Sunday, February 17, 2013

“Avaliação da funcionalidade na Síndrome de Turner: o uso do modelo da CIF”


Não percam mais uma atividade do  II Congresso Mineiro de Neuropsicologia, que acontecerá entre 17 e 20 de abril de 2013 na UFMG. A Andressa Moreira Antunes, pesquisadora do Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND-UFMG) vai falar sobre funcionalidade na síndrome de Turner, a partir da perspectiva biopsicossocial da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF-OMS).

A síndrome de Turner é uma condição decorrente de alterações do segundo cromossoma sexual feminino, cromossoma X. Pode ser causada por uma deleção completa ou parcial de um cromossoma X, bem como por outros tipos de anomalias, tais como translocações ou cromossoma X em anel. As anomalias podem estar presentes apenas em uma fracção das células (mosaicismo).  Além do fenótipo somático, caracterizado por diversos graus de baixa estatura, alterações hormonais, malformações somáticas etc., o fenótipo cognitivo e comportamental é bastante característico (vide revisões em Kesler, 2007,  Ross et al., 2000). Um dos achados mais salientes é uma discrepância entre o QI verbal e o QI de execução. Estas pessoas apresentam geralmente uma inteligência verbal normal associada a dificuldades cognitivas específicas no domínio visoespacial, funções executivas e na aprendizagem da matemática. Dificuldades relacionadas a timidez e ansiedade social são também classicamente mencionadas (Kesler, 2007, Ross et al., 2000).

Para compreender o interesse pela funcionalidade na síndrome de Turner podemos começar por uma historinha acontecida há quase trinta anos. Um professor estava falando sobre deficiência intelectual numa daquelas disciplinas  introdutórias à psicologia (PSY 101) nos Estados Unidos, com centenas de alunos em um auditório. Uma moça levantou o dedo e disse que tinha um erro no livro escrito e adotado pelo professor. Lá no livro dizia que a síndrome de Turner seria uma causa de deficiência intelectual. A moça chamou atenção para o fato de que ela tinha síndrome de Turner e estava na faculdade. Ela acabou passando com conceito A. O professor teve que corrigir o livro na edição seguinte.

Se isto já era verdade há quase trinta anos atrás, imaginem hoje em dia. Mas não é verdade apenas para a síndrome de Turner. É verdade para todas as síndromes genéticas e para os fenômenos biológicos de um modo em geral. Uma característica distintiva dos fenômenos biológicos é a variabilidade interindividual. E isto vale também para as síndromes genéticas. Não existem dois indivíduos iguais. A variabilidade é imensa e este é um dos principais motivos pelos quais é muito difícil estabelecer um diagnóstico. Os profissionais fixam na cabeça um protótipo e só pensam no diagnóstico quando os sinais e sintomas são muito evidentes. Isto contribui para que a prevalência das síndromes genéticas pareça ser muito menor do que realmente é. Um grande número de casos simplesmente não é diagnosticado. E como não são diagnosticados, os indivíduos afetados, suas famílias e suas educadoras não se beneficiam dos conhecimentos advindos do diagnóstico. A síndrome de Turner (e outras) constituem um fator de risco para deficiência intelectual. Mas nem todos os indivíduos vão ser afetados e no mesmo grau. E a probabilidade de realizar um diagnóstico é menor quando o indivíduo não apresenta malformações graves ou deficiência intelectual.

Esta questão da variabilidade é mais verdade ainda hoje, e principalmente no que se refere à síndrome de Turner. Uma parte da variabilidade fenotípica é relacionada à própria variabilidade dos mecanismos genéticos. Diferentes tipos de alterações cromossômicas, tais com mosaicismo e translocações, causam manifestações fenotípicas distintas. Mas tem também um fator adicional. A introdução do tratamento com hormônio de crescimento e estrógenos mudou completamente o panorama (Davenport et al., 2007). O tratamento permite uma normalização da aparência física, principalmente, no que se refere à estatura, mas também no desenvolvimento de características sexuais secundárias. Uma grande questão neuropsicológica atual é saber até que ponto o tratamento é eficiente na reversão no perfil específico de dificuldades de aprendizagem (Davenport, 2012). Ao invés de apresentarem deficiência intelectual, a maioria das pessoas afetadas tem dificuldades de aprendizagem, relacionadas a um perfil discrepante de habilidades. Como já foi mencionado, as dificuldades maiores são observadas nas áreas da cognição visoespacial e a na aprendizagem da matemática.  Considerando que a frequência de síndrome de Turner em nativivas é de 1/2000 (Davenport et al., 2007) e que  expectativa de vida vem aumentando progressivamente, podemos ficar imaginando quantas meninas que lutam com dificuldades de aprendizagem da matemática apresentam uma síndrome de Turner que não foi diagnosticada.

O tratamento medicamentoso resulta em benefícios cognitivos? Nós ainda não temos informações suficientes para responder de forma definitiva a esta questão (Davenport, 2012). Mas há razão para otimismo. Os estudos sobre funcionalidade, atividades e participação indicam atualmente que para a maioria das portadoras de síndrome de Turner o prognóstico é muito bom (McCauley et al., 2001, Rolstad et al., 2007). Há uma perspectiva real de normalização. De levar uma vida produtiva e feliz, de realizar o potencial de desenvolvimento. Daí a importância do diagnóstico. Somente o diagnóstico, realizado o mais precocemente possível, permite identificar as eventuais dificuldades, instituir o tratamento e orientar as famílias e educadoras. Sem diagnóstico, sem chance.

E o diagnóstico deve ser o mais amplo possível. O diagnóstico não se deve limitar ao estabelecimento da etiologia e comorbidades. Nem restringir-se aos déficits cognitivos. O diagnóstico precisa abranger também o impacto da condição de saúde sobre os diversos níveis de funcionamento do indivíduo. Aí é que entra a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), proposta pela Organização Mundial da Saúde (Andrade et al., 2009, Haase et al., 2012). O modelo biopsicossocial subjacente à CIF permite avaliar o impacto das condições de saúde de forma mais abrangente, integrando informações sobre a estrutura e função do organismo com a capacidade funcional (atividades e participação), os facilitadores e barreiras ambientais e as  características subjetivas do indivíduo. Estudos utilizando o referencial da CIF são importantes para que compreendamos melhor, p. ex., como aspectos relacionados ao fenótipo cognitivo e comportamental repercutem na vida e o que pode ser feito para prevenir e melhorar, para potencializar o desenvolvimento.

Como foi dito acima, no caso da síndrome de Turner as notícias são muito boas. Vejamos o caso do funcionamento social. Dificuldades sociais, caracterizadas como timidez e ansiedade social foram frequentemente descritas em pessoas com a síndrome de Turner, as quais podem estar relacionadas a alterações anátomo-funcionais na amígdala e circuitos conexos (Burnett et al., 2010). No entanto, estas dificuldades não aparecem em todas as pessoas afetadas e muitas vezes são detectáveis apenas através de registros psicofisiológicos ou de imagem neurofuncional. Um fator de risco é relacionado ao fenômeno de imprinting, ou origem parental do material genético. O risco de dificuldades sociais é maior nos casos em que o cromossoma X conservado é de origem materna (Skuse et al., 1997). O mesmo fenômeno pode ocorrer em relação às habilidades cognitivas, tais como a aprendizagem da matemática (Ergür et al., 2008). Estudos com grupos de mostram por outro lado, que os níveis de adaptação psicossocial nas pacientes de Turner são normais (McCauley et al., 2001). A prevalência de transtornos psiquiátricos não é diferente daquela observada na população em geral. Ou seja, a variabilidade interindividual é muito grande. Diversos fatores influenciam o fenótipo. A síndrome de Turner pode ser considerada como um fator de risco para déficits cognitivos e dificuldades de adaptação psicossocial Mas um grande contingente de pacientes funciona muito bem.

Uma medida das possibilidades é dada por um estudo conduzido na Suécia com 57 mulheres portadoras de síndrome de Turner com idade média de 36 anos (Rolstad et al., 2007). Dentre as que tinham relacionamentos conjugais, a atividade sexual tinha se iniciado com apenas 2 a 3 anos de atraso em relação à média da população em geral. Trinta e cinco por cento das participantes estavam casadas ou tinham um relacionamento conjugal estável. E majoritariamente estas mulheres relataram satisfação com os relacionamentos conjugais. Também não diferiam da população em geral quanto à expressão do desejo sexual e frequência da atividade sexual. Além da variabilidade genética, certamente uma grande percentagem da variância fenotípica é explicada por fatores ambientais (Stochholm et al., 2012). O acesso a serviços diagnósticos e terapêuticos, a qualidade da educação e do aconselhamento psicológico, o funcionamento e incentivo fornecido pela família etc., todos estes são fatores que influenciam o prognóstico, tanto no que se refere à mortalidade, morbidade e funcionalidade.  A distribuição do diagnóstico da síndrome de Turner apresenta uma distribuição bimodal em relação à idade (Batch, 2002). O primeiro pico ocorre logo após o nascimento, quando são identificados os casos mais graves.  Um segundo pico ocorre na adolescência, em função da ausência do desenvolvimento de características sexuais secundárias. Um grande desafio atual é identificar as meninas portadoras da síndrome na idade escolar. Numa época da vida na qual elas ainda possam se beneficiar mais significativamente da terapia normal e numa época na qual elas também possa se beneficiar do diagnóstico e intervenções para dificuldades de aprendizagem.


Referências

Andrade, P. M. O., Ferreira, F. O. & Haase, V. G. (2009). A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e o trabalho interdisciplinar no Sistema Único de Saúde (SUS). In V. G. Haase, F. O. Ferreira & F. J. Penna (Orgs.) Aspectos biopsicossociais da saúde na infância e adolescência (pp. 67-88). Belo Horizonte: COOPMED (ISBN: 978-85-7825-003-4) (http://www.coopmed.com.br/site/catalog/product_info.php?products_id=74).

Batch, J. (2002). Turner syndrome in childhood and adolescence. Best Practice & Research Clinical Endocrinology and Metabolism, 16, 465-482.

Berch, D. B. & Bender, B. G. (2000). Turner syndrome. In  K. O. Yeates, M. D. Ris, & H. G. Taylor (Eds) Pediatric neuropsychology. Research, theory, and practice (pp. 252-273). New York: Guilford.

Burnett, A. C., Reutens, D. C. & Wood, A. G. (2010). Social cognition in Turner's syndrome. Journal of Clinical Neuroscience, 17, 283-286.

Davenport, M. L. (2012). Growth hormone therapy in Turner’s syndrome. Pediatric Endocrinology Reviews, 9 (Suppl. 2), 723-724.

Davenport, M. L., Hooper, S. R., & Zeger, M. (2007). Turner syndrome. In M. M. Mazzocco & J. L. Ross (Orgs.) Neurogenetic developmental diserders. Variations of manifestion in childhood (pp. 3-45). Cambridge, MA: MIT Press.

Ergür, A. T., Öcal, G., Bergeroglu, M., Tekin, M., Kiliç, B. G., Aycan, Z., Kutlu, A., Adiyaman, P., Stklar, Z., Akar, N., Sahin, A., & Akçayöz, D. (2008). Paternal X could relate to arithmetic function: study of cognitive function and parental origin of X chromosome in Turner syndrome. Pediatrics International, 50, 172-174.

Haase, V. G., Pinheiro-Chagas, P. & Andrade, P. M. O. (2012). Reabilitação cognitiva e comportamental. In A. L. Teixeira & A. Kummer (Orgs.) Neuropsiquiatria clinica (pp. 115-123). Rio de Janeiro: Rubio (http://www.rubio.com.br/descricao.asp?cod_livro=A46792).

Kesler, S. R. (2007). Turner syndrome. Child and Adolescent Psychiatric Clinics of North America, 16, 709-722.

McCauley, E., Feuillan, P., Kushner, H., & Ross, J. L. (2001). Psychosocial develpment in adoelscentes with Turner syndrome. Developmental and Behavioral Pediatrics, 22,   360-365.