Saturday, March 12, 2016

Problematizando e desproblematizando as síndromes neuropsicológicas

Já trabalhei em diversas comissões na Universidade e fora dela, nas quais são avaliados os méritos científicos e éticos dos mais diversos tipos de projetos de pesquisa. Uma das coisas que mais me incomoda são aqueles projetos cujo principal objetivo declarado é “problematizar” alguma coisa. Eu me diverti demais outro dia lendo o Percival Puggina: "Quando algum pedagogo fala em problematizar algo, ele está afirmando que vai reduzir esse algo a coisa nenhuma". Fico contando os anos de serviço para poder me livrar desse tipo de besteira.

Uma das coisas que eu vou tentar fazer nas minhas aulas no curso de Grandes Síndromes Neuropsicológicas será desproblematizá-las. Mas para desproblematizar algo, primeiro há que problematizar. Quer dizer: Há algum problema com as síndromes neuropsicológicas? Vamos colocar chifre em cabeça de burro?



Parafraseando Terêncio, tão ao gosto do pessoal psi, tudo que é humano é problematizável. Essa razão pela qual fica ridículo colocar a problematização de algo como objetivo de um projeto de pesquisa. Geralmente o povo que quer problematizar as coisas é um bando de infelizes, desajustados, gente inconformada com a realidade e que gostaria que o mundo se adequasse às suas fantasias. Problematizar, nesse sentido, significa então fantasiar como o mundo deveria ser para se ajustar ao desejo do sujeito.

As síndromes neuropsicológicas são problemáticas em um sentido diferente. Como qualquer construto científico as síndromes neuropsicológicas se associam a um perfil de fortalezas e fraquezas. Para compreender isso é preciso voltar um pouco atrás na história da neuropsicologia.

Uma síndrome em medicina é um conjunto de sinais (manifestações objetivas de doença) e sintomas (manifestações subjetivas) que gostam de andar juntos. Eles co-ocorrem com uma freqüência maior do que aquela determinada pelo acaso. Nem todos os sinais e sintomas de uma síndrome andam juntos todo o tempo, assim como o marido e a mulher não passam o tempo todo se chicleteando. Em um dado paciente podem ocorrer alguns e não outros sinais e sintomas. Em um segundo paciente podem ocorrer os outros e não os alguns.

O importante é que os padrões de co-ocorrência são sistemáticos. O desafiador no diagnóstico é reconhecer o padrão, reconstruí-lo a partir de manifestações fragmentárias, a partir de formas frustras. Essa é a habilidade que vem com a experiência e que caracteriza o famoso olho clinico.

Se alguém quiser problematizar as síndromes, reduzí-las verdadeiramente a pó, basta perguntar pela sua validade interna. Se a expectativa é de que todos os sinais e sintomas andem juntos o tempo todo, então as síndromes não valem nada. Mas se todas as manifestações ocorressem juntas o tempo todo não haveria arte no diagnóstico, seria tudo apenas uma questão de engenho. O problema das síndromes não é tanto a validade ou consistência interna. Nem sempre todos os componentes são observáveis, mas geralmente há uma padrão. O sal da clinica é reconhecer os padrões a partir de fragmentos.

Falamos sobre a validade interna das síndromes. Vimos que ela pode ser problematizada. Mas, o que dizer da sua validade externa? A validade externa das síndromes diz respeito à localização lesional. A importância das síndromes deriva do fato de que elas apontam para as localizações lesionais. A afasia de Broca sugere uma lesão ínfero-frontal esquerda, a afasia de Wernicke uma lesão póstero-súpero-temporal esquerda, a síndrome de Gerstmann uma lesão na região do giro angular esquerdo, a síndrome de heminegligência visoespacial esquerda uma lesão na encruzilhada têmporo-parietal direita, a amnésia retrógrada uma lesão temporal neocortical bilateral, a amnésia anterógrada uma lesão temporal medial bilateral, a síndrome pseudopsicopática uma lesão pré-frontal ventromedial e a síndrome depressiva uma lesão emporal dorsal medial ou lateral etc. etc.

As principais síndromes neuropsicológicas foram descritas na segunda metade do século XIX e primeira metada do século XX. Poucas síndromes novas foram descritas nas últimas décadas. O foco de interesse dos pesquisadores mudou. Mas isso não quer dizer que as síndromes sejam inúteis. O charme das síndromes é que elas apontam com um certo grau de confiabilidade para a localização lesional. E isso não era pouca porcaria numa época em que não havia técnicas não-invasivas de neuroimagem.

A confiabilidade das síndromes isoladamente tomadas é relativamente baixa, com uma acurácia em torno de 70%. O que não deixa de ser surpreendente para um método que é clinico e não-invasivo, ou seja, quick and dirty.

Um outro grande feito associado à caracterização das síndromes foi a descoberta de que, conforme previsto pela doutrina localizacionista, o cérebro humano pode ser decomposto em uma meia dúzia de módulos ou redes neurais distintas: a) Um sistema posterior ventral lateralizado principalmente para a direita que se associa ao reconhecimento visual de objetos e atribuição do significado emocional; b) Um sistema dorsal relacionado com a localização visuospacial e programação da ação; c) Dois sistemas lateralizados para a esquerda e relacionados com a linguagem. Um sistema ventral associado ao acesso e representação semântica e um sistema dorsal relacionado com a fonologia e a sintaxe; d) Sistemas temporais mediais responsáveis pela criação de uma linha do tempo, pela aprendizagem a longo prazo, pela construção de uma representação do self e pela atribuição de significado emocional à experiência; e) Diversos sitemas auto-regulatórios no córtex pré-frontal ventral (antecipação das conseqüências do comportamento) e dorsal (memória de trabalho, estratégia, raciocínio etc.).

A validade externa das síndromes neuropsicológicas pode então ser problematizada se nos questionarmos sobre a validade dos pressupostos localizacionistas sobre os quais se assenta. Aquela meia dúzia de sistemas descoberta pelos neuropsicológos clássicos não sé localizável no sentido estrito. Nunca houve localizacionismo estrito. Pelo menos não desde Carl Wernicke, o fundador da escola clássica conexionista de neuropsicologia. O cérebro nunca foi concebido como um mosaico de “centros funcionais” isolados, como Freud acusava falsamente os “localizacionistas”. Desde o tempo de Theodor Meynert e Carl Wernicke era conhecido o papel da substância branca conectando as múltiplas unidades neuronais entre si. E tem mais, o Wernicke já propunha que essas conexões podiam ser formadas, reforçadas ou enfraquecidas em função da experiência.

Nada muito diferente do que pensamos hoje em dia. É claro que conhecemos uma infinidade de detalhes que escapavam ao Wernicke. É claro que temos um sistema conceitual muito mais preciso e refinado, resultante de décadas de cooperação interdisciplinar e sofisticação tecnológica crescente. Acumulamos uma massa de informação, da qual emergem mudanças qualitativas. Mas o termo chave é esse: acúmulo. Existe uma progressão, um percurso de avanço do conhecimento, o qual, até o momento pode ser identificado e perseguido de forma linear.

Mas a concepção que os clássicos tinham da localização cerebral também era distribuída. Alexandr Luria falava em sistemas funcionais. Cada sistema funcional correspondia a um padrão de atividade de uma ampla rede de unidades neuronais dispersas por regiões corticais e subcorticais. Muitas unidades neuronais eram compartilhadas por diversas redes entre si. A identidade das redes era conferida pelos padrões espaço-temporais de ativação. Bem que nem pensamos hoje em dia.

Mas de onde surgiu essa concepção abjeta de “localizacionismo estrito”? O suposto localizacionismo estrito é um artifício argumentativo, um “espantalho” retórico criado por autores que defendiam ser o cérebro uma estrutura indiferenciada. Uma evidência disso é a famosa figura proposta por Ludwig Lichtheim para o modelo conexionista clássico das afasias, a chamada “Casinha” de Lichtheim.


Todos os livros texto apresentam a casinha de Lichtheim. A casinha é muito útll na explicação de diversas síndromes afásicas. P. ex., a interrupção das conexões auditivas para as imagens acústicas das palavras (A) causa a surdez verbal pura. A destruição de A causa a afasia de Wernicke. A destruição de M causa a afasia de Broca, a desconexão entre A e M causa a afasia de condução e a desconexão entre M e as eferências motoras causa disartria. As lesões posteriores prejudicam mais a compreensão enquanto as lesões anteriores prejudicam mais a expressão lingüística.

As lesões simultâneas de A e M causam a afasia global e as interrupções entre o circuito central A-M da linguagem e o centro conceitual B causam as afasias transcorticais. As lesões do circuito A-M central da linguagem comprometem a repetição de palavras e frases. As desconexões transcorticais não comprometem a repetição. As desconexões transcorticais parciais posteriores comprometem a compreensão. As parciais posteriores comprometem a iniciativa discursiva. A desconexão de todo o circuito A-M causa o isolamento da área da linguagem, no qual indivíduo perde todo uso funcional da linguagem, mas mantém a capacidade de repetir.

A Casinha de Lichtheim é, reconhecidamente, um feito epistemológico. Nâo me canso de admirá-la. Como é que alguém conseguiu fazer tanto com tão pouco? Ela sintetiza de forma brilhante toda uma concepção neurolíngüística e, ao mesmo tempo, constitui-se em uma ferramente clinica de aplicação direta. A sua principal limitação é a postulação de um centro conceitual único (B). Isso é um absurdo. Uma simplificação grosseira. Tanto é uma simplificação grosseira que o próprio Lichtheim reconhecia isso e propôs então um segundo diagrama, a “Coroa” de Lichtheim.



Seria uma burrice enorme supor que a diversidade e multiplicidade conceitual que caracteriza a mente humana pudesse ser representada em um único “centro funcional”. Ou que houvesse um centro funcional especializado para cada conceito ou categoria. Atualmente sabemos, graças aos estudos de pacientes com seqüela de encefalite herpética e com demência semântica, bem como graças aos estudos de neuroimagem funcional, que os conceitos são representados de forma fragmentária e distribuída por amplas regiões corticais. Principalmente áreas neocorticais ínfero-laterais, mas também áreas têmporo-parieto-occipitais e áreas frontais relacionadas aos mecanismos perceptuais e motores dos quais os conceitos derivam.

A Coroa de LIchtheim é uma demonstração cabal de que os autores do século XIX já entendiam perfeitamente que os conceitos são representados de forma distribuída pelo cérebro e que as correlações anátomo-clinicas são complexas. Foi a ignorância de uns e a má fé de outros que fez prosperar o mito do “localizacionismo estrito”, um espantalho abandonado pelo menos desde Wernicke  e Lichtheim. Nenhum livro texto de neurologia ou neuropsicologia mostra a Coroa de Lichtheim. Ela só freqüenta a literatura mais especializada, visitada apenas pelos expertos.

Com isso fica claro que as síndromes neuropsicológicas possuem validade externa, que essa validade deriva do seu poder localizatório e que as concepções localizatórias dos autores clássicos não eram tão toscas assim como muitas vezes se quer crer. É forçoso admitir, entretanto, que a acurácia localizatória das síndromes clássicas é baixa. Mas isso não lhes retira o charme de localizar de forma rápida e não invasiva, ainda  que grosseira e suja, as manifestações de comprometimento cerebral.

Até agora eu só desproblematizei as síndromes neuropsicológicas. Mostrei que elas não são do mal, nem constituem um mecanismo ideológico patriarcal e imperialista de dominação de classe, gênero ou raça. Mas eu prometi lá no inicio que iria problematizar um pouquinho também.

O conhecimento neuropsicológico não parou de avançar com a descoberta e caracterização das síndromes neuropsicológicas. O repertório básico de síndromes foi descrito até meados do século XX. Pode ser que ainda se venha a descobrir alguma síndrome nova. Mas o foco de atenção atualmente é outro. Por um lado, o advento das técnicas não-invasivas de neuroimagem diminuiu o interesse pelas síndromes como instrumento de localização lesional.

Por outro lado, as síndromes não se prestam a uma análise cognitiva que permita a elucidação dos processos psicológicos ou neurocomputações implementados por cada um daquela meia dúzia de sistemas funcionais descobertos pela neuropsicologia e confirmados e ampliados pela neurociência cognitiva.

As síndromes ajudaram a descobrir os módulos, ou redes neurais que compõem o cérebro-mente humano. Mas  como elas foram descobertas de modo ad hoc, bottom-up, baseadas em teorias psicológicas muito rudimentares, elas não se prestam a ser analisdas em termos de processos informacionais.

Vejamos o caso das afasias. Qual é o significado funcional psicológico ou computacional de não conseguir versus conseguir repetir palavras e frases? A afasias de Wernicke e Broca podem, respectivamente, ser reduzidas a transtornos do processamento semântico e sintático? Qual é o componente funcional comum, subjacente aos sintomas de agnosia digital, desorientação direita-esquerda, acalculia e agrafia obervados na síndrome de Gerstmann?

A resposta a todas essas questões é negativa. Analisar as síndromes neuropsicológicas clássicas em termos de processos cognitivos teoricamente consistentes ou em termos computacionais exige uma tamanha ginástica mental que a tarefa se transforma em mission impossible. Foi tentando desvendar seu substrato cognitivo, funcional, que os pesquisadores se aperceberam das suas limitações como método inferencial.

As dificuldades para interpretar as síndromes neuropsicológicas em termos de processos psicológicos teoricamente relevantes estão na origem da neuropsicologia cognitiva e neurociência cognitiva. As síndromes constituíram o principal instrumento heurístico para investigar as bases neurais do comportamento até um determinado momento. Os pesquisadores perceberam então que precisavam refinar seu arcabouço teórico e que nem sempre (ou quase nunca?) as razões pelas quais os sinais e sintomas co-ocorrem nas síndromes são de natureza funcional. Em muitos casos, tais como fica claro na síndrome de Gerstmann, as razões são anatômicas. Ou seja, os sintomas podem co-ocorrer apenas porque áreas geograficamente vizinhas e irrigadas por um determinado ramo arterial representam as funções comprometidas.

As limitações das síndromes como um método inferencial para estabelecer correlações cérebro-comportamento estão sendo superadas graças a desenvolvimentos teóricos e metodológicos representados pela ciência cognitiva e pela neuroimagem funcional. Inicialmente, os neuropsicólogos cognitivos caracterizaram os padrões de funções comprometidas e preservadas em pacientes neuropsicológicos em termos de modelos de processamento de informação. Os resultados mostraram que os modelos cognitivos poderiam fazer uma ponte entre o nível neural e o comportamento. Posteriormente, com o surgimento da neuroimagem funcional, foi possível utilizar os modelos cognitivos para caracterizar as correlações estrutura-função também em indivíduos neurologicamente normais.

A neuroimagem funcional é cerceadas por fontes distintas de restrições do que a neuropsicologia cognitiva. P. ex., a neuroimagem funcional permite um acesso mais direto a considerações funcionais e não depende dos caprichos da natureza que constituem os padrões de lesão cerebral observados em pacientes. Dessa forma, neuropsicologia cognitiva e neuroimagem funcional se complementam.

A  principal restrição dos métodos de neuroimagem funcional atualmente disponíveis é que eles não conseguem mostrar as áreas que são necessárias para um determinado exercício funcional. A neuroimagem funcional mostra padrões de ativação potencialmente relevantes. Mas, como a variabilidade interindividual é muito grande e como as tarefas empçregadas são complexas fica difícil identificar quais áreas são cruciais para a implementação de um dado processo psicológico. Apenas os estudos com pacientes conseguem estabelecer a necessidade de uma área para uma função. Assim sendo, apesar de redimensionado, o estudo de pacientes e a caracterização das síndromes continua sendo importante em neurociência como uma ferramenta inferencial.

Após essa excursão pela história da neuropsicologia estamos em posição de responder às indagações iniciais. As síndromes neuropsicológicas são do mal ou do bem? Elas são do mal e precisam ser problematizadas na medida em que sua validade interna e acurácia diagnóstica são baixas e na medida em que elas não constituem mais o principal método para realizar inferências sobre correlação estrutura-função. Por outro lado,  as grandes síndromes são do bem e merecem ser desproblematizadas porque constituem-se em ferramentas clinicas indispensáveis à prática profissional. Mas, sobretudo, as síndromes e os estudos com pacientes continuam sendo o único caminho para identificar a necessidade funcional de um determinado sistema neural.

Hoje eu falei bastante sobre a problematização e a validade interna e externa das síndromes neuropsicológicas. Em um próximo post vou falar sobre a desconstrução das síndromes e sua utilidade clinica. Problematização e desconstrução são a versão contemporânea das discussões escolásticas sobre o sexo dos anjos. Haja paciência. É por causa disso que eu vou me divertindo com as síndromes neuropsicológicas. 

Sunday, March 06, 2016

As síndromes neuropsicológicas clássicas iluminam o cérebro

Quando o paciente está em coma, hemiplégico e cachimbando, até o porteiro da Santa Casa sabe que se trata de um AVC hemorrágico. Quando o paciente tem miose e incoordenação motora de um lado e um sinal de Babinski do outro, é preciso um neurologista para reconhecer uma síndrome de Wallenberg, ou infarto lateral do bulbo.

As síndromes neuropsicológicas clássicas são relevantes por si próprias. As “síndromes” consistem em padrões co-ocorrentes de alterações do comportamento observados sistematicamente em adultos com lesões cerebrais adquiridas em determinadas localizações.



Através da investigação clínica, os neurologistas da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX descobriram relações sistemáticas entre uma série de síndromes e uma meia dúzia de sistemas neurais distintos.

Entre os principais feitos da neuropsicologia clássica podem ser mencionados a identificação do papel desempenhado pelas áreas perisilvianas esquerdas na linguagem, pelo lobo parietal esquerdo na aritmética, pelas áreas occípito-temporais ventrais no reconhecimento visual de objetos, pelas áreas occipito-parietais dorsais na localização espacial de objetos e programação da ação, pelas áreas temporais mediais na memória de longo prazo e emoções, pelas áreas frontais na auto-regulação etc.

As descobertas neuropsicológicas clássicas têm sido confirmadas, ampliadas e reinterpretadas pelos métodos contemporâneos de investigação, principalmente de neuroimagem funcional. Elas constituem o legado e o fundamento de um campo interdisciplinar que está atingindo sua maturidade.

Poucos fenômenos escaparam à atenção dos neuropsicólogos clássicos. Um dos mais notáveis é a memória semântica. Os neurologistas clássicos investigavam primordialmente o comportamento de pacientes com AVC. É raro encontrar lesões seletivas das áreas neocorticais temporais inferiores em pacientes com AVC. Dessa forma, foi necessária aguardar a caracterização das seqüelas de encefalite por Herpes e a descoberta da demência semântica para começar a compreender a representação de conhecimentos factuais e conceituais no cérebro.

Outro fenômeno com o qual os neuropsicólogos clássicos nem sonhavam é o chamado modo default de funcionamento do cérebro. Os estudos de neuroimagem funcional em repouso demonstraram que quando a atenção não é requerida por estímulos externos, ela se volta para o ambiente interno, para o self e para a sociabilidade. Enquanto a atenção ao mundo externo ativa áreas laterais dos hemisférios cerebrais, a atenção ao mundo interno ativa as áreas mediais.

A atenção ao mundo interno constitui o modo default de funcionamento do cérebro. Ou seja, aquele modo ao qual o cérebro recorre quando não existe uma tarefa mais premente a ser resolvida. A atividade na rede default aumenta de coerência à medida que o indivíduo amadurece, diminundo os padrões de atividade sincronizada com o envelhecimento e com os diversos transtornos psiquiátricos. O modo default pode estar relacionado à capacidade de insight, desempenhando um importante papel na cognição e saúde mental.

O conhecimento em neuropsicologia não estagnou na época clássica. Mas não deixa de ser surpreendente o modo como as novas descobertas são consilientes com os fatos tradicionalmente estabelecidos. Significa que estamos ampliando nossos horizontes em cima de uma base sólida, em cima dos ombros de gigantes, para usar uma metáfora gasta porém útil.

A neuropsicologia e o método anátomo-clinico muito contribuíram para o desenvolvimento da chamada “psiquiatria biológica”. Os neurologistas do século XIX observaram, p. ex., que pacientes com lesões prefrontais ventromediais apresentavam alterações do comportamento social, principalmente sob a forma de impulsividade e dificuldade para prever as conseqüências do comportamento.

Os psiquiatras também observaram síndromes comportamentais fenomenologicamente semelhantes em diversos tipos de doenças mentais, como p. ex., o transtorno bipolar. Surgiu então a hipótese de que muitos sintomas psiquiátricos pudessem refletir disfunções mais sutis de redes neurais que se encontram lesionadas em pacientes neurológicos. Essa hipótese somente pode ser verificada a partir do momento em que os exames de neuroimagem funcional se tornaram disponíveis. Mas sua origem pode ser encontrada na neuropsicologia.

O argumento que eu defendo então é que o conhecimento das síndromes clássicas é relevante não apenas para os neuropsicólogos que trabalham com doentes neurológicos, mas também para aqueles que trabalham com doentes psiquiátricos ou com crianças e jovens com transtornos do desenvolviemtno. As síndromes clássicas têm esse papel fundacional na nossa disciplina.

E o motivo é muito simples. Diagnosticar significa reconhecer padrões. Esse conceito pode ser ilustrado através de um tipo de figuras fragmentárias chamadas de figuras de Gollin (vide ilustrações). A familiaridade com os estímulos torna o reconhecimento mais fácil e rápido.



Kurt Goldstein sentenciou que os sintomas são respostas às nossas perguntas. Somente constitui um sintoma neuropsicológico ou uma síndrome um padrão que é reconhecido como associado a um determinado significado. A uma determinada localização lesional ou ao comprometimento de um certo componente em um modelo de processamento de informação.



Muitas vezes o reconhecimento de padrões precisa ser efetuado a partir de fragmentos. A partir de formas incompletas ou frustras de uma determinada síndrome. São esses os casos mais desafiadores, os que exigem maior experiência e habilidade por parte do clinico.




Quando os déficits neuropsicológicos são nítidos e típicos, os escores dos testes como que falam por si mesmos. A realidade constitui-se, entretanto, de uma maçaroca de informações que é preciso destrinchar. O desempenho em alguns testes pode ser normal ou deficitário, mas isso pode constituir erro de medida. Por outro lado, em outras tarefas cognitivas o desempenho pode se situar no limte inferior da normalidade. É nesses casos que há necessidade de reconhecer um padrão que permita selecionar fenômenos clinicamente relevantes de ruído causado por erro de medida.



Isso é especialmente relevante no caso das doenças psiquiátricas e transtornos do desenvolvimento. Nessas duas situações é que o diagnóstico neuropsicológico se reveste da características primordial de completação de padrões a partir de fragmentos. Sem conhecimento prévio dos padrões sindrômicos não há como reconhecer seus fragmentos.

Poder-se-ia questionar a relevância do conhecimento das síndromes clássicas, identificadas em adultos, para a caracterização dos problemas neuropsicológicos do cérebro em desenvolvimento. Afinal o cérebro em desenvolvimento é muito mais plástico e dinâmico do que o cérebro adulto.

Uma posição teórica denominada construtivismo neural defende a hipótese de que o cérebro do bebê seria uma espécie de tábula rasa na qual a cultura e a experiência inscrevem as correlações estrutura-função observadas no adulto. As funções nãos eriam localizáveis no cérebro do bebê, apenas no adulto e como conseqüência do processo de desenvolvimento. Segundo essa posição os padrões sindrômicos neuropsicológicos observados em adultos corresponderiam à lesão de atratores. Ao comprometimento de padrões atividade para os quais o sistema convergiu epigeneticamente em função da experiência e aprendizagem cultural.

Assim sendo, conforme o construtivismo neural seria um nonsense total querer aplicar conhecimentos derivados da neuropsicologia de adultos à caracterização das relações estrutura-função do cérebro em desenvolvmento. Segundo essa perspectiva, a neuropsicologia cognitiva seria muito estática para ser aplicada ao cérebro em desenvolvimento. O exame neuropsicológico forneceria apenas quadros instantâneos de um processo dinâmico, os quais poderiam levar a inferências falsas.

Até hoje os trabalhos de inspiração neuroconstrutivista foram incapazes de mostrar situações nas quais a aplicação dos princípios de correlação anátomo-clinica derivados da neuropsicologia de adultos desviasse os pesquisadores da rota correta. Obviamente, o cérebro em desenvolvimento é mais plástico e dinâmico. Portanto, os métodos clássicos da neuropsicologia nem sempre acertam no alvo de forma precisa. Sempre existe uma margem de erro e necessidade de correções. Mas as correlações anátomo-clincas observadas no adulto permanecem como um arcabouço, como um referencial extremamente útil.

Diversos resultados de pesquisa contemporâneos salientam a relevância das síndromes neuropsicológicas clássicas para a neuropsicologia do desenvolvimento.

Algumas vezes a neuroplasticidade falha e podem ser observadas síndromes neuropsicológicas clássicas adquiridas muito cedo na infância. E essas síndromes adquiridas precocemente se caracterizam por padrões anátomo-clinicos muito semelhantes àqueles observados nos adultos. É o caso, p. ex., de blindsight após lesões occipitais primárias, agnosia visual para objetos após lesões occipiti-temorais ventrais, síndrome de Bálint, simultanagnosia e ataxia óptica após lesões parietais superiores, heminegligência visoespacial após lesões da encruzilhada têmporo-parieto-occipitial direita, afasias sutis porém persistentes após lesões perislivianas esquerdas e transtors graves e persistentes de conduta após lesões prefrontais ventromediais.

A possibilidade de ocorrência dessas síndromes em bebês e crianças pequenas sugere que existe uma blueprint genética que especifica, dentro de determinados limites epigenéticos, as correlações anátomo-clinicas possíveis de cada estrutura cerebral. Quando a neuroplasticidade funciona, essas correlações são mascaradas. Quando ela falha essas correlações são evidenciadas.

Adicionalmente, as pesquisas genético-moleculares têm mostrado que os mecanismos de regulação da plasticidade sináptica são susceptíveis a uma enorme variabilidade interindividual. Os processos sinápticos envolvidos no desenvolvimento cerebral, aprendizagem e recuperação lesional são regulados pelos mesmos mecanismos gênicos. E a falha desses mecanismos gênicos está implicada na origem de diversos ranstornos do desenvolvimento, tais como deficiência intelectual, síndromes genéticas e transtornos de aprendizagem.

Uma outra linha de evidências relevantes vem dos estudos com as correlações de atividade cerebral em repouso, uma técnica de neuroimagem recentemente desenvolvida. O participante permanece na máquina de ressonância magnética funcional por alguns minutos, em repouso. Ou seja, ativando mais pronunciadamente apenas sua rede default.

A seguir os pesquisadores se utilizam de algoritmos poderosos para identificar padrões de correlação cruzada em repouso entre as diversas áreas cerebrais. Os estudos de análise da conectividade funcional demostraram que aquela meia dúzia de redes neurais identificadas pelos neuropsicólogos clássicos exibe padrões de correlação de atividade tão poderosos, que os mesmos podem ser detectados em repouso.

Ao contrário do que supunham os neuroconstrutivistas, o cérebro do bebê não é uma tábula rasa. A blueprint está lá desde o inicio. A mesma meia dúzia de redes neurais que caracteriza o cérebro adulto também pode ser identificada pela conectividade em repouso do cérebro bebê. A diferença é que a atividade no bebê é mais localizada. O processo de desenvolvimento não consiste então em uma localização progressiva das funções cerebrais, mas sim em uma integração progressiva de um conjuntos de redes que funcionam inicialmente de um modo mais independente.

O cérebro do bebê não é menos, mas mais localizacionista doque o cérebro do adulto. O desenvolvimento e a aprendizagem permitem integrar de forma progressiva e hierárquica esses diversos módulos. A diferença entre o bebê e o adulto é que a diminuição da plasticidade sináptica dificulta a reconfiguração do sistema em caso de lesão no cérebro maduro.

O localizacionismo é outro ponto contencioso. Muitas vezes se ouve dizer que “o localizacionismo caiu”. Não caiu nada. O que caiu foi o localizacionismo estrito. Mas nenhum pesquisador sério desde Carl Wernicke defende posições localizacionistas estritas. Wernicke já tinha uma concepção do cérebro como um rede integrada e plástica. “Localizacionismo estrito” é um espantalho, um recurso retórico usado pelos inimigos da neuropsicologia.

A concepção de localizacionismo que prevalece na neuropsicologia é aquela de um localizacionismo distribuído. Luria falava em sistemas funcionais. Um sistema funcional, como p. ex., a expressão ou a compreensão verbal, tem uma determinada função adaptativa e recruta determinadas redes neurais. Diferentes configurações de atividade dessas redes correspondem a sistemas funcionais distintos. Muitas redes são compartilhadas por mais de um sistema funcional. Mas as configurações espaço-temporais de atividade dos diversos sistemas funcionais são singulares, únicas. Essa concepção tem sido reforçada a partir dos estudos contemporâneos de neuroimagem que investigam a conectividade estrutural e funcional do cérebro.

A caracterização neuropsicológica dos transtornos de aprendizagem como dislexia e discalculia serviu-se das síndromes observadas nos adultos como modelos. Correções, ampliações e reinterpretações se fizeram necessárias. Mas não houve nenhuma mudança radical de rumo. Até agora, tudo indica que a neuropsicologia sempre esteve no caminho certo.

Vejamos o caso da dislexia. A recodificação fonológica é o mecanismo primordial de aprendizagem da leitura de palavras isoladas. Mas os mecanismos lexicais de leitura passam a ter importância crescente a partir do momento em que a correlação grafema-fonema é automatizada. Assim, sendo o modelo de dupla rota, fonológica e lexical, do adulto permenece sendo o modelo descritivo mais completo das dificuldades de leitura associadas ao desenvolvimento. E mais ainda, o modelo de dupla rota demonstra valor heurístico na medida em que previu a existência de uma série de subtipos de dislexia que não eram clinicamente reconhecidas.

Finalmente, examinemos o que acontece com a cognição numérica. Os fatores cognitivos subjacentes à aprendizagem da aritmética em crianças são os mesmos relevantes para a acalculia dos adultos: memória de trabalho, memória semântica, processamento fonológico, habilidades visoespaciais e senso numérico. Da mesma forma que na acalculia do adulto, o lobo parietal, principalmente esquerdo, também foi implicado na discalculia do desenvolvimento.

Os padrões de ativação cerebral observados em crianças ao aprenderem operações aritméticas simples são um pouco diferentes daqueles observados nos adultos. As crianças, p. ex., ativam mais fortemente o córtex pré-frontal do que o giro angular esquerdo. Mas a rede parieto-frontal ativada em crianças é idêntica à rede parieto-frontal ativada em adultos.

Uma outra diferença entre adultos e crianças na aprendizagem de operações aritméticas simples é que as crianças ativam o hipocampo quando estão memorizando fatos aritméticos novos e os adultos não. Fica claro então, que há diferenças entre crianças e adultos. Mas o significado da ativação do hipocampo em crianças aprendendo fatos aritméticos somente pode ser inferido se considerarmos o papel do hipocampo na aprendizagem a longo prazo, o qual foi elucidado em adultos há mais de sessenta anos.

Acredito então que o estudo das síndromes neuropsicológicas clássicas, as grandes síndromes, é relevante não apenas para a neuropsicologia de adultos, mas também para a neuropsicologia aplicada a transtornos do desenvolvimento cerebral. A Profa. Marilena Chauí uma vez declarou que “Toda vez que o Lula fala, o mundo se ilumina”. Eu falo assim: “O conhecimento das síndromes neuropsicológicas ilumina o cérebro”. O Lula não ilumina mais o mundo, mas continua enchendo a paciência. A neuropsicologia não é mais a única fonte de luz. mas continua sendo um facho poderoso.


Referência das figuras de Gollin

Goldenberg, G. (2007). Neuropsychologie. Grundlagen, Klinik, Rehabilitation. München: Urban & Fischer.