Wednesday, September 28, 2016

O NEUROPSICÓLOGO DEVE SER UM GRILO FALANTE? MÁXIMAS DO ACONSELHAMENTO NEUROPSICOLÓGICO




Dizer que o neuropsicólogo deve ser um grilo falante significa enfatizar o componente de aconselhamento da avaliação neuropsicológica. Mas é uma metáfora que tem seus riscos. A avaliação neuropsicológica tem muitas finalidades, tais como diagnóstico, prognóstico e aconselhamento etc. O aconselhamento é o modo como o neuropsicólogo auxilia a pessoa a compreender a natureza do seu problema, a  interpretá-lo à luz do conhecimento científico, a identificar quais são as  possibilidades de enfrentamento e os recursos disponíveis, quais são as decisões que precisam ser tomadas e quais consequências possivelmente associadas a cada opção etc. Enfim, o aconselhamento é a intervenção acoplada à avaliação neuropsicológica que permite informar as decisões a serem tomadas pelo cliente, por sua família e por outros profissionais.






O aconselhamento é uma forma de intervenção breve e não diretiva e deve ser um componente obrigatório da avaliação neuropsicológica. Não é de muita serventia fazer uma série de testes, levantar escores e conferir nas normas, se os resultados não são integrados numa hipótese diagnóstica, a qual é então submetida a um escrutínio de validação. Efetuado o diagnóstico, o significado do mesmo precisa ser transmitido aos consumidores do relatório neuropsicólogo. É nisso que consiste o aconselhamento. O aconselhamento é a cereja do bolo e pode ser sistematizado através de algumas máximas:


1.    O ACONSELHAMENTO DEVE SER BREVE.

A avaliação neuropsicológica, incluindo o aconselhamento tem uma duração ótima. A avaliação neuropsicológica não pode ser muito curta. Pode-se pensar assim. Os testes e observações realizados constituem amostragens do comportamento do cliente. Não é recomendável amostrar o comportamento do examinando em apenas uma ocasião. A pessoa pode estar receosa, pode estar cansada, seu comportamento pode ser intermitente, pode variar ao longo do dia ou em função da tarefaetc. A variabilidade de desempenho é uma característica importantíssima do TDAH. Atenção individualizada e tarefas desafiadoras são motivantes e promovem engajamento. Com a repetição e aumento do grau de dificuldade podem vir o tédio ou a ansiedade de desempenho. Então é preciso amostrar o comportamento do probando ao menos umas duas vezes, procurando variar as circunstâncias e o tipo de tarefa apresentada.

Mas a avaliação não pode se prolongar por muito tempo. Os clientes com nível educacional mais baixo não conseguem distinguir bem avaliação de terapia. Freqüentemente as mães relatam que o menino melhorou após começar a avaliação. E isso acontece e decorre da atenção positiva que a criança recebe durante a avaliação. As crianças com dificuldades de comportamento e/ou de aprendizagem recebem pouca atenção de boa qualidade dos adultos. A atenção dos adultos geralmente se fixa no problema de comportamento ou de aprendizagem. Assim, não é surpreendente que a criança mude de atitude ao receber atenção de boa qualidade, individualizada, de um adulto que lhe é simpático e estimulante.

Uma avaliação muito demorada acarreta também consigo problemas relacionados ao aprofundamento do rapport e desenvolvimento de transferência e contratransferência. Pode ficar difícil na hora do desmame. Na hora de encaminhar a criança e a família para algum tipo de tratamento. No início, algumas crianças se mostram receosas frente aos testes. Mas, com o passar do tempo, muitos adquirem gosto pelas atividades. E ficam frustradas quando lhes é comunicado que não precisarão mais retornar.

A duração excessiva do processo de avaliação é um dos principais problemas que enfrentamos quando os alunos de graduação estão na fase inicial da sua aprendizagem. Muitas vezes a anamnese precisa ser refeita porque ficaram faltando informações ou porque as informações obtidas não são conclusivas. Freqüentemente também testes adicionais precisam ser aplicados em função das  hipóteses levantadas, com os quais os alunos não estão familiarizados. Assim, sendo, algumas vezes o processo de avaliação pode se prolongar por um semestre letivo inteiro. Isso é péssimo. Não existe uma regra fixa. Mas uma boa avaliação deve durar de três a cinco ou no máximo seis sessões: uma entrevista de anamnese, três sessões de testes e uma entrevista de aconselhamento.

Uma avaliação muito curta é superficial, amostra inadequadamente o comportamento e induz a erro. Uma avaliação muito prolongada favorece o desenvolvimento de transferência, que precisará ser elaborada posteriormente. E esse não é o objetivo da avaliação neuropsicológica. A intervenção associada à avaliação neuropsicológica é o aconselhamento.


2.    O ACONSELHAMENTO DEVE SER NÃO-DIRETIVO.

O neuropsicólogo não precisa ser uma tela em branco sobre a qual se projetam os anseios do cliente, mas deve procurar ser o menos diretivo possível. Isso nem sempre funciona. Mas é um ideal a ser almejado e perseguido sempre que possível. O ideal contemporâneo é a assistência colaborativa de saúde (Haase, 2009a,b, von Korff et al., 1997). Segundo o modelo colaborativo, o paciente deve funcionar como um membro da equipe multiprofissional. O paciente deve ser informado e deve participar ativamente no processo de tomada de decisões diagnósticas e terapêuticas. O ideal de assistência colaborativa à saúde se coaduna com os princípios bioéticos de autonomia e decisão informada (Beauchamp & Childress, 2002).

A assistência colaborativa de saúde é extremamente importante no caso das doenças crônicas, como é a maioria dos problemas neuropsicológicos. Os problemas de saúde nesses casos têm repercussões multisistêmicas, necessitam atendimento multiprofissional e, frequentemente, decisões difíceis precisam ser tomadas considerando riscos, benefícios, disponibilidade de serviços, custo financeiro, afetivo e esforço etc.

Assim sendo, o aconselhamento deve ser não-diretivo no sentido de que o neuropsicólogo não deve prescrever o que o cliente deve fazer ou deixar o fazer. O papel do neuropsicólogo deve ser mais psicoeducativo, esclarecendo a natureza do problema, mapeando as opções de diagnóstico e tratamento, a disponibilidade de serviços, o prognóstico e o custo e as consequências associadas às decisões eventualmente tomadas.

Esse modelo funciona muito bem com pessoas educadas e com capacidade de insight. Seus resultados podem ser contraproducentes em indivíduos com menor educação formal e menor capacidade de insight. Nesses casos o neuropsicólogo pode e deve ser mais diretivo. O não-intervencionismo excessivo pode causar confusão e aumentar o sofrimento do cliente e da família. Por vezes, as pessoas precisam receber uma orientação mais diretiva para se sentirem mais seguras.

O modelo não-diretivo, colaborativo de assistência se coaduna muito bem ainda com o movimento da psicologia positiva, o qual chegou à neuropsicologia também (Randolph, 2013). A idéia subjacente à psicologia e neuropsicologia positivas é que há necessidade de desenvolver uma agenda positiva para o caso das doenças crônicas, Uma agenda que focalize as possibilidades de desenvolvimento pessoal e promoção da qualidade de vida, retirando atenção das limitações e deficiências.

O movimento da assistência positiva de saúde se baseia  na observação de que muitas vezes e paradoxalmente até, as pessoas mantém ou recuperam sua qualidade vida mesmo face a situações ou condições de  saúde muito adversas. Albrecht e Devlieger (1999) cunharam o termo “paradoxo da incapacidade” ou “paradoxo da felicidade”. Ou seja, a pessoa mantém o nível de funcionamento e o seu bem estar apesar de todas apostas em contrário.

A manutenção da qualidade de vida face a deficiências pode ser explicada por diversos mecanismos de coping, tanto ativos quanto passivos. O engajamento ativo no cuidado da sua própria saúde, a participação na equipe multiprofissional e a ajuda a outros pacientes afetados constituem um importante mecanismo de enfrentamento (Schwartz & Sendor, 1999). Outro mecanismo é a “response shift” ou recalibração dos parâmetros pelos quais o bem estar é aferido. À medida que as incapacidade vão se acumulando, o indivíduo pode ir recablibrando suas expectativas, mudando seus critérios de performance e engajamentos. O engajamento pode ser retirado de uma atividade que se tornou impossível para uma que permanece viável  e promove o desenvolvimento pessoal (Schwartz et al., 2007).

É realmente surpreendente o número de pacientes com doenças crônicas que conseguem manter seu funcionamento e bem estar apesar da adversidade. Mas nem todos conseguem (Vasconcelos et al., 2010). E pode ser inútil e até mesmo desumano desenvolver no paciente a expectativa ou obrigação de manter-se ativo e funcional, de ser um vencedor apesar de toda adversidade (Schwartz, 2000). Algumas pessoas simplesmente não conseguem. Não conseguem porque sua educação, inteligência, regulação emocional, capacidade de insight etc. simplesmente não permitem. Nesses casos, o neuropsicológico precisa ser um pouco mais diretivo, para não sobrecarregar o cliente e sua família.



3.    O ACONSELHAMENTO DEVE SER UMA FORMA DE PSICOEDUCAÇÃO.

Fico muito feliz quando a mãe me fala assim: “Você me ajudou a compreender melhor a minha filha”. O objetivo último da avaliação neuropsicológica é que os diversos consumidores do relatório compreendam melhor o funcionamento do cliente, seus receios, suas limitações e potencialidades.

A dimensão psicoeducativa é intrínseca ao aconselhamento neuropsicológico. A professora encaminha e/ou os pais trazem uma criança à consulta porque a mesma não se comporta ou não aprende conforme a expectativa dos adultos. Modelos e rótulos da psicologia intuitiva são utilizados para se referir   ao  indívíduo e aos sintomas. Freqüentemente se escuta que a criança é lerda, que é burra, que não aprende, que não se esforça, que é preguiçosa, que tem problema de caráter etc. Essas interpretações selvagens, folk-psychologicas, podem ser bem dolorosas para os pais e para a criança, aumentando também o risco de que a professora se sinta desamparada.

A missão do neuropsicólogo é ajudar o indivíduo e a família a reconstruírem sua biografia, de modo que seja pessoal e socialmente aceitável e promotora do crescimento e desenvolvimento pessoal. É muito importante, por exemplo, que a criança, a família e a professora desenvolvam a compreensão de que uma criança com dislexia tem inteligência normal e que seu problema é circunscrito a um sistema neurocognitivo muito delimitado. No caso do TDAH ajuda muito compreender que se trata de uma dimensão da  personalidade associada a dificuldades para postergar a recompensa e não a uma falha de caráter ou déficit cognitivo.

Está muito em voga a crítica da neuropsicologia como medicalização do ensino (Frias & Júlio-Costa, 2013). Ouve-se que os problemas da educação são de natureza sistêmica e política, relacionados à desigualdade social e mecanismos de opressão dos mais pobres etc. etc. Segundo essa cantilena é condenável rotular a criança, atribuindo-lhe responsabilidade por problemas estruturais sociais.

A perspectiva neuropsicológica é distinta. O diagnóstico não deve se restringir à “rotulação”, seja lá o que isso signifique. O aconselhamento é parte inerente ao diagnóstico. E o aconselhamento envolve esse processo de reconstrução da biografia, de criação de uma versão que seja cientificamente informada e pessoal e socialmente aceitável.

A psicoeducação é componente que permite ao indivíduo e à família compreenderem a natureza do problema, aumentarem seu auto-conhecimento, identificarem seus pontos fortes e fracos, tranquilizarem-se quanto ao prognóstico, identificarem os recursos e opções disponíveis quanto ao ao tratamento etc.

A neuropsicologia faz parte sim do aparelho ideológico do estado. A neuropsicologia faz parte do sistema mais amplo de saúde, cuja finalidade é auxiliar as pessoas a enfrentarem suas mazelas. O neuropsicológico está investido sim de um poder e deve assumí-lo. Trata-se do “poder de Esculápio”. Ou seja do poder de absolver culpas e amainar ansiedades à  luz do conhecimento científico e da empatia. A compreensão é o primeiro passo para o alivio do sintoma.


4.    O ACONSELHAMENTO DEVE SE FUNDAMENTAR EM UMA INTERPRETAÇÃO FENOMENOLÓGICA.

Também fico muito feliz quando a mãe me fala assim: “É impressionante como você conseguiu descrever tudo no relatório com fidelidade ao que eu disse. Com as minhas próprias palavras”. A fenomenologia aqui é aquela fenomelogia descritiva dos sintomas de Karl Jaspers e não a fenomenologia de Edmund Husserl (Oyebode, 2015).

O aconselhamento somente vai funcionar se o neuropsicólogo conseguir entender a percepção e compreensão que o cliente tem dos seus próprios problemas, seus sentimentos preocupações, seu interesses, limitações etc. É preciso reconstruir o mundo a partir da perspectiva do cliente para poder ajudá-lo.

Falar isso é uma obviedade. Deveria ser desnecessário. Infelizmente não é.  A julgar pelo número de famílias que passam por diversos neuropsicólogos sem que tenham encontrado um rumo. Uma falácia frequente na neuropsicologia é aquilo que pode ser chamado de a “ilusão dos números”. Ou seja, a crença de que a avaliação neuropsicológica se reduz a um processo objetivo de aplicação de testes, levantamento de escores e conferência de um referencial normativo.

Nada mais errado. Os testes são sujeito a erros, sistemáticos e não sistemáticos. Os escores nos testes não dizem nada, a menos que sejam interpretados à um luz de um referencial neurocognitivo. Os testes neuropsicológicos constituem apenas uma tentativa honesta de aumentar a fidedignidade das medidas e de operacionalizar o teste de hipóteses diagnósticos da maneira mais formal possível.

Mas, por si só, os escores dos testes podem não ter quaisquer implicações para o aconselhamento, para aquilo que o cliente e a família podem ou devem fazer. Para compreender aquilo que pode funcionar e aquilo que pode não funcionar. As intervenções neuropsicológicas são complexas e exigem capacidade de insight e cooperação por parte do cliente e/ou da família. Isso somente é possível quando o neuropsicológico realmente conhece aquela pessoa, sem reduzí-la a um padrão de escores preservados ou deficitários. As ferramentas para isso são clinicas e consistem pura e simplesmente da empatia e da fenomenologia.

A fenomenologia pode ser aprendida através do estudo de livros como o de Oyebode (2015) e supervisão clinica. A grande questão diz respeito à possibilidade de se aprender e desenvolver a empatia, a compaixão e o interesse genuíno. Eu tendo a acreditar que sim.

Os profissionais de saúde precisam também se resguardar contra o desenvolvimento de “calos no coração”, lidando diuturnamente com tanto sofrimento. Tem um estudo muito bacana que explica como isso é possível e se chama: “helping others, helps oneself” (Schwartz & Sendor, 1999). Uma das razões pelas quais as profissões de saúde são tão atrativas é que a melhor maneira de ajudar a si próprio, pode ser ajudar a outrem. A caridade é um componente importante da clinica e precisa ser cultivado. Todo encontro clinico é uma experiência humana. Eu fico satisfeito quando posso gostar dos meus pacientes e quando aprendo alguma coisa com eles. E sempre aprendo muito. Só fico chateado quando não consigo gostar, não consigo empatizar. E, às vezes não consigo. Nesses casos, é melhor que os clientes sejam atendidos por outras pessoas. Vocês podem não acreditar, mas eu também sou humano. Até eu tenho minhas emoções e sentimentos. Agora só falta fazer que nem os alunos do primeiro ano de graduação em psicologia e andar por aí com uma camiseta onde se lê: “Nada do que é humano, me é estranho”.

O neuropsicológo deve ser um grilo falante: Sim, na medida em que conseguir dar bons conselhos. Mas ao mesmo tempo, não pode ser tão chato quanto o grilo falante. O animalzinho irritante, sô!. Mania de dar liçãode moral nos outros. Quando eu era pequeno, eu detestava o grilo falante. O neuropsicólogo não deve ser um moralista.



Referências

Albrecht, G. L., & Devlieger, P. J. (1999). The disability paradozx: high quality of life against all odds. Social Science & Medicine, 48, 977-988.

Beauchamp, T. L., & Childress, J. F. (2002). Princípios de ética biomédica (4ª. ed.). São Paulo: Loyola.

Frias, L., & Júlio-Costa, A. (2013). Os equívocos ea certos da campanha "não à medicalização da vida". Psicologia em Pesquisa UFJF, 7, 3-12.

Haase, V. G. (2009a). O enfoque biopsicossocial na saúde da criança e do adolescente. In V. G. Haase, F. O. Oliveira & F. J. Penna (Orgs.) Aspectos biopsicossociais da saúde na infância e adolescência (pp. 29-65). Belo Horizonte: COOPMED (ISBN: 978-85-7825-003-4).

Haase, V. G. (2009b). O desenvolvimento humano como busca de felicidade. In V. G. Haase, F. O. Ferreira & F. J. Penna (Orgs.) Aspectos biopsicossociais da saúde na infância e adolescência (pp. 601-635). Belo Horizonte: COOPMED (ISBN: 978-85-7825-003-4).

Oyebode, F. (2015). Sims' symptoms in the mind. Textbook of descriptive psychopathology (5th. ed.) Edinburgh: Saunders Elsevier.

Randolph, J. J. (ed.) (2013). Positive  neuropsychology. Evidence-based perspectives on promoting cognitive health. New York: Springer.

Schwartz, B. (2000). Self-determination. The tyranny of freedom. American Psychologist, 55, 79-88.

Schwartz, C. E, & Sendor, R. M. (1999). Helping others helps oneself: response shift effects in peer support. Social Science &  Medicine, 48, 1563-1575.

Schwartz, C. E., Andresenm E. M., Nosekm M. A., Krahnm G. L., & RRTC Expert Panel on Health Status Measurement. (2007). Response shift theory: important implications for measuring quality of life in people with disability. Arch Phys Med Rehabil.  Archives of Physical Medicine and Rehabilitation, 88, 529-636.

Vasconcelos, A. G., Haase, V. G., Limam E. de .P, Lana-Peixoto, M. A. (2010). Maintaining quality of life in multiple sclerosis: fact, fiction, or limited reality? Arquivos de Neuropsiquiatria, 68,  726-730.

von Korff, M., Gruman, J., Schaeffer, J., Curry, S. J. & Wagner, E. D. (1997). Collaborative management of chronic illnesses. Annals of Internal Medicine, 127, 1097-1102.

Como estruturar as apresentações em um journal club?



Quando eu cheguei lá em Munique para fazer o meu doutorado, passei por uma fase meio complicada do ponto de vista comunicacional. À medida que eu ia adquirindo fluência em alemão, a nova língua interferia com o inglês. Num certo momento eu não conseguia mais falar direito nem uma língua nem outra. Me embanava todo e tinha que ficar pensando, procurando as palavras. Um belo dia um cara chegou pra mim e me disse que eu parecia um inglês. Perguntado por quê, o sujeito me respondeu que eu ficava pensando antes de falar. Segundo ele, só os ingleses pensam antes de falar. Lá na Alemanha o pessoal valorizar ter o conhecimento na ponta da língua. Se você saba alguma coisa, sabe decor. Se não sabe decor, não sabe.

O jornal club é uma das mais importantes atividades acadêmicas. Serve tanto para aprender, principalmente aprender a ler metodicamente e metodologicamente, mas também para aprender a escrever. Só que o journal club pode se transformar em uma chatice quando as apresentações são mal preparadas. A seguir faço algumas considerações e recomendações que considero serem importantes para aproveitar ao máximo um journal club e, principalmente, para não transformar o troço em um massacre da paciência do professor e colegas.







1) Todo mundo preparar e sortear na hora

Pode ser uma coisa interessante. Mas implica em problemas também. Pode deixar o negócio muito chato. Só funciona se todos prepararem de fato. O que eu acho muito difícil. Daí, o que acontece é o seguinte. Chega na hora a pessoa não está preparada, não tem as frases prontas na cabeça. Está inibida etc. etc. Fica muito chato. Vira psicoterapia. Eu não tenho paciência de ficar acompanhando um aluno que não preparou estruturar o seu raciocínio, ficar tentando lembrar das coisas, montar frases que nem as da Dilma etc. etc. Eu não mereço isso. Não fiz nada de errado. Aprendi lá na Alemanha que a gente tem que ter as coisas decoradas, na ponta da língua. Então, o que eu acho é o seguinte. Se todos prepararem às ganhas, vale fazer sorteio na hora. Caso contrário é melhor que uma pessoa prepare de fato.


2) Power Point

Acho que tem que fazer Power Point. O Power Point é importane para mostrar as figuras e tabelas. O Power Point ajuda também a sistematizar as idéias, a listar todos os tópicos que precisam ser abordados, de forma que nada seja esquecido. Hoje em dia o Power Point funciona como as antigas fichas de leitura. O Power Point substituiu as fichas de leitura. Essas fichas ou slides de Power Point são importantes para a gente ter o material debulhado e facilmente acessível na hora que quer citar. Dá para aproveitar também as diversas apresentações que vão sendo feitos quando é necessário preparar uma aula mais importante. O material fica pré-pronto. Ao invés de começar a aula do zero, a tarefa se resume  em e, selecionar e juntar as peças, quer dizer, os slides. Fica muito mais fácil. Você pega uma idéia daqui, outra dali, um resultado daqui, outro dalí etc.


3) Linguagem precisa e sumária

Tem que usar uma linguagem precisa. As frases precisam ser pré-elaboradas. Tem que resumir bem. Não dá pra ficar cansando o ouvinte com detalhes irrelevantes. É preciso se concentrar, focar no ponto, ser objetivo. É preciso aprender a separar o que importa e o que não importa. Discriminar o que importante do que não importa é um dos principais objetivos da atividade. É justamente isso que se pretende aprender.


4) Formato da apresentação

O conteúdo deve ser formatado no modelo IMRAD (Introduction, Methods, Results and Discussion). Isso ajuda não apenas a ler, mas também a escrever papers.
O formato IMRAD tem um delineamento geral de uma ampulheta. No início da Introdução é apresentada uma questão geral, um problema enfrentado em uma área do conhecimento. A seguir, ao longo da Introdução, o problema é delimitado, os objetivos são formulados e as hipóteses delimitadas. Os métodos e os resultados são a parte mais específica do artigo, descrevendo como e o quê foi feito e quais os resultados. A discussão começa resumindo os resultados para então abrir o leque.

5) Roteiro para apresentação

Cada tópico deve ser abordado em algumas poucas frases, de forma sucinta e pecisa. No “mundo moderno” não dá pra ficar enchendo a paciência dos outros, tentanto organizar as idéias etc. Tem que vir com o negócio pronto. Eu não sou a mamãe dos alunos.

Poucas frases, sucintas, precisas, bem organizadas para cada um dos tópicos a seguir.


a) AUTORES

A apresentação dos trabalhos começa pela identificação dos autores. Para isso é importante ir para a internet. Identificar quem são os autores, se são velhos ou moços, em qual fase da carreira estão, qual seu programa de pesquisa, como o artigo se insere no seu programa de pesquisa, se é um trabalho maior ou menor, qual é o índice H do autor, a que instituição pertence, que outras contribuições relevantes fez, se o cara tem uma teoria ou não etc.


b) QUESTÃO GERAL DE PESQUISA

Para qual problema científico o artigo pretende contribuir? Qual é a lacuna de conhecimento que pretende suprir? Descrição muito sucinta do contexto, do estado da arte, que justifica a pesquisa.


c) OBJETIVOS E HIPÓTESES

Os objetivos específicos devem ser acoplados às hipóteses. É preciso identificar se o estudo testa hipóteses. Se não testa hipóteses é uma porcaria. Se o estudo não explicita as hipóteses também é uma porcaria. O que não dizer que o leitor não deva explicitar as hipóteses subjacentes quando o autor não o faz. Cada objetivo visa testar uma hipótese, deve ser casado com uma hipótese. As hipóteses devem ser formuladas em termos de hipótese nula e hipóteses alternativas (ou experimentais). Pode haver mais de uma hipótese alternativa para cada objetivo.


d) DELINEAMENTO

É preciso descrever o delineamento geral do estudo. Se é um estudo experimental, quase-experimental, observacional de associação entre variáveis, transversal ou longitudinal etc.


e) OPERACIONALIZAÇÃO DAS VARIÁVEIS

A operacionalização das variáveis faz parte do delineamento. É preciso identificar o papel desempenhado por cada uma das medidas. Quais são as variáveis independentes e como foram medidas. Quais são as variáveis dependentes e como foram medidas. Como foram controladas as variáveis confundidoras.

IMPORTANTE: Quando eu vou avaliar um paper, dissertação de mestrado ou tese de doutorado, a primeira coisa que eu olho são os objetivos, hipóteses e operacionalização das variáveis. Se o autor não apresenta esses itens de forma clara então o trabalho é uma porcaria. Dificilmente vai ser de alguma serventia. A redação dos objetivos e hipóteses deve ser refinada quando o trabalho estiver quase pronto e quando se fizer a costura entre as diversas partes.


f) AMOSTRAGEM

Mais importante do que descrever as características sócio-demográficas da amostra é explicar a estratégia de amostragem. Ou seja, como é que os indivíduos foram selecionados para participar do estudo. A amostragem é importante para saber a qual população os resultados poderão ser generalizados. Em todos tipos de estudos a amostragem é crucial. A representatividade da amostra é matadora nos estudos clinico-epidemiológicos e de diferenças individuais. Nos estudos experimentais a amostrada é tratada como representativa da espécie humana em geral.


g) INSTRUMENTOS

Entrar em detalhes sobre cada um dos instrumentos é uma chatice. Não precisa. Se a operacionalização das variáveis é bem definida, não precisa ficar entrando em detalhes sobre cada instrumento. Basta dizer a memória de trabalho tal e tal foi examinada por tal e tal medida, especificada em um nível genérico. P. ex., para avaliar a consciência fonêmica eles usaram um teste de supressão de fonemas. A maioria das medidas é bem conhecida e amplamente usada. Não precisa então entrar em detalhes. A não ser que o instrumento desempenhe um papel crucial no estudo. Se é um estudo descrevendo e/ou validando um instrumento novo. Ou se o instrumento é um ponto fraco do estudo.


h) ANÁLISE ESTATÍSTICA

Concentrar-se apenas numa descrição geral da estratégia analítica empregada. Só entrar em detalhes quando os autores usarem alguma técnica estatística nova ou problemática.


i) RESULTADOS

Focar a apresentação dos resultados nas tabelas e figuras. As tabelas e figuras são custosas para fazer e estão lá justamente para isso. Para apresentar de forma sucinta, esquemática e numérica os resultados. As tabelas e resultados permitem que a gente infira os resultados princpais em um vistaço. Não tem nada melhor do que isso. Se um resultado não está na tabela ou figura é porque ele não é tão importante assim. Aqui não vale aquela recomendação de não usar tabelas na apresentação. Um journal club é diferente de uma conferência ou aula. Tabelas em aulas para um grande público são um porre. Ninguém enxerga nada no meio de uma salade de números. Em um jornal club, pode-se e deve-se usar tabelas à vontade. Geralmente é um grupo pequeno, de pessoas que se conhecem bem e convivem regularmente. O ideal é que as pessoas tragam suas cópias do artigo e na hora todo mundo examine junto os detalhes. O objetivo aqui é, justamente, focar nos detalhes. Em um journal club a apresentação dos resultados deve ser focada nas tabelas e gráficos. É importante também ir se acostumando a calcular a magnitude dos efeitos, ainda que mentalmente, quando as mesmas não são apresentadas pelos autores. A magnitude dos efeitos vai nos dizer se 1) os resultados são teoricamente ou clinicamente significativos quando forem estatisticamente significativos e 2) houve poder estatístico suficiente quando a hipótese nula não puder ser rejeitada. Quando os resultados são apresentados apenas como gráficos é importante pegar uma régua, medir o tamanho das colunas e o tamanhos dos whiskers do erro padrão. A seguir é preciso transformar o erro padrão em desvio padrão. O desvio padrão corresponde ao erro padrão multiplicado pela raiz quadrada do tamanho amostral. A melhor métrica para uma estimativa grosseira da magnitude de efeito é o coeficiente d de Cohen. O coeficiente d é obtido dividindo a diferença entre as médias dos dois grupos pela média do desvio padrão. A grande vantagem do escore d é que ele fornece uma estimativa do efeito numa escala de desvio padrão (escore z). A gente se acostuma a usar essa métrica e o resultado fica fácil de interpretar: menor que 0,3 irrelevante, de 0,3 a 0,5 fraco, 0,5 a 0,7 moderado, acima de 0,7 forte. Sempre estimar a magnitude do efeito ao ler um paper.


j) DISCUSSÃO

A discussão começa por um resumo dos resultados e vai expandindo, abrindo o leque. Para o infinito e além. Ao discutir o paper é importante fazer uma análise crítica do mesmo. Se os resultados são consistentes e válidos. Se as variáveis confundidoras foram adequadamente controladas. Se os métodos estatísticos são apropriados para a natureza dos dados. Se os resultados são estatisticamente, teoricamente ou clinicamente significativos ou não. Se houve poder estatísticos suficiente em caso de ausência de rejeição da hipótese nula, se os resultados são consistentes com a literatura, se os resultados trazem novidade, se as conclusões são fundamentadas nos resultados ou se os autores foram além das suas tamanquinhas, se o estudo tem implicações teóricas, metodológicas, práticas (clinicas ou sociais) etc. Acho legal terminar dando uma nota para o paper, de zero a dez.

 6) Leitura metódica e metodológica

A gente deve aprender a ler ,etpdoca e metodologicamente, criticamente. É preciso ter método ou sistemática na leitura para poder aproveitá-la. A leitura deve ser metodológica, profissional e não amadora. Quando se lê um paper, deve-se perguntar sempre pela sua validade. A principal questão diz respeito a se as variáveis confundidoras foram adequadamente controladas. Outras questões dizem respeito à amostragem, fidedignidade e validade das medidas, adequação das técnicas estatísticas etc. Isso que eu coloquei acima é o roteiro que eu uso. Aprender a ler critica e metodologicamente ensina a escrever bem.


 7) Redação de um trabalho científico

Lembrar sempre do formato de ampulheta. Começar pelo geral, afunilar no fim da Introdução, Métodos e Resultados, para depois expandir na Discussão.
Formular de forma precisa e sucinta os objetivos, conectando-os às hipóteses e ao delineamento do estudos (controle e operacionalização das variáveis).
Escrever primeiro os métodos e os resultados.
Escrever a seguir a Introdução, considerando os resultados que foram obtidos.
As questões na Introdução devem ser abordadas na mesma ordem na qual os objetivos e resultados são apresentados.
A Discussão é a penúltima parte a ser escrita. A Discussão retoma os resultados de forma sucinta e vai aprofundando posteriormente cada um deles, na ordem em que foram apresentados na Introdução e Resultados.
O Reusmo e o Título são as últimas partes a serem escritas. São a cereja do bolo. Aquilo que vai chamar atenção do leitor. O resumo deve ser estruturado no formado IMRAD, ainda que as secções não precisem ser formalmente rotuladas c omo tal. O título deve ter de 10 a 15 palavras e pode ser descritivo (menos interessante) ou instigativo, provocativo. Na psicologia o título provocativo é muito bem vindo. Pode-se dar uma conotação humorística, fazer alusão a algum paradoxo ou pressuposto da psicologia intuitiva ou do conhecimento padrão etc. Esse tipo de título chama atenção do leitor. Mas é preciso fazer uma conexão com o título na Introdução e nas Conclusões ao final da discussão. Geralmente essa conexão com o título é feita no início da Introdução (questão geral de pesqusia) e no final da Discussão (Conclusões).
Para escrever bem é preciso aprender a ler bem, isto é, ler metodicamente (com método) e metodologicamente (criticamente, questionando a validade do estudo). Ler e escrever são processos distintos mas intimamente conectados.


Take home message

Venha com o negócio preparado, com as frases feitas, com as idéias e resultados selecionados e organizados. 
Elabore semanticamente a apresentação, procure associá-la com outras coisas que você sabe.
Mas, principalmente, não venha pensar em voz alta na frente dos colegas e professor. Traga o troço pronto. Essa é sua missão como apresentador. Nâo chateie os outros. Procure ensinar e não encher a paciência.