Monday, December 28, 2015

Motivação, aprendizagem e disciplina: os pais são apenas o arco pelo qual a evolução lança os genes de uma geração para outra

As dificuldades comportamentais e de aprendizagem interagem de forma complexa com a motivação através de vários circuitos de retroalimentação estruturados pelo ambiente, os quais repercutem sobre o funcionamento familiar, escolar, social e sobre o próprio auto-conceito. Neste ensaio são analisadas algumas das manifestações deste processo interativo. O ciclo vicioso de retroalimentação entre fracasso escolar e mau comportamento, de um lado, e desmoralização e desmotivação do outro, tende a se cronificar e a se agravar. Os adultos, pais e educadoras, estão em melhor posição de romper um tal ciclo vicioso. Mas isto exige determinação e auto-controle por parte do adulto. A expectativa é que este artigo contribua para que pais, educadoras e profissionais de saúde construam uma representação mais clara da natureza e conseqüências dos problemas comportamentais e de aprendizagem e de sua interação com aspectos motivacionais, bem como dos fatores que os agravam e dos fatores e possibilidades de melhoria.


COMPORTAMENTO, APRENDIZAGEM E MOTIVAÇÃO

Os seres humanos somente se motivam para fazer aquilo que é do seu interesse ou que percebem estar ao alcance da sua competência. Quando a pessoa acredita que ela gosta e/ou consegue realizar uma tarefa com um pequeno esforço, ela irá dispender energia na realização da mesma. Caso a pessoa perceba a tarefa como aborrecida ou estando acima do seu alcance, ela se desmotiva. As dificuldades de aprendizagem desmotivam e desmoralizam o jovem, além de desgastarem as relações familiares. Crianças/adolescentes, pais e educadoras ficam ansiosas e frustradas em função do mau rendimento escolar e/ou do mau comportamento. A atenção dos pais e educadoras concentra-se nas dificuldades, desviando-se dos comportamentos adaptativos dos jovens, os quais são percebidos como mera obrigação da criança. O foco nas dificuldades e negligência dos comportamentos adaptativos constitui uma forma de reforçamento diferencial, o qual agrava ainda mais os problemas.

Confrontada com dificuldades persistentes, com um nível de exigência percebido como acima das suas possibilidades, captando a ansiedade comunicada de forma implícita pelos adultos, o jovem vai progressivamente se desmoralizando e se desmotivando para o estudo e para o comportamento adaptativo. O passo seguinte neste continuum é o agravamento das dificuldades de aprendizagem acompanhado do surgimento e/ou agravamento das dificuldades disciplinares e comportamentais freqüentemente comórbidas com os transtornos de aprendizagem.


APRENDIZAGEM NATURAL E FORMAL

Os seres humanos nascem com a capacidade de adquirir intuitivamente um conjunto de habilidades cognitivas e sociais. As chamadas habilidades primárias são aprendidas naturalmente, sem que haja necessidade de um processo formal de educação. As principais habilidades primárias dizem respeito ao conhecimento dos seres vivos (animais e plantas), do espaço e do mundo físico, das relações quantitativas e de causa-e-efeito. Outro domínio intuitivo importante é o do conhecimento e capacidade de regulação do próprio comportamento e dos outros indivíduos (“inteligência” emocional e social, auto-regulação, habilidades sociais). O desenvolvimento destas habilidades ocorre naturalmene, exigindo apenas que a criança seja estimulada pela família e pares, que o indivíduo interaja com o mundo físico e social.

Existe, entretanto, todo um conjunto de habilidades que não são intuitivamente adquiridas. As chamadas habilidades secundárias exigem a intervenção de uma pedagogia, de técnicas formalizadas de ensino. Exemplos de habilidades secundárias são a leitura e escrita, a notação arábica, a tabuada e os algoritmos aritméticos. As habilidades secundárias são aquisiçoes culturais construídas a partir de capacidades instintivas apenas às custas de muito esforço e do desenvolvimento de técnicas apropriadas.

Todos comportamentos, dos mais simples aos mais complexos, são aprendidos pelas suas conseqüências. Se o comportamento leva a conseqüências desejadas pelo indivíduo ele aumenta de freqüência, aperfeiçoa-se e transforma-se em hábito. Se as conseqüências do comportamento são desagradáveis, diminui a propensão do indivíduo para emití-lo no futuro. Reforços são estímulos que aumentam e punições estímulos que diminuem a freqüência de comportamentos.

Todo comportamento é aprendido pelas suas conseqüências. Mas nem todo reforço ou punição precisa ser experimentado diretamente pelo individuo. A aprendizagem social envolve a observação das conseqüências do comportamento alheio e a imitação de comportamentos conducentes às conseqüências que o individuo almeja. A aprendizagem social exige uma certa capacidade de representação mental (cognitiva). Para aprender por imitação o observador precisa compreender quais são as intenções do modelo, ou seja, a capacidade de representar o mundo a partir da perspectiva do modelo. Pais e educadores transmitem conhecimentos e habilidades verbalmente para seus filhos e alunos, mas, principalmente, pelo seu comportamento, que serve como modelo. Não adianta nada o pai dizer para o menino que o mesmo não deve fumar maconha, se o pai enche a cara quase diariamente.

A aprendizagem cognitiva, por outro lado, requer que o indivíduo tenha a capacidade de representar mentalmente cenários preditivos das conseqüências dos seus atos. O indivíduo antecipa que determinado comportamento levará a conseqüências negativas e aprende a evitá-los. Por outro lado, comportamentos cujas conseqüências são antecipadas como positivas, tendem a aumentar de freqüência e a se automatizar. Ou seja, transformam-se em hábitos ou segunda natureza. A educação é o cultivo dos bons hábitos. A pessoa educada funciona de modo adaptativo sem precisar pensar, no piloto automático. As habilidades secundárias exigem instrução formal e exercício intenso e prolongado para se automatizarem.

DIFICULDADES ESPECÍFICAS DE APRENDIZAGEM

Alguns indivíduos com inteligência normal podem apresentar déficits em certas habilidades primárias específicas. Apesar de a pessoa não ser deficiente mental, essas dificuldades específicas podem prejudicar muito o comportamento e/ou o processo de aprendizagem escolar, acarretando conseqüências sociais e psicológicas adversas. A aquisição de habilidades secundárias exige a integridade das habilidades primárias e somente ocorre com a intervenção de instrução formal. A aquisição de habilidades secundárias exige esforço do individuo para automatizar as aquisições realizadas. Somente o exercício permite a automatização e sem automatização não há como ler de forma eficiente e prazeirosa ou realizar as operações aritméticas com a presteza demandada pelo ambiente comercial e profissional. Três são os dominios de habilidades primárias em que pode haver déficits específicos com potencial para prejudicar a aprendizagem: a linguagem, as noções de espaço e quantidade e a auto-regulação.


DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM RELACIONADAS À LINGUAGEM

A aquisição do código alfabético exige que o indivíduo aperfeiçoe a habilidade de analisar mentalmente as palavras nos seus fonemas constituintes, correlacionando a seguir uma representação mental de cada fonema com sua representação gráfica por meio de letras. As pessoas que têm dificuldades com esta habilidade são categorizadas como disléxicas. A pessoa pode ser inteligente e normal em todos os outros aspectos. Mas apresenta um déficit muito específico na capacidade de correlacionar rapidamente os estímulos ortográficos com as representações sonoras pertinentes. A falta de presteza neste processo de recodificação fonológica acarreta dificuldades com a automatização da leitura. As dificuldades com a automatização da leitura causam, por sua vez, déficits na compreensão de textos e asssim por diante. Para ser eficiente e prazeirosa a leitura precisa ser rápida, automática. A falta de automatização prejudica o desenvolvimento do processamento textual, repercutindo posteriormente sobre a aprendizagem de disciplinas tais como geografia, história etc., as quais exigem habilidades de compreensão de textos. Muitos indivíduos diagnosticados como disléxicos apresentam história de atraso para aprender a pronunciar corretamente as palavras, apresentando trocas e omissões de fonemas (dislalias). Existem evidências de que a dislexia se deve a uma inércia dos mecanismos da linguagem no hemisfério esquerdo. Quando a criança compensa as dificuldades fonológicas (dislalias) ela se defronta com a missão de aprender a ler sem dispor de mecanismos que possibilitem a automatização do processo. As dificuldades crônicas de aprendizagem da leitura repercutem negativamente sobre a auto-estima e a motivação, contribuindo para desencadear ansiedade e/ou comportamentos inadequados.


DIFICULDADES COM O ESPAÇO E O NÚMERO

Outro grupo de crianças com inteligência normal apresenta dificuldades na intuição das relações espaciais e do conceito de número. A aritmética é uma disciplina que se baseia na automatização progressiva de uma série de habilidades. Se o indivíduo não automatiza ou não adquire uma intuição para determinado domínio da matemática, essas dificuldades repercutirão nas fases subseqüentes da aprendizagem. Como nenhuma outra disciplina em igual grau, a aritmética é organizada como um edifício no qual um tijolinho se assenta sobre o outro. Se falta uma base, não há como progredir. As evidências indicam que as habilidades ariméticas também podem se dividir em prmárias e secundárias. E que as habilidades secundárias exigem instrução formal, mas se fundamentam nas habilidades primárias. As habilidades aritméicas primárias se baseiam em uma concepção não-simbólica de grandeza que está presente nos animais e bebês. A partir da noção primitiva de numerosidade, a qual é de natureza analógica e espacial, desenvolve-se progressivamente uma noção simbólica de número. O surgimento do conceito simbólico de número depende da interação com as habilidades verbais de contagem. A partir da interação da contagem verbal com representaçõe concretas, tais como aquelas fornecidas pelos dedos. a criança intui, espontaneamente, os princípios aritméticos que permitem a realização das quatro operações.

Crianças com dificuldades nas intuições numéricas básicas apresentam dificuldades na aquisição de habilidades matemáticas secundárias. As principais habilidades aritméticas secundárias são a notação arábica, a tabuada e os algoritmos que facilitam e agilizam as opoerações com números maiores. A aprendizagem da notação arábica impõe demandas pesadas do ponto de vista de habilidades de representar relações espaciais e de pensar de modo abstrato. A automatização dos fatos aritméticos e dos algoritmos exige, por outro lado, capacidade verbal, de atenção, memória de curto-prazo e, sobretudo, muito exercício. As demandas por exercício, impostas pela aprendizagem da matemática, limitam a aprendizagem dos indivíduos distraídos, imulsivos e impersistentes. Crianças com dificuldades de aprendizagem da aritmética que apresentam déficits nas habildiades primárias são diagnosticadas como portadoras de discalculia. Mas as dificuldades de aprendizagem da matemática podem ser causadas também por fatores motivacionais, tais como ansiedade, estimulação inadequada e más experiências escolares.


DIFICULDADES COM A AUTO-REGULAÇÃO

A aprendizagem escolar exige muita capacidade de motivação e auto-controle. A escola exige que a criança concentre sua atividade em tarefas aborrecidas para ser recompensada no futuro. Algumas crianças têm dificuldades com este processo. Certas crianças têm um temperamento mais difícil, desde muito novinhas. Essas crianças são mais imediatistas, exigem mais atenção dos pais. Querem tudo prá ontem. Há evidências em culturas pré-tecnológicas de que as crianças com temperamento mais difícel têm maior probabilidade de sobreviver porque demandam e recebem mais cuidados em ambientes onde os recursos são escassos. Mas o temperamento dificil pode dificultar a aprendizagem escolar formal. Ao ser pouco estimulada ou estimulada excessivamente a criança agita. Exemplo de hipoestimulação é não ter com que se divertir. Exemplo de hiperestimulação é ser confrontado com uma tarefa que o indivíduo não consegue resolver. Ao se confrontar com uma tarefa percebida como acima das suas possibilidades o indivíduo agita, não consegue se concentrar, não consegue persistir com a tarefa.

As evidências científicas disponiveis mostram que as crianças agitadas e com temperamento difícil têm déficits nos mecanismos cerebrais de recompensa. Estes indivíduos são imediatistas, precisam ser reforçados logo após o comportamento ser emitido. Se o reforço demora, o traço entre o comportamento e o reforço se esvanece. Tais crianças nâo conseguem aprender se existe uma demora entre o comportamento e o reforço. As crianças com temperamento difícil somente aprendem se são recompensadas freqüentemente e imediatamente após a emisão do comportamento que deve ser reforçado. Há evidências de que as crianças hiperativas não conseguem representar de modo tão eficiente na memória de curto prazo as recompensas futuras associadas a um dado comportamento, de modo que o mesmo seja reforçado.

Além de não persistirem na tarefas, as crianças agitadas e com temperamento difícil freqüentemente se envolem em comportamentos percebidos pelos adultos como importunos. O adulto então reage punitivamente. A punição pode desencadear conflitos de autoridade entre a criança e os pais ou educadoras. Nestas circunstâncias, a punição somente agrava o mau comportamento, uma vez que os conflitos podem se cronificar sob a forma de interações coercivas ou de conflitos de poder.


CICLO DE INTERAÇÕES COERCIVAS

Sempre que a mãe dá uma ordem a criança tem a possibilidade de obedecer ou não obedecer. Se a criança obedece, a família vai tratar da vida. Mas algumas crianças são teimosas e não obedecem tão prontamente. Quando a criança não obedece de imediato, a família tende a repetir a ordem até umas três vezes. A criança pode, então, obedecer ou continuar desobedecendo. Se a criança insiste em não obedecer, os pais repetem a ordem mais algumas vezes. Se as dificuldades persistem, os pais ameaçam com castigos, elevam o tom de voz etc. A criança sempre tem a opção de obedecer ou não. Se a criança persiste na desobediência os pais cairão em um beco sem saída, do qual nenhuma opção leva a qualquer lugar. Caso a mãe ceda, estará ensinando a criança a desobedecer. Da próxima vez que a mãe emitir uma ordem o jovem saberá que se ficar pé e não ceder, acabará dobrando a mãe. Isto se chama de reforçamento negativo. Por outro lado, se mãe não ceder e partir para o castigo incorrerá nos efeitos colaterais da punição. A espiral punitiva pode escalar para abuso e toda um série de conseqüências indesejáveis. A repetição de episódios de interação coerciva como os descritos acima desgasta o relacionamento familiar, afasta os pais da criança e não contribui em nada para melhorar as dificulades. Ao contrário, as interações coercitivas acabam se transformando em um verdadeiro estilo de relacionamento familiar, o qual tende a se cristalizar e cronificar, tornando-se progressivamente mais difícil de modificar. Uma vez iniciada a interação coerciva não há o que se possa fazer para resolver a situação. Pais e educadoras precisam aprender a agir proativamente, evitando as interações coercivas. Através da interação coerciva perdem todos. Perdem os adultos pelo estresse, perde a autoridade pelo desgaste e perde a criança pelo desperdício de oportunidades para adquirir habilidades e aprender a se comportar adequadamente.
A punição não rompe o ciclo das interação coercivas, contribuindo, ao contrário para agravá-lo. A punição pode deixar o individuo revoltado, fazendo com que ele se comporte deliberadamente de modo inadequado. É importante considerar também que os individuos com tendências psicopáticas são insensíveis aos efeitos da punição. Só existe um modo de romper o ciclo das interações coercivas: através do reforçamento diferencial dos comportamento adequados e da retirada de atenção dos comportamentos inadequados. Apenas ignorar o comportamento inadequado tende a agravá-lo. Para reduzir o comportamento inadequado é importante antecipá-lo, remover ou prevenir as situações que possam evitá-lo e, simultaneamente, focalizar os bons comportamentos ao mesmo tempo em que os maus comportamentos são ignorados.


CICLO MOTIVACIONAL DA AUTO-ESTIMA

Uma deficiência não é uma característica exclusiva do indivíduo, mas de uma relação do indivíduo com o meio. Pais e educadoras têm expectativas sobre o desempenho escolar e/ou comportamento da criança. Quando a criança não corresponde às expectativas caracteriza-se uma deficiência ou comportamento inadequado. Ao perceberem a discrepância, todos os envolvidos, pais, educadoras e crianças podem ficar ansiosos. A percepção das discrepâncias não contribui em nada para aliviá-las. A persistência das discrepâncias tende a agravá-las. O desempenho escolar insuficiente reduz as expectativas dos pais, professoras e da própria criança quanto ao seu desempenho. Ao sentir-se incompentente diminui a motivação para o estudo e, como o indivíduo investe menos no desempenho escolar o mesmo diminui progressivamente. À medida que o desempenho escolar diminui, baixa também a auto-estima e o status social do aluno.

Se a criança estuda um pouco e tira uma nota razoável, da próxima vez ela irá se esforçar mais para melhorar a nota e este processo pode levar a uma espiral virtuosa de melhora do deseempenho escolar. Por outro lado, se o aluno tem dificuldades e tira nota baixa, ele ficará desmotivado e estudará progressivamente menos, comprometendo cada vez mais sua aprendizagem.

Um processo semelhante ocorre com o comportamento. O mau comportamento cronicamente percebido tende a aumentar seu impacto subjetivo. Quanto mais tempo o mau comportamento dura, mais importuno e grave ele se torna na percepção dos envolvidos e mais impotentes os adultos e jovens se tornam para lidar com as dificuldades decorrentes. A persistência de dificuldades escolares e mau comportamento faz com que todos os envolvidos desenvolvam expectativas de desemparo, de que o problema é muito grave, sem solução. De que não há nada que se possa fazer.

Só existe um modo de romper o ciclo da discrepância entre o critério inatingível e um comportamento percebido como insuficiente ou inadequado: relaxar o critério. Se os pais e educadoras relaxam o critério, as metas de comportamento ou aprendizagem aproximam-se do alcance da crianças. Os seres humanos não se motivam por metas inatingíveis ou alcancáveis apenas às custas de um esforço hercúleo. Estabelecer metas tem um efeito motivador apenas quando elas são estabelecidades de comum acordo com o aprendiz e quando o estudante as percebe como estando ao seu alcance com um pequeno esforço. O princípio de rebaixar o critério, para posteriormente ir elevando-o sucessivamente à medida que as metas vão sendo cumpridas constitui a base de uma estratégia muito eficaz denominada de aprendizagem sem erro. Crianças que se comportam mal ou têm dificuldades de aprendizagem devem ser ensinadas pelo estratégia da aprendizagem sem erro.


APRENDIZAGEM SEM ERRO

Uma das formas mais eficazes de atenuar as dificuldades motivacionais e ajudar a resolver os problemas de aprendizagem é representado pela proposta da aprendizagem sem erro. A aprendizagem sem erro se baseia no pressuposto de que o erro interfere de diferentes maneiras com a aprendizagem. Após aprender errado o trabalho é dobrado para desaprender o errado e aprender o certo. O erro interfere com a aprendizagem. O fracasso frustra, desmotiva e desmoraliza. O primeiro passo então é realizar um diagnóstico preciso do perfil de pontos fracos e fortes, do domínio dos conteúdos curriculares e do estilo de aprendizagem e pensamento da aluna.

A partir do diagnóstico do nível de domínio curricular, do estilo cognitivo e do perfil de pontos fortes e fracos é possível programar o grau de dificuldade das tarefas, de modo tal que elas se situem ao alcance do aluno, com um pequeno esforço. As técnicas de ensino programado ilustram o processo. O grau de dificuldade é hierarquizado e a aprendizagem procede passo a passo. Os novos conteúdos são introduzidos gradualmente. Os pressupostos para a compreensão dos novos conteúdos foram recentemente exercitados no passo imediatamente anterior da seqüência. Testes são realizados com freqüência, para verificar o progresso. As respostas às questões de testes constam na própria pergunta. O sucesso na realização dos testes com dificuldade progressiva permite que a aluna acompanhe seu próprio progresso e desenvolva um auto-conceito de competência para aprendizagem. A redução da ansiedade e frustração crônica associada ao fracasso promove a motivação, reduz a ansiedade e extingue progressivamente os comportamentos inadequados. O erro cerceia a iniciativa e deve ser evitado a todo custo.


DESENVOLVIMENTO EM DOMÍNIOS ALTERNATIVOS

As dificuldades apresentada por muitos jovens não são de ordem intelectual, mas motivacional. Não lhes falta capacidade, o que falta é motivação. Indivíduos com características comportamentais de hiperatividade, impulsividade e impersistência têm mais dificuldades do que outras pessoas para aprender a regular seu comportamento por metas futuras. Umas das habilidades auto-regulatórias fundamentais que o indivíduo precisa adquirir para ter um bom desempenho escolar e, posteriormente, profissional, é a capacidade de postergar a gratificação. Postergar a gratificação significa realizar no momento atual tarefas que são percebidas como aborrecidas - tais como estudar - com o intuito de receber recompensas no futuro - sob a forma de notas, elogios de pais e professoras e auto-realização.

O bom desempenho escolar exige que o indivíduo abdique da gratificação imediata dos seus desejos em função de recompensas futuras. Algumas pessoas têm dificuldades em adquirir esta habilidade no contexto acadêmico. Uma alternativa então é desenvolver esta habilidade de postergação da gratificação em outros domínios. O ideal é que a criança ou adolescente se envolva em atividades extracurriculares que lhe permitam adquirir habilidades sociais, cognitivas e, eventualmente, profissionais em um contexto que não seja percebido como aversivo.

Se uma criança ou adolescente demonstra interesse por algum domínio da atividade humana, social ou profissional, o mesmo pode ser cultivado de modo que a pessoa aprenda a perceber as relações entre seus esforços e o resultado final, desenvolvendo um senso de responsabilidade e participação social e, ao mesmo tempo, contribuindo para adquirir habilidades e construir sua identidade pessoal e auto-estima.

Ninguém nasce gostando de estudar. O gosto pelo estudo se aprende. Alguns aprendem com mais facilidade. Outros têm mais dificuldade. O fracasso escolar desmotiva para o estudo. Quando isto acontece é importante desviar a atenção das dificuldades e do estudo, envolvendo a adolescente com outras atividades que possam igualmente lhe dar oportunidade de aprender que existe uma relação entre o esforço e o resultado. Algumas pessoas são mais imediatistas. Necessitam resultados mais concretos e imediatos para garantir o envolvimento com uma tarefa. Somente o sucesso na realização de uma tarefa aumenta a auto-estima e motiva o indivíduo para querer se aperfeiçoar ainda mais. Nem todos nasceram para nerd. Existem muitos domínios da atividade humana nos quais uma pessoa pode se desenvolver e aprender a ser produtiva. Se a pessoa tem dificuldades em uma área, pode procurar alternativas para se realizar. A realização em outros domínios acabará promovendo o desenvolvimento das habilidades em que a pessoa tem mais dificuldade.


PROBLEMAS COM A PUNIÇÃO

Pais e educadoras freqüentemente reagem ao fracasso escolar com medidas punitivas. A punição é um método pedagógico muito ineficiente. A punição desmotiva e contribui para que o indivíduo perceba a tarefa como aversiva. As dificuldades com a punição são diversas: 1) é muito difícil punir de forma consistente e a inconsistência inclina o indivíduo a correr o risco de se comportar mal; 2) a punição excessiva ou percebida como injusta, desmoraliza e revolta; 3) a punição somente funciona a curto-prazo; 4) a punição não contribui para o desenvolvimento de habilidades, 5) a punição exagerada pode levar a abuso; 6) a punição desgasta as relações familiares e entre a professora e a aluna, fazendo com que pais e educadoras diminuam o grau de supervisão; 7) a punição faz com que o indivíduo desenvolva estratégias de isolar os esforços educacionais de pais e professoras, 8) a punição distancia afetivamente e diminui o senso de identidade entre a criança e as autoridades parentais e escolares; 9) alguns indivíduos, denominados psicopatas, são insensíveis aos efeitos da punição. A punição deseduca: afastando as crianças dos pais e educadoras, a punição retira os jovens da órbita de influência da autoridade. Punições desproporcionais, injustas ou excessivas podem motivar o jovem a se comportar deliberadamente de modo inadequado. Se castigo desse resultado não haveria bandido no mundo.


DISCIPLINA EFICIENTE: INCENTIVO E SUPERVISÃO

As estratégias disciplinares mais eficazes são o incentivo e a supervisão. O incentivo opera maravilhas. Face a dificuldades em um domínio, o estímulo a outras atividades em que o indivíduo tenha maior motivação ou habilidade pode promover a responsabilidade, engajamento, cooperação, desenvolvimento pessoal etc. A criança desenvolve a qualidade elogiada. Elogiando sistematicamente o comportamento adequado, a atenção é desviada dos maus comportamentos ou dos fracassos. As dificuldades passam para um segundo plano. O elogio aumenta a freqüência dos comportamentos adequados, promovendo a aquisição de habilidades e competências. Ao mesmo tempo, na medida em que a atenção é retirada dos comportamentos inadequados, os mesmos deixam de ser reforçados e diminuem progressivamente de freqüência. O incentivo ao bom comportamento funciona melhor quando a atenção é retirada dos comportamentos inadequados. Isto se chama de reforçamento diferencial. Quanto mais se presta atenção em um comportamento, mais tal comportamento é reforçado. É preciso então atentar para o bom comportamento e ignorar o mau comportamento.

Mas apenas o reforçamento diferencial não basta. A supervisão é o segundo ingrediente da disciplina competente. A supervisão transmite ao jovem a sensação de interesse, controle e proteção. A supervisão atua de forma preventiva, impedindo que o jovem caia em tentação, sofra influência indevidas ou se envolva em atividades não-recomendáveis. O problema com a supervisão é que ela custa esforço e exige auto-controle do adulto. Ao desgastar as relações familiares, tornando a convivência aversiva, a punição reduz o nível de supervisão, afastando a adolescente do convívio e influência de pais e educadoras. Na adolescência diminui a influência da família e aumenta a dos pares. A falta de supervisão coloca o jovem em risco de sofrer influência de pares desviantes. Se o jovem estiver supervisão e pensar besteira, ele corre o risco de fazer besteira. A supervisão é uma forma de carinho. A supervisão opera preventivamente, ensinado ao jovem o que ele pode e o que não pode fazer. A supervisão transmite segurança e promove a competência e a autonomia.


EFEITO PIGMALIÃO

Segundo o mito, Pigmalião era um escultor grego muito habilidoso. Ele esculpiu uma figura feminina a que chamou de Galatéia. Pigmalião era tão hábil e Galatéia uma figura feminina tão bela que o escultor acabou se apaixonando porsua obra. O mesmo acontece em casa e na escola. Se os pais ou educadoras têm expectativas altas a respeito de um aluno, eles investem mais no seu aprendizado. E..., bingo!, o aluno aprende cada vez mais e melhor. O efeito Pigmalião consiste em uma forma de profecia auto-realizável muito prevalente. Por outro lado, o que acontece quando pais e educadores têm expectativas mais baixas a respeito de uma criança? A resposta é óbvia, tanto familiares quanto educadores investem menos na educação da criança e a professia auto-realizável se cumpre também. Ou seja, a criança acaba aprendendo menos ainda ou se comportando cada vez pior. Este é o famoso efeito Pigmalião invertido. Mas a situação toda pode piorar. Se a criança é percebida como importuna ou levada, pais e educadoras prestam atenção apenas no seu mau comportamento. Quando a criança se comporta bem, o adulto pensa que ela não faz nada mais do que sua obrigação. Já quando a criança se comporta mal, recebe uma reprimenda. O efeito Pigmalião invertido reforça o mau comportamneto. Pais e educadores devem investir no efeito Pigmalião. Se o desempenho da criança é olhada com óculos cor-de-rosa, a aprendizagem tende a melhorar e os comportamentos inadequados diminuem progressivamente de freqüência.


CONCLUSÕES

Os fenômenos psicológicos humanos são o desfecho de um processo delicado em complexo de interação entre influências genéticas e ambientais. A influência dos pais e educadoras é muito grande. Abandono e maus tratos têm conseqüências graves para o desenvolvimento do indivíduo, repercutindo, na maioria das vezes, sob a forma de psicopatologia. A qualidade do cuidado parental e educação se correlaciona com o sucesso educacional, profissional, status social, renda, qualidade de vida, saúde etc. O desenvolvimento pode ser equiparado a uma máquina de fazer salsicha. Se colocar carne de primeira de um lado, sai uma salsicha melhor do outro.

Por outro lado, a influência dos pais e educadores têm limites. Pais e educadoras não são omnipontes. A razão é que, assim como existtem influências ambientais, também exisem influências genéticas poderosas. Se entra carde de frango de um lado não tem como sair lingüiça suína do outro. Devido às influências genéticas, cada indivíduo nasce com um perfil de habilidades, de pontos fortes e fracos, relativamente definidos. As características temperamentais são, inclusive, mais fortemente pre-programadas dos que muitas habilidades cognitivas.

De uma certa forma, o pacote já vem pronto. O que os pais fazem é deembrulhar o pacote e aprender a conviver, adaptar-se às características da criança. Cada indivíduo tem suas virtudes e vicios. De uma certa forma, o máximo que os pais podem fazer é aprender a conviver com os filhos. Incentivar os seus pontos fortes e moderar seus pontos fracos. Um grande objetivo educacional é amortecer as repercussões negativas que determinadas características individuais têm sobre o ambiente. Pais e crianças precisam aprender a conhecer seus limites e a respeitar-se mutuamente. Não adianta nada criar expectativas irrealizávaeis. A sabedoria consiste em investir onde se pode obter retorno e não insistir com trilhas que estão vedadas. Se o indivíduo é protegido das conseqüências adversas dos seus pontos fracos por um certo tempo, ele pode ganhar a possibilidade de desenvolver outras habilidades que compensem suas dificuldades e possibilitem a auto-realização.

Os objetivos educacionais só podem ser atingidos na medida em que pais e educadoes aprenderem a conhecer e a respeitar os limites e potencialidades da criança, investindo nas potencialidades e minorando as dificuldades. Para atingir os objetivos educacionais, pais e educadoras precisam, antes de mais, desenvolver uma visão realista das suas próprias virtudes e limitações, do que eles podem e devem e do que eles não podem e não devem fazer.

Dificuldades comportamentais e de aprendizagem eliciam reações negativas do ambiente. As quais retroalimentam sobre as dificuldades, agravando-as. O desenvolvimento bem sucedido de crianças e adolescentes com dificuldades de comportamento e de aprendizagem exige que o ciclo vicioso seja rompido. A parte fraca é a criança. Quem tem condições de romper o ciclo é o adulto. O poeta Kahlil Gibran 1883-1931) escreveu uns versos que são extremamente pertinentes no contexto atual:

“Seus filhos não são seus filhos,
são filhos e filhas do apelo da própria vida.
Vêm por meio de vocês, mas não de vocês.
E embora estejam com vocês,
não lhes pertencem.
Vocês podem dar-lhes seu amor,
mas não os seus pensamentos,
porque eles têm seus próprios pensamentos.
Vocês podem acolher seus corpos,
mas não suas almas,
pois suas almas habitam a casa do amanhã,
que vocês não podem visitar,
nem mesmo em seus sonhos.
Vocês podem fazer esforço para ser como eles,
mas não tentem torná-los iguais a vocês,
porque a vida não anda para trás
nem se retarda como o ontem.
Vocês são arcos através dos quais
seus filhos são projetados como flechas vivas.
Que sua mira pela mão do Arqueiro
Seja para a Alegria”.

Kalil Gibran

O melhor que os pais podem fazer é não atrapalhar e, sim, ajudar no que puderem, a obra do Arqueiro.





DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO: PERGUNTAS E RESPOSTAS

O QUE É DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO?

Discalculia do desenvolvimento é um transtorno específico de aprendizagem caracterizado por dificuldades persistentes com a aprendizagem da aritmética, sem que se possa identificar outras causas primárias que expliquem as dificuldades. Diversos fatores concorrem para que uma criança apresente dificuldades de aprendizagem da matemática. Entre os diversos fatores que contribuem para a dificuldade de aprendizagem da aritmética podem ser mencionadas a falta de estimulação e a carência sócio-cultural e econômica, experiências inadequadas de ensino, fatores motivacionais e emocionais, tais como a fobia de matemática, déficits neurossensoriais e intelectuais etc. Quando a criança apresenta dificuldades crônicas de aprendizagem da matemática sem que seja reconhecido como contribuinte primário quaisquer um dos fatores mencionados acima, fala-se em discalculia específica de evolução ou discalculia do desenvolvimento. Tudo isso quer dizer que a discalculia do desenvolvimento é uma característica inerente ao indivíduo, de natureza constitucional. 

É importante salientar que o termo discalculia não se aplica a qualquer tipo de dificuldade de aprendizagem de matemática. A discalculia é um transtorno grave da aprendizagem da aritmética. O indivíduo tem dificuldades para realizar as operações numéricas e aritméticas mais simples. Aquelas que as crianças aprendem nos quatro primeiros anos de esccolarização formal.

As dificuldades assaociadas à discalculia surgem nos primeiros anos de escolarização. Ainda na educação infantil. Dificuldades de aprendizagem que surgem mais tarde, p. ex., quando o aluno começa a aprender álgebra, têm uma probabilidade muito menor de sere causadas por uma discalculia.



COMO É FEITO O DIAGNÓSTICO DE DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO?

O diagnóstico de discalculia exige a realização de uma avaliação clinica com o objetivo de determinar a presença de inteligência normal, defasagem de pelo menos dois anos no rendimento escolar, além da ausência de outros fatores neurológicos, pedagógicos ou sócio-emocionais que possam estar contribuindo de forma decisiva para o problema. A suspeita diagnóstica de discalculia do desenvolvimento pode ser levantada por qualquer profissional das áreas de saúde ou educação. Mas o diagnóstico exige, na maioria das vezes, a concorrência de especialistas de diversas áreas. Os profissionais da medicina, p. ex., podem contribuir para a exclusão de problemas neurossensoriais que possam estar prejudicando a aprendizagem. As profissionais de psicologia contribuem com a avaliação da inteligência, do rendimento escolar, bem como avaliação neuropsicológica etc.

Dois são os critérios principais para o diagnóstico de discalculia: o critério de discrepañcia e o critério de resposta a intervenção. O critério de discrepância postula que a criança deve ter uma defasagem entre o seu rendimento em matemática e o seu QI ou entre o rendimento em matemática e a série que está freqüentando.

O critério de resposta à intervenação exige que o diagnostico somente seja realizado após ter sido constatado que as dificuldades persistem mesmo após a condução de intervenções pedagógicas bem planejadas e conduzidas.



 QUAL É A PREVALÊNCIA DE DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO?

A prevalência ou freqüência de ocorrência da discalculia do desenvolvimento na população em idade escolar é muito semelhante à da dislexia do desenvolvimento ou dificuldades para aprendizagem da leitura. Não existem estudos realizados no Brasil, mas em diversos países do Mundo a prevalência oscila entre 3% e 6%. Um dos objetivos do projeto é, justamente, determinar a prevalência de discalculia do desenvolvimento para a cidade de Belo Horizonte.


POR QUE O DIAGNÓSTICO DE DISCALCULIA É IMPORTANTE?

Além de ser muito freqüente, a discalculia do desenvolvimento compromete o desenvolvimento do indivíduo de diversas formas: 1) contribui para a redução da escolarização e da qualificação profissional; 2) afeta o bem-estar do indivíduo e da família, causando estresse, desmoralizando a criança, diminuído sua auto-estima, a motivação para o estudo e podendo ser um fator contributório para formas de transtornos mentais; 3) a frustração associada às dificuldades crônicas de aprendizagem associa-se ao surgimento de comportamentos desadaptativos do tipo desobediência, agressividade e comportamentos antisociais. De um modo geral, a educação matemática insuficiente compromete o funcionamento do indivíduo na vida cotidiana e social, sendo um dos principais fatores associados com desemprego e renda inferior.

QUAIS SÃO AS CARACTERÍSTICAS QUE PERMITEM AOS PAIS E PROFESSORES SUSPEITAR QUE UMA CRIANÇA APRESENTA DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO? 

Em primeiro lugar, obviamente, as notas baixas em matemática. Mas existem outras características que são chamativas. As crianças com discalculia do desenvolvimento podem, p. ex., apresentar dificuldades para se orientar no tempo ou para estimar a quantidade de objetos ou tempo que necessitam para realizar uma dada tarefa. Nas atividades escolares estas crianças têm dificuldades persistentes com a realização de operações aritméticas, precisando contar nos dedos além da idade esperada, e, principalmente, tendo dificuldades para memorizar os fatos aritméticos (tabuada). Além disto, um número significativo de crianças com discalculia desenvolve sintomas de ansiedade e aversão á aprendizagem da aritmética. Entre os sintomas freqüentemente associados, mas que não fazem parte da síndrome, podem ser mencionadas as dificuldades de coordenação motora, desenho, leitura e escrita, comportamento social e agitação ou dificuldades de concentração.


QUAIS SÃO OS TIPOS EXISTENTES DE DISCALCULIA DO DESENVOLVVIMENTO? 

Existem várias fatores ou mecanismos cognitivos que contribuem para as dificuldades de aprendizagem da aritmética. Algumas crianças têm dificuldades de aprendizagem da aritmética associadas a problemas com a linguagem escrita. Cerca de 40% das crianças com discalculia do desenvolvimento apresentam dificuldades associadas de aprendizagem da aritméticas. Nas crianças com dislexia as dificuldades aparecem sob a forma de déficits na leitura dos símbolos ou operadores aritméticos: “+”, “_”, “X”, “/”. Freqüentemente as crianças disléxicas também apresentam dificuldades com a memorização dos fatos aritméticos, precisando fazer contas com os dedos.

Um outro grupo de crianças com dificuldades persistentes de aprendizagem da aritmética apresenta sintomas associados do transtorno do déficit de atenção por hiperatividade, caracterizados por déficits de concentração, impulsividade e agitação. Estas crianças têm dificuldades de memória que as impedem de armazenar corretamente os fatos aritméticos. A criança começa a ler uma conta, aí se distrai, já não se lembra mais o que fazer, aprende errado etc.

Um terceiro grupo de crianças com discalculia do desenvolvimento têm déficits associados a problemas no processamento visoespacial. A notação arábica permite que diversas operações aritméticas sejam realizadas por meio de algoritmos que facilitam os cálculos. Ocorre que os algoritmos arábicos exigem que o indivíduo tenha a capacidade de representar e manipular informações de natureza visoespacial P. ex., o sistema notacional arábico se baseia no conceito de valor posicional. Isto é, conforme a posição ocupada pelo algarismo, da direita para a esquerda, ele vai assumir o valor de um múltiplo de 10. Este é um dos conceitos mais difíceis para diversas crianças com discalculia. As dificuldades com o valor posicional se tornam mais evidentes quando é necessário usar os algoritmos arábicos para operações com números de dois ou mais algarismos que exigem empréstimos entre as casas. Problemas neuropsicológicos que afetam o processamento das noções visuais de espaço podem, portanto, comprometer a aprendizagem da aritmética.

Finalmente, algumas crianças com discalculia apresentam deficiências na própria noção de número. Os seres humanos dispõem de dois sistemas principais para representar as noções de número ou magnitude, um sistema aproximativo e um sistema exato. O sistema aproximativo ou inexato é de natureza não-simbólica, sendo muito importante quando queremos estimar, de forma grosseira, o tempo necessário para realizar uma tarefa, ou a quantidade de um certo ingrediente que se deseja acrescentar em uma receita. A representação não-simbólica de numerosidade já é observada em bebês de algumas semanas, bem como em animais. A representação precisa de número depende da interação do sistema não-simbólico com a linguagem. É somente através dos símbolos verbais ou algarismos arábicos que conseguimos representar de forma exata as quantidades. A criança adquire a noção precisa de numerosidade aprendendo a contar. As evidências disponíveis sugerem que algumas crianças com discalculia do desenvolvimento têm dificuldades mais graves, devidas a uma insuficiência de desenvolvimento da própria noção de número.


POR QUE É IMPORTANTE RECONHECEER O TIPO DE DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO APRESENTADO PELO ALUNO?  

A importância da caracterização do perfil neuropsicológico de discalculia se relaciona às intervenções pedagógicas. Se a dificuldade é mais verbal, os déficits podem ser compensados através de estratégias de estimação não-simbólica. Se o déficit é mais espacial, o ensino deve se basear em estratégias verbais. Caso, entretanto, haja evidências de um comprometimento do próprio conceito de número a situação é mais complexa. Há pouca coisa que se possa fazer por estes indivíduos. Felizmente, estes casos são raros. Mesmo nos casos de déficits no próprio conceito de numerosidade o reconhecimento da natureza do problema é o primeiro passo para ajudar o indivíduo, a família e os educadores a aceitá-los.


CONTAR NOS DEDOS AJUDA OU ATRAPALHA?

Não, contar nos dedos não é anormal. Todos seres humanos aprendem a contar usando os dedos. Uma evidência neuropsicológica importante para isto é que as áreas cerebrais, no lobo parietal, que representam os números são vizinhas àquelas que representam os dedos. Crianças em idade pré-escolar que usam os dedos de forma eficiente para contar e realizar operações têm desempenho superior em aritmética na idade escolar. O treinamento do uso dos dedos na idade pré-escolar promove a aprendizagem da aritmética. As crianças deixam de contar sistematicamente nos dedos na transição entre a 2ª. e a 3ª. série, quando automatizam a tabuada. Esporadicamente, as crianças ainda lançam mão da estratégia de contar nos dedos e isto não é anormal. A persistência do uso sistemático dos dedos associada á deficiência na memorização da tabuada constitui, entretanto, um sinal de alerta após uma certa idade.


QUAL É A ETIOLOGIA DA DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO? 

As causas das dificuldades crônicas e persistentes de aprendizagem da aritmética não associadas a problemas pedagógicos, motivacionais, intelectuais ou sócio-culturais ainda não estão definitivamente estabelecidas. As evidências indicam uma disfunção neurológica de origem genética. As evidências para isto são relacionadas a 1) comorbidade entre discalculia do desenvolvimento e outros transtornos cognitivos de origem neurológica, 2) agregação familiar e herdabilidade elevada das dificuldades de aprendizagem da aritmética, 3) presença de discalculia do desenvolvimento como um sintoma central em muitas síndromes genéticas. Algumas formas de discalculia do desenvolvimento se associem a variações no código genético presentes em algumas síndromes genéticas. Alguns indivíduos com formas frustras de síndromes genéticas, tais como a síndrome de Turner e síndrome velocardiofacial, podem apresentar apenas dificuldades de aprendizagem da matemática, sem os outros sintomas.


O QUE É ANSIEDDE MATEMÁTICA?

Ansiedade matemática é um tipo de transtorno fóbico apresentado por alguns indivíduos. Geralmente, em decorrência de alguma experiência negativa com a aprendizagem de matemática o indivíduo desenvolve um baixo auto-conceito no quanto à sua habilidade de aprender matemática. A pessoa com fobia de matemática desenvolve sintomas de ansiedade quando pensa no assunto ou quando se confronta com a necessidade de realizar operações aritméticas ou estudar o assunto. A ansiedade matemática pode causar comportamentos evitativos em relação ao assunto, compromentendo o desenvolvimento educacional do indivíduo. Sabe-se que a ansiedade matemática é comum na população, que ela é socialmente mais aceita do que as dificuldades de aprendizagem da leitura. Não está clara a relação entre ansiedade matemática e outras formas de transtorno de ansiedade. É sabido também que a comportamento fóbico em relação à matemática está presente nos indivíduos com discalculia. Mas não se sabe exatamente qual é a freqüência de indivíduos fóbicos que não apresentam discalculia.


EXISTEM TRATAMENTOS EFICAZES PARA A DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO? 

Existem sim. Idealmente, os transtornos de aprendizagem deve ser tratados a partir de um conceito multidisciplinar, biopsicossocial. A avaliação deve ser abrangente e considerar todos os possíveis fatores que possam estar contribuindo para o problema. O cerne do atendimento é psicopedagógico, mas outros profissionais podem contribuir de forma significativa. O médico neurologista, p. ex., pode excluir e/ou tratar fatores agravantes, tais como transtornos de ansiedade, depressão hiperatividade, epilepsia etc. As psicólogas desempenham um papel importante no diagnóstico do potencial intelectual, perfil neuropsicológico bem como diagnóstico e tratamento de fatores motivacionais e afetivos correlatos. Outros profissionais, como fonoaudiólogas e terapeutas ocupacionais podem contribur significativamente no atendimento de dificuldades da linguagem e/ou da coordenação motora, atenção etc. O ideal é que o plano de tratamento seja formulado de forma colaborativa entre a criança, os pais, as educadoras e os demais profissionais. Uma avaliação neuropsicológica permite reconhecer os pontos fortes e fracos da crianças, contribuindo para o planejamento das estratégias mais eficazes de intervenção. O tratamento deve focalizar os níveis orgânico, educacional e psicológico. Apesar de o tratamento ser multidisciplinar, nem todas as intervenções devem ser realizas simultaneamente. O tratamento é implementado a longo prazo e envolve um custo enorme em termos de recursos de trabalho e tempo, emocionais, financeiros etc. Devem ser estabelecidas prioridades, de comum acordo entre os envolvidos. Nenhum tratamento será eficaz se não for aceito pelo cliente principal que é a criança. É preciso considerar também e fazer bom uso dos recursos disponíveis na comunidade. O atendimento deve ser coordenado por um profissional de referência, o chamado case manager, no qual a família e o cliente confiam e o qual conhece a fundo o caso e as necessidades da criança.


COMO OS FATORES MOTIVACIONAIS INFLUENCIAM A APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA? 

Os seres humanos somente se motivam para fazer aquilo que percebem estar ao alcance da sua competência. Quando a pessoa acredita que ela consegue realizar uma tarefa com um pequeno esforço, ela irá dispender energia na realização da mesma. Caso a pessoa perceba a tarefa como estando acima do seu alcance, ela se desmotiva. As dificuldades de aprendizagem desmotivam e desmoralizam a criança, além de desgastarem as relações familiares. Crianças, pais e educadoras ficam ansiosas e frustradas em função do mau rendimento escolar. A atenção dos pais e educadores concentra-se nas dificuldades, desviando-se dos comportamentos adaptativos das crianças, os quais são dados de barato. O foco nas dificuldades e negligência dos comportamentos adaptativos constitui uma forma de reforçamento diferencial, o qual agrava ainda mais o problema.

Confrontada com dificuldades persistentes, com um nível de exigência percebido como acima das suas possibilidades, percebendo a ansiedade comunicada de forma implícita pelos adultos, a criança vai progressivamente se desmoralizando e se desmotivando para o estudo. O passo seguinte neste contínuo é o agravamento das dificuldades de aprendizagem acompanhado do surgimento e/ou agravamento das dificuldades disciplinares e comportamentais freqüentemente comórbidas com os transtornos de aprendizagem.

Uma das formas mais eficazes de atenuar as dificuldades motivacionais e ajudar a resolver os problemas de aprendizagem é representado pela proposta da aprendizagem sem erro. A aprendizagem sem erro se baseia no pressuposto de que o erro interfere de diferentes maneiras com a aprendizagem. Após aprender errado o trabalho é dobrado para desaprender o errado e aprender o certo. O erro interfere com a aprendizagem. O fracasso frusta, desmotiva e desmoraliza. O primeiro passo então é realizar um diagnóstico preciso do perfil de pontos fracos e fortes, do domínio dos conteúdos curriculares e do estilo de aprendizagem e pensamento do aluno.

A partir do diagnóstico do nível de domínio curricular, do estilo cognitivo e do perfil de pontos fortes e fracos é possível programar o grau de dificuldade das tarefas, de modo tal que elas se situem ao alcance do aluno, com um pequeno esforço. As técnicas de ensino programado ilustram o processo. O grau de dificuldade é hierarquizado e a aprendizagem procede passo a passo. Os novos conteúdos são introduzidos gradualmente. Os pressupostos para a compreensão dos novos conteúdos foram recentmente exercitados no passo imediatamente anterior da seqüência. Testes são realizados com freqüência, para verificar o progresso. As respostas às questões de testes constam na própria pergunta. O sucesso na realização dos testes com dificuldade progressiva permite que o aluno acompanhe seu próprio progresso e desenvolva um auto-conceito de competência para aprendizagem. A redução da frustração crônica associada ao fracasso promove a motivação, reduz a ansiedade e extingue progressivamente os comportamentos inadequados.


O QUE É O TRANSTORNO NÃO-VERBAL DE APRENDIZAGEM?

O transtorno não-verbal de aprendizagem (TNVA) é uma forma de dificuldade crônica de aprendizagem escolar de provável causa neurodesenvolvimental que apresenta a discalculia do desenvolvimento como um dos seus sintomas principais. Os transtornos de aprendizagem escolar podem ser classificados como verbais, não-verbais ou mistos. Fala-se em transtorno específico de aprendizagem quando uma criança apresenta dificuldades crônicas de aprendizagem, as quais não podem ser atribuídas a déficit intelectual, inadequações pedagógicas ou transtornos psiquiátricos. Com uma prevalência em torno de 5% a dislexia-disortografia constitui o exemplo mais freqüente e típico de transtorno verbal de aprendizagem. O TNVA compromete cerca de 1% das crianças em idade escolar e se expressa sob a forma de 1) incoordenação motora, 2) déficits visoespaciais, 3) discalculia, 4) déficits no pensamento inferencial, principalmente não-verbal e cognição social.

Apesar de terem inteligência na faixa da normalidade, as crianças com TNVA são freqüentemente confundidas com casos de retardo mental. As dificuldades de aprendizagem são persistentes. Estes indivíduos são pouco intuitivos e necessitam de uma espécie de manual de instrução verbal para compreender o mundo e funcionar adaptativamente. Os pontos fortes destas crianças são o vocabulário, a sintaxe, mecânica da leitura e escrita e a memória auditivo-verbal. Muitos indivíduos são verbosos. Do ponto de vista social estes indivíduos podem exibir comportamentos inadequados, desajeitados, sendo socialmente rejeitados. As dificuldades com a realização de inferências não-verbais faz com que estes indivíduos tenham muita dificuldade para ler o ambiente, para decodificar os sentimentos e emoções alheios. O comportamento pode se tornar então inadequado. O indivíduo ri na hora errada. Ou então demonstra afetos negativos quando não deveria. A tendência a uma interpretação literal dos enunciados dificuldade a interação social e a compreensão da leitura. Na idade pré-escolar as crianças com TNVA podem ser agitadas, mas gradualmente as dificuldades emocionais associadas com ansiedade e baixa auto-estima adquirem predomínio no quadro psiquiátrico associado.

O TNVA constitui o fenótipo cognitivo de muitas síndromes adquiridas tais como a síndrome fetal alcoólica, ou genéticas. Entre as principais síndromes genéticas que se caracterizam por um perfil de tipo TNVA podem ser mencionadas a síndrome de Turner, a síndrome velocardiofacial, a síndrome de Asperger, a síndrome de Williams e outras. O reconhecimento do TNVA é importante por vários motivos. Em primeiro lugar para não confundir estes indivíduos com deficientes. Em segundo lugar para estabelecer expectativas realistas de desempenho. O vocabulário adequado e a verbosidade podem fazer com que pais e educadores desenvolvem expectativas irrealistas de desempenho, as quais, quando frustradas, desorientam todas as partes interessadas. Mas, principalmente, o diagnóstico é importante devido a suas implicações pedagógicas. Como os indivíduos com TNVA são pouco intuitivos eles não aprendem bem espontaneamente, fazendo inferências a partir da interação com situações-problema ou em situações sociais com colegas. Os indivíduos com TNVA exigem formas mais dirigidas de ensino, programadas, baseadas em técnicas de verbalização explícita e de memorização de instruções.

Sunday, December 27, 2015

O ESTALO DE VIEIRA

Pode um indivíduo com dislexia vir a se transformar em um dos maiores escritores de uma língua?

A resposta talvez seja positiva. Estill (2006) conta a interessantíssima história do Padre Antônio Vieira (1608-1697). Ele estudava havia já anos nos Jesuítas da Bahia. E não conseguia aprender a ler. Estava sendo alvo de chacota dos colegas. Estill (2006, p. 146) cita o biógrafo Azevedo (1918): “Compreendia mal, decorava a custo, fazia com dificuldade as composições”. Ainda assim não desistia nem dos estudos nem de si.



A  caminho dos estudos, os alunos sempre passavam pelo altar de Nossa Senhora das Maravilhas. Vieira orava muito. Até que um dia, em meio às suas preces “sentiu como estalar qualquer cousa no cérebro, como uma dor vivíssima, e pensou que morria; logo o que parecei obscuro e inacessível à memória, na lição que ia dar, se lhe volveu lúcido e fixo na retentiva. Deu-se-le na mente uma transformação de que tinha consciência. Chegado às classes pediu para rgumetnar e com pasmo do mestre venceu a todos os condiscípulos” (Azevedo, 1918, cit. In Estill, 2006, p. 146).

Referência


Estill, C. A. (2006). O estalo de Vieira à espera da leitura. Revista de Psicopedagogia, 23, 145-151.

Trinta anos de redes neurais e neuroimagem funcional: o que sobrou da neuropsicologia

Haase, V. G. (2014). Trinta anos de redes neurais e neuroimagem funcional: o que sobrou da neuropsicologia. Boletim daSBNp, Setembro, pp. 12-15.

A década de 1980 testemunhou dois avanços importantes na neurociência cognitiva. Em 1986 foi publicado o livro de referência das redes neurais conexionistas ou processamento distribuído e paralelo (McClelland et al., 1986, Rumelhart et al., 1986). Dois anos depois foi publicado o estudo clássico de Petersen e cols. (1988),  usando tomografia por emissão de pósitrons para identificar as áreas cerebrais ativadas pelo processamento lexical. As redes neurais demonstraram que era possível simular desempenhos cognitivos relativamente complexos utilizando modelos com algumas dezenas ou centenas de unidades muito simples, organizadas de forma maciçamente paralela, sem uma arquitetura previa sofisticada, sem programação explícita e servindo-se apenas de uma regra de correção de erro nas respostas do sistema. Os comportamentos complexos simplesmente emergem da dinâmica de um sistema de input-output com uma camada intermediária, desde que seja utilizada uma regra de aprendizagem ou correção de erro, a qual diminui a discrepância entre os padrões de ativação exibidos pela rede e os padrões almejados de output.





Aparentemente, os modelos de rede neural questionaram a pressuposição tradicional em neuropsicologia de localizacionismo funcional, uma vez que desempenhos cognitivos complexos podem emergir em sistemas organizados de forma não-modular. Mais ainda, lesões em sistemas não-modulares podem, inclusive, resultar em efeitos de dissociação dupla entre funções preservadas e comprometidas (Kello, 2003), os quais são tradicionalmente interpretados como evidência para uma organização modular do cérebro-mente. A neuroimagem funcional reforçou esta hipótese ao mostrar que tarefas cognitivas relativamente simples e especificas podem recrutar uma rede distribuída de estruturas cerebrais para sua implementação.

As  investigações com redes neurais e neuroimagem funcional parecem sugerir, portanto, que a atividade neural subjacente mesmo às tarefas cognitivas mais simples e específicas recruta uma rede neuronal geograficamente dispersa no cérebro. Isto contribuiu para abalar a confiança dos neuropsicólogos nos postulados do localizacionismo. Ao longo das décadas seguintes foi progressivamente diminuindo a quantidade de estudos com pacientes e aumentando a proporção de estudos com neuroimagem funcional nos principais periódicos de neuropsicologia, tais como Neuropsychologia ou Cortex. A história da neuropsicologia se caracteriza por uma disputa recorrente entre defensores e detratores do “localizacionismo” (Haase et al., 2012, Lecours et al., 1992). O localizacionismo parece estar mesmo em baixa nos tempos atuais.

Alguns episódios vivenciados por mim podem ser tomados como evidência do baixo astral localizatório que assombra a neuropsicologia atual:

1.     Uma aluna foi apresentar um pôster em um congresso e ficou muito frustrada porque a avaliadora lhe disse que sua interpretação dos resultados era muito localizacionista e que o localizacionismo teria “caído”. Ela não soube o que responder;
2.     O revisor de um artigo que eu enviei para publicação também questionou algumas das minhas interpretações dos resultados por serem, supostamente, muito localizacionistas. Eu soube o que responder e o paper foi publicado;
3.     Em uma discussão de um grupo de trabalho eu defini a característica distintiva da neuropsicologia como sendo o estudo das correlações estrutura-função em pacientes com algum tipo de lesão ou disfunção cerebral. Um dos colegas participantes da discussão teve muita dificuldade em aceitar essa afirmação. Não ficou claro, entretanto, como ele propunha caracterizar alternativamente e neuropsicologia. Ou seja, o que ele colocaria no lugar da boa e velha correlação anátomo-clinica. Eu continuo convencido de que a correlação anátomo-clinica não morreu e permanece sendo a característica distintiva da neuropsicologia. Antes eu andava nos corredores da FAFICH e me xingavam de positivista. Agora me xingam de localizacionista. Consola-me pensar que estou em boa companhia.

Historicamente o pêndulo tem oscilado entre o localizacionismo e o anti-localizacionismo. As redes neurais e os métodos de neuroimagem parecem colocar a neuropsicologia clássica em questão. Mas será que é assim mesmo? Acredito que trinta anos depois temos condições de traçar um quadro mais equilibrado da situação, incorporando as evidências de redes neurais e neuroimagem funcional ao corpo de doutrina da neuropsicologia (Shallice & Cooper, 2011). Esta perspectiva mais equilibrada do localizacionismo deve considerar, entre outras, as seguintes evidências teóricas e empíricas:

1.     O localizacionismo estrito é um mito. Talvez nem mesmo Broca fosse um localizacionista tão ingênuo assim como se lhe costuma atribuir. O localizacionismo burro parece existir apenas como um espantalho criado na cabeça dos seus adversários. Carl Wernicke, p. ex., já tinha uma concepção conexionista e distribuída da localização cerebral (Gage & Hickok, 2005), muito semelhante à que é defendida contemporaneamente (Haase et al., 2008, 2010, Mesulam, 1998).

2.     As duplas dissociações em redes não estruturadas modularmente ocorrem apenas quando o sistema consiste de um número pequeno de unidades. Em redes não-modulares maciçamente maiores predominam os efeitos de massa após lesões de magnitude crescente (Bullinaria & Chater, 1995). Conseqüentemente, não se pode esperar efeitos de dissociação dupla após lesões de um sistema tão complexo como cérebro  humano se o mesmo não for organizado modular e hierarquicamente.

3.     Estudos de neuroimagem funcional usando a técnica de conectividade funcional mostram que o padrão de conexão para as principais redes funcionais descobertas pelos neuropsicólogos é tão forte que pode ser identificado mesmo em repouso (Meunier et al., 2010).

4.     As pesquisas sobre conectividade funcional mostram também que as principais redes funcionais desvendadas pelos neuropsícólogos já estão ativas desde o nascimento (Power et al., 2010). Ou seja, o cérebro humano não é uma tábula rasa ao nascimento, mas sim, uma estrutura complexa, modularmente hierarquizada, mas que também suporta processamento paralelo e se adapta de forma plástica e dinâmica em função da experiência.

5.     Além de validar a localização lesional das principais síndromes neuropsicológicas (Catani et al., 2012), as pesquisas com tractografia têm demonstrado amplamente a validade do conceito de síndrome de desconexão proposto pelos neuropsicólogos clássicos (Catani & ffythce, 2005, Geschwind, 1965a,b).

6.     Os métodos de neuroimagem funcional atualmente disponíveis são muito imprecisos quanto à sua resolução espacial e temporal. Métodos neurofisiológicos com uma maior resolução temporal demonstram, p. ex., que padrões de ativação que parecem distribuídos em uma janela temporal de alguns segundos correspondem, na verdade, à uma ativação sequencial com uma dinâmica de dezenas a centenas de milissegundos (Sahin et al., 2009).

7.     Os padrões de ativação distribuída em estudos de neuroimagem funcional indicam as áreas cerebrais potencialmente envolvidas em uma tarefa, mas não podem identificar as áreas que são cruciais para um determinado desempenho cognitivo (Price, 2000). Desta forma, a neuroimagem pode ser mais útil no contexto da descoberta, ou seja, na identificação de possíveis correlações estrutura-função. Os estudos com pacientes e a estimulação magnética transcraniana, por outro lado, são imprescindíveis no contexto de verificação, para identificar as áreas cuja integridade funcional é absolutamente necessária para um dado exercício funcional.

Até cerca de 30 anos atrás a neuropsicologia era o único método não-invasivo para inferir relações sistemáticas entre a integridade anatômica de determinados circuitos funcionais e a implementação de diversos processos psicológicos (Shallice, 1988). Este panorama mudou radicalmente. Em função do desenvolvimento tecnológico dispomos atualmente de recursos que permitem investigar as correlações estrutura-função in vivo. Entretanto, ao invés de desbancarem a neuropsicologia, as novas tecnologias contribuem mais para validá-la, complementá-la e expandí-la.

À medida que o conhecimento se acumula fica mais claro que as novas tecnologias também se ressentem de importantes limitações. As redes neurais são mais úteis na formulação precisa e matematização de hipóteses do que na sua verificação. Além de importantes restrições estatísticas decorrentes das análises superpostas e probabilidade de erro de tipo II, bem como  quanto à sua resolução espaço-temporal, a neuroimagem funcional também é mais útil na formulação de hipóteses do que na sua verificação. Acrescida da estimulação magnética transcraniana, a neuropsicologia permanece sendo o único método disponível para estabelecer relações necessárias entre a  integridade anatômica de uma dada estrutura neural e um determinado processo psicológico.

A melhor compreensão das vantagens e limitações de cada método permite aos pesquisadores utilizar-se de uma estratégia de validação convergente para testar seus modelos (Shallice & Cooper, 2011). Os modelos mais válidos são aqueles sustentados por um conjunto maior de evidências convergentes a partir de diferentes abordagens. O localizacionismo não morreu. Seu sobrenome é distribuído. Mas você viu algum autor na história recente da neuropsicologia defender um localizacionismo estrito, burro? Do tipo tal função é implementada por tal centro? Desde Freud (1891) ninguém mais pensa assim em neuropsicologia. Só os adversários e os quinta-coluna, que querem corroer a neuropsicologia por dentro. A neuropsicologia não é mais o único nem o principal método inferencial para estabelecer correlações estrutura-função. Nasceram uma série de irmãs mais jovens. Mas a neuropsicologia continua aí e até hoje não pode ser descartada. Nâo é mais uma princesinha, mas também não é uma borralheira.


Referências

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