida que diminui a importância das doenças infecciosas e parasitárias mais tradicionais. Nos últimos séculos ocorreu uma transição epidemiológica. Com exceção das viroses emergentes, as doenças infecto-parasitárias não se revestem da importância que tinham antigamente. Em compensação, cresceu a importância das doenças crônicas. A maioria dessas doenças crônicas tem um componente genético na sua etiologia, inclui doenças raras entre suas causas e. como é incurável e multisintomática, exige tratamentos complexos, multidisciplinares e caros.

Um exemplo muito ilustrativo é o da prevalência da esclerose múltipla em alguns países em desenvolvimento como a Martinica. Há apenas algumas décadas, a esclerose múltipla era quase desconhecida na Martinica. A maioria da população era infestada, entretanto, por parasitas. À medida que as condições de higiene da população foram melhorando e a prevalência de doenças parasitárias diminuindo, foi aumentando a incidência e a prevalência de esclerose múltipla. Será que a melhoria das condições de higiene favorece o surgimento de doenças auto-imunes quando o sistema imune fica “desocupado” e não precisa mais lidar com parasitas?

A maioria das doenças raras é de causa genética, como p. ex., síndromes genéticas. Existem mais de oito mil doenças genéticas catalogadas. E uma maioria preponderante delas afeta o sistema nervoso. Isso causa deficiência intelectual, dificuldades de aprendizagem e problemas psiquiátricos, agravando a sua morbidade e impondo necessidades adicionais de cuidado de saúde e educação.



A pesquisa sobre doenças raras é muito importante também. O objetivo principal é, obviamente, desenvolver métodos diagnósticos e terapêuticos eficazes. Mas as doenças raras podem ser usadas como modelos para a compreensão dos mecanismos das doenças comuns. P. ex., muitas síndromes genéticas, tais como a síndrome de Turner, síndrome velocardiofacial e síndrome de Williams se caracterizam por dificuldades relativamente específicas na aprendizagem da matemática. Outras síndromes, tais como as  síndromes de Klinefelter e de Noonan se associam com dificuldades na linguagem e aprendizagem da leitura. O estudo dessas síndromes pode ser relevante então para a compreensão dos mecanismos neurocognitivos implicados na discalculia e dislexia do desenvolvimento.


DIAGNÓSTICO

O diagnóstico das doenças raras é difícil. A experiência relatada dos pacientes, em um grande número de casos, é de ficar sofrendo anos a fio e correndo atrás de um diagnóstico sem resultados. As razões para isso são múltiplas. Os profissionais de saúde, incluindo os médicos, não conhecem muito bem as doenças raras. As manifestações clinicas são multiformes, havendo fenótipos atenuados ou formas frustras que dificultam o seu reconhecimento. Como as doenças são raras, a maioria dos profissionais não tem experiência suficiente, de modo a levantar uma suspeita e encaminhar para um centro especializado.

Um problema adicional é o custo dos exames diagnósticos. O diagnóstico depende em um grande número de casos de exames genéticos, os quais costumavam ser caríssimos. Felizmente, essa situação está mudando. Os avanços na genética estão perimitidno o desenvolvimetno de técnicas de diagnóstico genético-molecular que possiblitam a identificação da etiologia de um número crescente de doenças a um custo progressivamente menor.

Muitos profissionais e até mesmo familiares não reconhecem a importância do diagnóstico. O raciocínio subjacente expressa um ceticismo quanto ao diagnóstico em função do fato de que, com algumas raras exceções, não há tratamentos específicos disponíveis.

Novamente, esse ceticismo é injustificado. É crescente o número de doenças genéticas raras que são tratáveis com razoável sucesso, tais como fenilcetonúria, síndrome de Turner, distrofia muscular progressiva tipo Duchenne, síndrome de Prader-Willi, mucopolissacaridoses etc. Os tratamentos podem, muitas vezes, não ser curativos. Mas fazem uma diferença para os pacientes e famílis. P. ex., antigamente os pacientes com Duchenne raramente sobreviviam até a terceira década de vida. Graças à introdução do uso de ventiladores durante a noite, é crescente o número de indivíduos com Duchenne que está chegado à quarta década de vida e com produtividade e qualidade de vida.

Mas o diagnóstico não é importante apenas para o tratamento. O diagnóstico é fundamental para o reconhecimento precoce e prevenção de complicações. Conhecido o perfil de complicações da doença, screenings periódicos ajudam no diagnóstico e tratamento precoce das complicações com melhores resultados.

A partir do diagnóstico surgem demandas por atendimento com a formação de grupos de pacientes e familiares com vistas à troca de experiências e auto-ajuda. Não menos importante é o fato de que para desenvolver e testar terapias os pesquisadores necessitam ter acesso a grupos grandes de pacientes. O que é notoriamente difícil no caso dessas doenças, justamente em função da sua raridade.

O diagnóstico é relevante também do ponto de vista psicológico. As pesquisas mostram que o diagnóstico pode ter impacto distinto sobre o funcionamento familiar, dependendo do momento em que é feito. O diagnóstico precoce, realizado p. ex. logo após o tratamento, quando a família não está esperando por um evento dessa natureza, pode ter efeitos devastadores. É muito importante, então, que os profissionais sejam cuidadosos na transmissão do diagnóstico, associando-o a aconselhamento e suporte psicológico.

Por outro lado, quando o diagnóstico é feito mais tarde, muitas vezes após anos de luta da família, correndo atrás de uma explicação para os dificuldades da criança, o diagnóstico pode ser recebido com alívio. Como se representasse uma espécie de certificado de que a mãe não é louca e que, sim, a criança tem uma dificuldade, a qual é conhecida e reconhecida.

O conhecimento do perfil de complicações associado a cada doença rara específica ajuda a família a desenvolver expectativas e antecipar problemas que podem ocorrer, inclusive do ponto de vista psicológico. Algumas doenças predispõem os indivíduos afetados a problemas psiquiátricos. As pesquisas mostram, entretanto, que os problemas podem, muitas vezes, ser prevenidos através de suporte psicológico, familiar e social adequado.

No planejamento educacional o diagnóstico desempenha também um papel fundamental. Muitas síndromes genéticas, p. ex., se se associam a perfis comportamentais e cognitivos específicos, os chamados fenótipos cognitivo-comportamentais. O conhecimento dessas manifestações fenotípicas ajuda as famílias e professoras a melhor compreender o funcionamento das crianças, ajustando os métodos disciplinares e pedagógicos conforme a necessidade. A desconsideração pelas características comportamentais típicas de muitas doenças pode levar à adoção de estratégias disciplinares coercivas, baseadas na punição, as quais podem agravar ao invés de aliviar as manifestações sintomáticas.

Assim, vemos que são vários os motivos pelos quais devemos nos importar com as doenças raras, seu diagnóstico e seu tratamento. A próxima questão é como estabelecer uma agenda para a assistência às doenças raras. Essa, obviamente, é uma questão complexa e eu não tenho a pretensão de oferecer soluções definitivas. Mas algumas necessidades e possibilidades podem ser apontadas. Elas passam quase que invariavelmente pela necessidade de mais pesquisa e de associação dos pacientes e familiares em grupos de interesse.


AGENDA POSITIVA

A primeira necessidade diz respeito ao diagnóstico. Os exames genético-moleculares não são mais tão caros quanto eram antes. Entretanto, não são cobertos pelo SUS. O SUS também não oferece serviços de médicos geneticistas especializados nessas doenças, que pudessem diagnósticar, aconselhar e tratar os pacientes e sua famílias. Uma maneira de melhorar essa situação passa pela auto-organização dos pacientes e familiares em grupos de lobby, com o intuito de pressionar as  autoridades, exigindo  que seus direitos constitucionais sejam assegurados.

A necessidade seguinte mais óbvia é de pesquisas para o desenvolvimento de terapias eficazes. O desenvolvimento e pesquisa da eficácia de novas terapias específicas requer grandes grupos de pacientes para conduzir ensaios clínicos. Esse é um dos maiores problemas no caso das doenças raras. Essa dificuldade pode ser enfrentada também através da organização dos pacientes e familiares em grupos de advocacia e desenvolvimento de parecerias entre esses grupos e centros idôneos de pesquisa.

Finalmente, os pacientes com doenças raras e suas famílias necessitam atendimento especializado psicossocial em áreas tais como enferemagem, assistência social, psicologia, fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, nutrição, educação etc. Esses tratamentos são caros e complexos, havendo necessidade de priorização, uma vez que é impossível realizar muitos tratamentos simultaneamente. Outra vez: O SUS não oferece esste tipo de serviço.

Uma dificuldade no que se refere ao planejamento de tratamentos psicossociais se prende ao fato de que cada uma das doenças pode apresentar necessidades bem específicas, não compartilhadas com outras condições de saúde. Ao mesmo tempo, várias condições raras podem compartilhar necessidades de  assistência. Então ´há necessidade de pesquisas visando identificar necessidades específicas e necessidades compartilhadas. Só assim seria possível formular políticas fundamentadas de assistência.

Esse texto aqui corre o risco de virar um samba de uma nota só. Porém, mais uma vez somos obrigados a reconhecer o papel que as associações em defesa de interesses mútuos podem desempenhar. Os grupos auto-organizados de pacientes e familiares podem se beneficiar, em primeiro lugar, fazendo lobby.

Mas os grupos auto-organizados desempenham um papel extremamente importante na pesquisa. Nós vivemos numa era de assistência a saúde baseada em evidências. Queremos que nosso atendimento de saúde seja fundamentado nas melhores evidências empíricas disponíveis. Para isso são necessárias pesquisas. Pesquisas essas que necessitam de grupos de pacientes, os quais podem ser formados a partir da cooperação entre essas associações e os pesquisadores. Chegamos então, novamente, ao associativismo.

Finalmente, o associativismo desempenha um papel fundamental do ponto de vista psicológico. A convivência e o reconhecimento mútuo exerce efeitos extremamente benéficos sobre as famílias e sobre os pacientes. Não apenas pela troca de experiências e informações, mas, principalmente, pelo reconhecimento mútuo.

Uma das maiores alegrias que já tive na vida foi testemunhar o contentamento com o qual crianças e jovens com síndrome de Williams se reconhecem uns aos outros. Identificam características semelhantes, desenvolvem um sentimento de pertinência a um grupo, uma identidade, o orgulho de ser Williams.


RESUMJO E CONCLUSÕES

Em resumo, importarmo-nos com as doenças raras não é apenas uma questão humanitária ou curiosidade científica, mas uma questão pratica e cientificamente relevante. Essas doenças podem ser raras isoladamente, mas constituem um importante problema de saúde pública.

As principais áreas problema parecem ser relacionadas com o diagnóstico, tratamento específico e tratamento psicossocial multiprofissional e educação.

As associações de pacientes e familiares representam um papel fundamental no exercício de lobby, na promoção das pesquisas necessárias para melhorar o atendimento, e não menos importante, através do benefício prático e subjetivo conferido pela convivência e reconhecimento mútuo.

O capital social, humano e cognitivo de uma sociedade pode ser medido pelo seu grau de associativismo. Um dos maiores desafios para melhorar a qualidade de vida de pessoas com doenças raras e suas famílias é a auto-organização de pacientes e familiares e o trabalho cooperativo com profissionais e pesquisadores. 


DISCLAIMER

Sou altamente suspeito. várias décadas sou apaixonado por uma geneticista e pela neuropsicologia das síndromes genéticas.