O pomo da discórdia entre as concepções "tradicional" e "progressista" da educação diz respeito ao papel do conhecimento, da instrução e da autoridade (Enkvist, 2014). A educação progressista nega veementemente a importância dessas três componentes do ensino. Vou fazer um breve comentário sobre o papel da instrução.
Existem vários construtivismos (Matthews, 2002). Se uma forma de construtivismo for criticada, nunca é a forma ideal. A forma criticada consiste apenas do "construtivismo real", que nunca chegou a ser implementado adequadamente, apesar de influenciar a formação pedagógica no Ocidente há mais de cinqüenta anos.
E o que diz o construtivismo sobre a instrução? Uma boa idéia pode ser pegar no pé do Piaget. Vejam a citação de um artigo de 1953 do Piaget na Scientific American, apresentando seu trabalho para o público norte-americano.
(Piaget, 1953, p. 74)
Ah, mas issso não era o que Piaget realmente pensava. Trata-se apenas de uma citação retirada de contexto. Não tem nada de citação tirada do contexto! Trata-se, nada mais, nada menos, do que o primeiro parágrafo de um artigo de divulgação através do qual ele pretendia introduzir suas idéias nos EUA.
Ah, mas Piaget estava bêbado nesse dia! Então não vale. Provavelmente Piaget vivia bêbado então, porque noutro dia ele escreveu que “each time one prematurely teaches a child something he could have discovered for himself the child is kept from inventing it and consequently from understanding it completely” (Piaget, 1970, p. 715).
Ah, mas Piaget estava bêbado nesse dia! Então não vale. Provavelmente Piaget vivia bêbado então, porque noutro dia ele escreveu que “each time one prematurely teaches a child something he could have discovered for himself the child is kept from inventing it and consequently from understanding it completely” (Piaget, 1970, p. 715).
Poderíamos colecionar um monte de citações como essas duas, de Piaget e de seus discípulos. A verdade é que Piaget e o construtivismo dele derivado atribuem um grande valor à iniciativa da criança no processo de aprendizagem e desprezam o papel da instrução. Isso seria ótimo. Aprender por conta própria é bem mais divertido. Quando se consegue.
A questão que se coloca então é: "As crianças aprendem por conta própria?" A resposta é: depende de qual conteúdo/habilidade e de qual criança. Geary (2008) introduziu uma importante distinção entre habilidades cognitivas biologicamente primárias e habilidades cognitivas biologicamente secundárias. A linguagem oral é uma habilidade primária. A criança desenvolve a linguagem oral à medida que convive com um comunidade de falantes. A linguagem oral não precisa ser ensinada. A criança é pre-motivada e pre-programada para "adquirir" a linguagem oral.
A linguagem escrita é um artefato cultural, inventado simultaneamente em vários pontos do Globo há cerca de 5000 anos, em um momento crucial da história evolutiva da Espécie. A criança não é pre-motivada e não é pre-programada para aprender a linguagem escrita. A aprendizagem da linguagem escrita depende de três a quatro anos de trabalho laborioso (Dehaene, 2009), para o qual não existe motivação intrínseca (Geary, 2008). A linguagem escrita é uma exaptação, um aproveitamento de mecanismos de processamento de informação evoluidos para implementar a linguagem oral e o processamento de padrões visuais complexos (Dehaene, 2009).
Algumas crianças aprendem a linguagem escrita espontaneamente. A maioria necessita de instrução e treino. A aprendizagem de habilidades cognitivas biologicamente secundárias, tais como a língua escrita, depende do desenvolvimento de uma motivação cognitivamente mediada (Geary, 2008). Aprender a ler e escrever não é intrinsecamento motivador. Pode, até mesmo, ser bastante frustrante. As recompensas por aprender a ler e escrever são projetadas no futuro e a criança precisa regular seu comportamento por metas abstratas, projetadas em um futuro longínguo e incerto. Adquirir gosto pela leitura e escrita depende então do sucesso na tarefa.
Todas as crianças aprendem a ler e a escrever espontaneamente, a partir da sua própria atividade e suas hipóteses quanto às relações entre linguagem oral e escrita? Algumas sim. As mais inteligentes e estimuladas, as menos agitadas. E também aquelas que, apesar de terem deficiência intelectual, apresentam interesses e habilidades muito intensos e restritos, como se observa na hiperlexia (Ostrolenk et al. 2017).
Aprender por conta própria é muito bacana e muito motivante, quando se consegue. O problema é que nem todas as crianças conseguem. Em dez anos no Ambulatório Número do LND-UFMG, nós atendemos 19 adolescentes com inteligência normal e cursando o final do Ensino Fundamental II, que eram analfabetos. Não tinham a menor idéia de que e como as letras representam os sons. E foram sendo promovidos ano após ano sem que ninguém se preocupasse em ensiná-los a ler.
Algumas crianças têm dificuldades para aprender por conta própria devido às suas dificuldades intelectuais. Metade da população tem inteligência abaixo da média (Murray 2006). Mas as dificuldades temperamentais e sociais também desempenham um papel. P. ex., apesar de não ser considerado um transtorno de aprendizagem, o desempenho escolar de crianças com TDAH situa-se abaixo daquele das crianças típicas (Pondé et al., 2012). Isso se deve, provavelmente, ao fato de que as crianças com TDAH têm dificuldades para abrir mão de recompensas menores imediatas (brincar) em favor de recompensas maiores e abstratas, projetadas no futuro (passar no ENEM).
O que dizem as pesquisas pedagógicas? Hattie (2009) realizou uma meta-síntese de mais de 800 estudos meta-analíticos sobre a eficácia dos métodos de ensino. A conclusão foi que as abordagens ao ensino caracterizadas por um componente instrucional são muito superiores às outras.
Ignorar isso, não adotando estratégias instrucionais de ensino, é colocar as crianças que têm dificuldades de aprendizagem em uma situação de tripla desvantagem: uma vez por terem dificuldades cognitivas, uma segunda vez por terem dificuldades de temperamento e uma terceira vez por serem pobres e não terem acesso à instrução. E por acesso à instrução eu não me refiro aqui simplesmente ao direito ou dever de freqüentar a escola, mas ao direito da criança ser instruída e ao dever dos professores instruirem.
A pedagogia não carece de evidências (Willingham, 2011). A dificuldade está em incorporar essas evidências à prática. A resistência, em grande parte, é política, inspirada em autores como Freire (1974), que insistem em instrumentalizar a pedagogia para a luta de classes. Um dos argumentos freqüentemente esgrimidos diz respeito à liberdade de cátedra. Uma pedagogia baseada em evidências representaria, segundo esssa perspectiva, um cerceamento à liberdade do professor. Pergunto então: O médico tem direito de ignorar as evidências científicas nas suas decisões diagnósicas e terapêuticas?
Incorporar evidências à prática profissional não é trivial. Tem toda uma área do conhecimento que se dedica a isso, a pesquisa translacional. Nem sempre é possível fundamental integralmente a prática nas evidências. A prática baseada em evidências corresponde mais a uma postura ética, um objetivo a ser alcançado. As evidências nem sempre estão disponíveis ou são facilmente operacionalizáveis. Mas rejeitar as evidências a priori é uma forma de perversão. E os mais afetados são os mais pobres. Aqueles que dependeriam da escola para subir na vida.
Referências
Dehaene, S. (2009). Reading in the brain. the science of how we read. New York: Penguin.
Enkvist, I. (2014). Repensar a educação. São Paulo: Bunker.
Freire, P. (1974). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Gearcy, D. C. (2008). An evolutionary informed education science. Educational Psychologist, 43, 179-195.
Hattie, J. C. (2009). Visible learning. A synthesis of over 800 meta-analyses relating to achievement. London: Routledge.
Matthews, M. R. (2002). Constructivism and science education: a further analysis. Journal of Science Education and Technology, 11, 121-134.
Murray, C. (2008). Real education. Four simple truths for bringing America’s schools back to reality. New York: Three Rivers.
Ostrolenk, A., Forgeot d'Arc, B., Jelenic, P., Samson, F,. Mottron, L. (2017). Hyperlexia: systematic review, neurocognitive modelling, and outcome. Neuroscieince and Biobehavioral Reviews, 79, 134-149.
Piaget, J. (1953). How children form mathematical concepts Scientific American, 189, 5, 74-79.
Piaget, J. (1970). “Piaget’s Theory,” in Mussen, P . (Ed.) Carmichael’ s manual of child psychology (vol. 1). New York: Wiley.
Pondè, M. P., Cruz-Freire, A. C., & Silveira, A. A. (2012). Relationship between learning problemas and attention deficit in childhood. Journal of Attention Disorders, 16, 505-509.
Willingham, D. T. (2011). Por que os alunos não gostam da escola? Respostas da ciência cognitiva para torar a sala de aula atrativa e efetiva. Porto Alegre: ARTMED.
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