Saturday, October 05, 2019

CIÊNCIA COGNITIVA DESTRONANDO MITOS EDUCACIONAIS

A educação contemporânea e eivada por mitos, que não resistem a uma exame parcimonioso à luz das evidências científicas (Christodoulou, 2014, Willingham, 2011) Alguns mitos especialmente importantes dizem respeito ao papel do conhecimento e da instrução na educação. Esses mitos podem ser expressos de diversas maneiras. Abaixo estão sintetizadas algumas formas sob as quais eles aparecem.

PAPEL DO CONHECIMENTO

  • "A educação não deve se reduzir à mera transmissão de conhecimento".
  • "As tecnologica informáticas mudaram tudo. Não há mais necessidade de memorizar, uma vez que todo o conhecimento está disponível na internet".
  • "A decoreba de fatos impede a compreensão".
  • "Mais do que adquirir fatos, as crianças precisam adquirir habilidades de raciocínio crítico".
  • "Transmitir conhecimento é doutrinação".

PAPEL DA INSTRUÇÃO

  • "Não se deve ensinar a uma criança aquilo que ela poderia compreender por conta própria".
  • "A instrução é um método passivo de aprendizagem".
  • "A instrução tolhe a criatividade". 
  • "A aprendizagem deve ser significativa no contexto de vida da criança". 
  • "A aprendizagem deve ocorrer principalmente por experimentação e descoberta, através da colaboração com os pares".
  • "Atividades em projetos são o melhor meio de aprender".
  • "As crianças são curiosas e criativas, quando confrontadas com problemas formulam e testam hipóteses, como se fossem pequenos cientistas, até inferirem a solução e os conceitos subjacentes".

A persistência desses mitos contrasta com sua fragilidade quando examinados face às evidências científicas. Sealy (2019) publicou um belo texto na revista EducatioNext, examinando a relevância dos conceitos de memória episódica e semântica para a educação (vide tradução aqui). A tese da autora é que a aprendizagem que dura é o conhecimento, que depende da memória semântica.

A memória episódica é contextualizada no tempo e no espaço e centrada no self. A memória episódica é emocional e motivacionalmente carregada e sua aquisição depende de vivências marcantes (episódios). Mas, assim como ela vem, a memória episódica vai. A memória episódica é amarrada ao contexto e à perspectiva subjetiva, não servindo de base para generalização, ou seja, abstração e transferência de um contexto para outro.

A memória semântica, incluindo conhecimento conceitual e factual, é menos charmosa porque não é contextualizada e não é emocional e subjetivamente carregada. O desenvolvimento da memória semântica requer esforço repetido. Mas a memória semântica é a única forma de conhecimento que permite a abstração e a generalização de um contexto para outro. A memória semântica e adquirida através de uma série de episódios de estudo, dos quais não persistem lembrancas. Uma característica importante da memória semântica é que não temos uma noção conscientes de como aprendemos, mas esse é o tipo de conhecimento que persiste e tem aplicabilidade na vida.

Ou seja, décadas depois de sair da escola, permanecem apenas as memórias episódicas mais vívidas, aquelas adquiridas no contexto de episódios marcantes. As demais memórias episódicas se esvaem. Mesmo as memórias episódicas que permanecem são de pouca utilidade. Uma característica saliente da memória episódica é que ela é dependente do contexto e precisa sempre ser reconstruída a partir de pistas contextuais. A memória episódica é também reconstrutiva, ou seja, pistas contextuais atuais auxiliam a reconstruir os fragmentos nebulosos disponíveis. Ao contrário, a memória semântica é acessível num átimo, tem relevância prática para as situações da vida e permite assimilar nova informação ao mesmo tempo em que se acomoda à nova informação adquirida.

Eu só tenho um reparo ao texto de Sealy (2019). Ela restringe a discussão à distinção entre memória episódica e semântica. Mas algumas coisas às quais ela se refere, como p. ex., algoritmos de cálculo, não dependem apenas da memória semântica, mas também da memória procedimental. Mas esse é apenas um detalhe, cujo correção tornaria o texto tecnicamente melhor, mas não mudaria a mensagem.
Acho que uma concepção mais adequada dos tipos de conhecimento relevantes para a aprendizagem escolar deveria incluir: a) conceitos, como a propriedade comutativa da adição e multiplicação ou o valor posicional; b) fatos como a tabuada de multiplicação; c) procedimentos como os algoritmos de cálculo; d) hábitos ou condicionamentos como a capacidade para postergar a recompensa.

Os episódios marcantes, as atividades divertidas e atraentes na escola, são importantes do ponto de vista motivacional. Mas são os conceitos, fatos, procedimentos e hábitos que as pessoas continuam usando pela vida afora, após sairem da escola.

Referências

Christodoulou, D. (2014). Seven myths about education. London: Routledge / The Curriculum Centre.


Willingham, D. T. (2011). Por que os alunos não gostam da escola? Respostas da ciência  cognitiva para tornar a sala atrativa e efetiva. Porto Alegre: ARTMED.



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