Já
trabalhei em diversas comissões na Universidade e fora dela, nas quais são
avaliados os méritos científicos e éticos dos mais diversos tipos de projetos
de pesquisa. Uma das coisas que mais me incomoda são aqueles projetos cujo
principal objetivo declarado é “problematizar” alguma coisa. Eu me diverti
demais outro dia lendo o Percival Puggina: "Quando algum pedagogo fala em
problematizar algo, ele está afirmando que vai reduzir esse algo a coisa
nenhuma".
Fico contando os anos de serviço para poder me livrar desse tipo de besteira.
Uma
das coisas que eu vou tentar fazer nas minhas aulas no curso de Grandes Síndromes Neuropsicológicas será desproblematizá-las. Mas para desproblematizar algo,
primeiro há que problematizar. Quer dizer: Há algum problema com as síndromes
neuropsicológicas? Vamos colocar chifre em cabeça de burro?
Parafraseando Terêncio, tão ao gosto do pessoal psi, tudo
que é humano é problematizável. Essa razão pela qual fica ridículo colocar a
problematização de algo como objetivo de um projeto de pesquisa. Geralmente o
povo que quer problematizar as coisas é um bando de infelizes, desajustados,
gente inconformada com a realidade e que gostaria que o mundo se adequasse às
suas fantasias. Problematizar, nesse sentido, significa então fantasiar como o
mundo deveria ser para se ajustar ao desejo do sujeito.
As
síndromes neuropsicológicas são problemáticas em um sentido diferente. Como
qualquer construto científico as síndromes neuropsicológicas se associam a um
perfil de fortalezas e fraquezas. Para compreender isso é preciso voltar um
pouco atrás na história da neuropsicologia.
Uma
síndrome em medicina é um conjunto de sinais (manifestações objetivas de
doença) e sintomas (manifestações subjetivas) que gostam de andar juntos. Eles
co-ocorrem com uma freqüência maior do que aquela determinada pelo acaso. Nem
todos os sinais e sintomas de uma síndrome andam juntos todo o tempo, assim
como o marido e a mulher não passam o tempo todo se chicleteando. Em um dado
paciente podem ocorrer alguns e não outros sinais e sintomas. Em um segundo paciente
podem ocorrer os outros e não os alguns.
O
importante é que os padrões de co-ocorrência são sistemáticos. O desafiador no
diagnóstico é reconhecer o padrão, reconstruí-lo a partir de manifestações
fragmentárias, a partir de formas frustras. Essa é a habilidade que vem com a
experiência e que caracteriza o famoso olho clinico.
Se
alguém quiser problematizar as síndromes, reduzí-las verdadeiramente a pó,
basta perguntar pela sua validade interna. Se a expectativa é de que todos os
sinais e sintomas andem juntos o tempo todo, então as síndromes não valem nada.
Mas se todas as manifestações ocorressem juntas o tempo todo não haveria arte
no diagnóstico, seria tudo apenas uma questão de engenho. O problema das
síndromes não é tanto a validade ou consistência interna. Nem sempre todos os
componentes são observáveis, mas geralmente há uma padrão. O sal da clinica é
reconhecer os padrões a partir de fragmentos.
Falamos
sobre a validade interna das síndromes. Vimos que ela pode ser problematizada. Mas,
o que dizer da sua validade externa? A validade externa das síndromes diz
respeito à localização lesional. A importância das síndromes deriva do fato de
que elas apontam para as localizações lesionais. A afasia de Broca sugere uma
lesão ínfero-frontal esquerda, a afasia de Wernicke uma lesão
póstero-súpero-temporal esquerda, a síndrome de Gerstmann uma lesão na região
do giro angular esquerdo, a síndrome de heminegligência visoespacial esquerda
uma lesão na encruzilhada têmporo-parietal direita, a amnésia retrógrada uma
lesão temporal neocortical bilateral, a amnésia anterógrada uma lesão temporal
medial bilateral, a síndrome pseudopsicopática uma lesão pré-frontal ventromedial
e a síndrome depressiva uma lesão emporal dorsal medial ou lateral etc. etc.
As
principais síndromes neuropsicológicas foram descritas na segunda metade do
século XIX e primeira metada do século XX. Poucas síndromes novas foram
descritas nas últimas décadas. O foco de interesse dos pesquisadores mudou. Mas
isso não quer dizer que as síndromes sejam inúteis. O charme das síndromes é
que elas apontam com um certo grau de confiabilidade para a localização
lesional. E isso não era pouca porcaria numa época em que não havia técnicas
não-invasivas de neuroimagem.
A
confiabilidade das síndromes isoladamente tomadas é relativamente baixa, com uma
acurácia em torno de 70%. O que não deixa de ser surpreendente para um método
que é clinico e não-invasivo, ou seja, quick and dirty.
Um
outro grande feito associado à caracterização das síndromes foi a descoberta de
que, conforme previsto pela doutrina localizacionista, o cérebro humano pode
ser decomposto em uma meia dúzia de módulos ou redes neurais distintas: a) Um
sistema posterior ventral lateralizado principalmente para a direita que se
associa ao reconhecimento visual de objetos e atribuição do significado
emocional; b) Um sistema dorsal relacionado com a localização visuospacial e
programação da ação; c) Dois sistemas lateralizados para a esquerda e
relacionados com a linguagem. Um sistema ventral associado ao acesso e
representação semântica e um sistema dorsal relacionado com a fonologia e a
sintaxe; d) Sistemas temporais mediais responsáveis pela criação de uma linha
do tempo, pela aprendizagem a longo prazo, pela construção de uma representação
do self e pela atribuição de significado emocional à experiência; e) Diversos
sitemas auto-regulatórios no córtex pré-frontal ventral (antecipação das
conseqüências do comportamento) e dorsal (memória de trabalho, estratégia,
raciocínio etc.).
A
validade externa das síndromes neuropsicológicas pode então ser problematizada
se nos questionarmos sobre a validade dos pressupostos localizacionistas sobre
os quais se assenta. Aquela meia dúzia de sistemas descoberta pelos
neuropsicológos clássicos não sé localizável no sentido estrito. Nunca houve
localizacionismo estrito. Pelo menos não desde Carl Wernicke, o fundador da
escola clássica conexionista de neuropsicologia. O cérebro nunca foi concebido
como um mosaico de “centros funcionais” isolados, como Freud acusava falsamente
os “localizacionistas”. Desde o tempo de Theodor Meynert e Carl Wernicke era
conhecido o papel da substância branca conectando as múltiplas unidades
neuronais entre si. E tem mais, o Wernicke já propunha que essas conexões
podiam ser formadas, reforçadas ou enfraquecidas em função da experiência.
Nada
muito diferente do que pensamos hoje em dia. É claro que conhecemos uma infinidade
de detalhes que escapavam ao Wernicke. É claro que temos um sistema conceitual
muito mais preciso e refinado, resultante de décadas de cooperação
interdisciplinar e sofisticação tecnológica crescente. Acumulamos uma massa de
informação, da qual emergem mudanças qualitativas. Mas o termo chave é esse:
acúmulo. Existe uma progressão, um percurso de avanço do conhecimento, o qual,
até o momento pode ser identificado e perseguido de forma linear.
Mas
a concepção que os clássicos tinham da localização cerebral também era
distribuída. Alexandr Luria falava em sistemas funcionais. Cada sistema
funcional correspondia a um padrão de atividade de uma ampla rede de unidades
neuronais dispersas por regiões corticais e subcorticais. Muitas unidades
neuronais eram compartilhadas por diversas redes entre si. A identidade das
redes era conferida pelos padrões espaço-temporais de ativação. Bem que nem
pensamos hoje em dia.
Mas
de onde surgiu essa concepção abjeta de “localizacionismo estrito”? O suposto
localizacionismo estrito é um artifício argumentativo, um “espantalho” retórico
criado por autores que defendiam ser o cérebro uma estrutura indiferenciada.
Uma evidência disso é a famosa figura proposta por Ludwig Lichtheim para o
modelo conexionista clássico das afasias, a chamada “Casinha” de Lichtheim.
Todos
os livros texto apresentam a casinha de Lichtheim. A casinha é muito útll na
explicação de diversas síndromes afásicas. P. ex., a interrupção das conexões auditivas
para as imagens acústicas das palavras (A) causa a surdez verbal pura. A
destruição de A causa a afasia de Wernicke. A destruição de M causa a afasia de
Broca, a desconexão entre A e M causa a afasia de condução e a desconexão entre
M e as eferências motoras causa disartria. As lesões posteriores prejudicam
mais a compreensão enquanto as lesões anteriores prejudicam mais a expressão
lingüística.
As
lesões simultâneas de A e M causam a afasia global e as interrupções entre o
circuito central A-M da linguagem e o centro conceitual B causam as afasias
transcorticais. As lesões do circuito A-M central da linguagem comprometem a
repetição de palavras e frases. As desconexões transcorticais não comprometem a
repetição. As desconexões transcorticais parciais posteriores comprometem a
compreensão. As parciais posteriores comprometem a iniciativa discursiva. A
desconexão de todo o circuito A-M causa o isolamento da área da linguagem, no
qual indivíduo perde todo uso funcional da linguagem, mas mantém a capacidade de
repetir.
A
Casinha de Lichtheim é, reconhecidamente, um feito epistemológico. Nâo me canso
de admirá-la. Como é que alguém conseguiu fazer tanto com tão pouco? Ela sintetiza
de forma brilhante toda uma concepção neurolíngüística e, ao mesmo tempo, constitui-se
em uma ferramente clinica de aplicação direta. A sua principal limitação é a
postulação de um centro conceitual único (B). Isso é um absurdo. Uma
simplificação grosseira. Tanto é uma simplificação grosseira que o próprio
Lichtheim reconhecia isso e propôs então um segundo diagrama, a “Coroa” de
Lichtheim.
Seria
uma burrice enorme supor que a diversidade e multiplicidade conceitual que
caracteriza a mente humana pudesse ser representada em um único “centro
funcional”. Ou que houvesse um centro funcional especializado para cada conceito
ou categoria. Atualmente sabemos, graças aos estudos de pacientes com seqüela
de encefalite herpética e com demência semântica, bem como graças aos estudos
de neuroimagem funcional, que os conceitos são representados de forma
fragmentária e distribuída por amplas regiões corticais. Principalmente áreas
neocorticais ínfero-laterais, mas também áreas têmporo-parieto-occipitais e
áreas frontais relacionadas aos mecanismos perceptuais e motores dos quais os
conceitos derivam.
A
Coroa de LIchtheim é uma demonstração cabal de que os autores do século XIX já
entendiam perfeitamente que os conceitos são representados de forma distribuída
pelo cérebro e que as correlações anátomo-clinicas são complexas. Foi a ignorância
de uns e a má fé de outros que fez prosperar o mito do “localizacionismo
estrito”, um espantalho abandonado pelo menos desde Wernicke e Lichtheim. Nenhum livro texto de neurologia
ou neuropsicologia mostra a Coroa de Lichtheim. Ela só freqüenta a literatura
mais especializada, visitada apenas pelos expertos.
Com
isso fica claro que as síndromes neuropsicológicas possuem validade externa,
que essa validade deriva do seu poder localizatório e que as concepções
localizatórias dos autores clássicos não eram tão toscas assim como muitas
vezes se quer crer. É forçoso admitir, entretanto, que a acurácia localizatória
das síndromes clássicas é baixa. Mas isso não lhes retira o charme de localizar
de forma rápida e não invasiva, ainda
que grosseira e suja, as manifestações de comprometimento cerebral.
Até
agora eu só desproblematizei as síndromes neuropsicológicas. Mostrei que elas
não são do mal, nem constituem um mecanismo ideológico patriarcal e
imperialista de dominação de classe, gênero ou raça. Mas eu prometi lá no
inicio que iria problematizar um pouquinho também.
O
conhecimento neuropsicológico não parou de avançar com a descoberta e
caracterização das síndromes neuropsicológicas. O repertório básico de
síndromes foi descrito até meados do século XX. Pode ser que ainda se venha a
descobrir alguma síndrome nova. Mas o foco de atenção atualmente é outro. Por
um lado, o advento das técnicas não-invasivas de neuroimagem diminuiu o
interesse pelas síndromes como instrumento de localização lesional.
Por
outro lado, as síndromes não se prestam a uma análise cognitiva que permita a
elucidação dos processos psicológicos ou neurocomputações implementados por
cada um daquela meia dúzia de sistemas funcionais descobertos pela
neuropsicologia e confirmados e ampliados pela neurociência cognitiva.
As
síndromes ajudaram a descobrir os módulos, ou redes neurais que compõem o
cérebro-mente humano. Mas como elas
foram descobertas de modo ad hoc, bottom-up, baseadas em teorias psicológicas
muito rudimentares, elas não se prestam a ser analisdas em termos de processos
informacionais.
Vejamos
o caso das afasias. Qual é o significado funcional psicológico ou computacional
de não conseguir versus conseguir repetir palavras e frases? A afasias de
Wernicke e Broca podem, respectivamente, ser reduzidas a transtornos do processamento
semântico e sintático? Qual é o componente funcional comum, subjacente aos
sintomas de agnosia digital, desorientação direita-esquerda, acalculia e
agrafia obervados na síndrome de Gerstmann?
A
resposta a todas essas questões é negativa. Analisar as síndromes
neuropsicológicas clássicas em termos de processos cognitivos teoricamente
consistentes ou em termos computacionais exige uma tamanha ginástica mental que
a tarefa se transforma em mission impossible. Foi tentando desvendar seu
substrato cognitivo, funcional, que os pesquisadores se aperceberam das suas
limitações como método inferencial.
As
dificuldades para interpretar as síndromes neuropsicológicas em termos de
processos psicológicos teoricamente relevantes estão na origem da
neuropsicologia cognitiva e neurociência cognitiva. As síndromes constituíram o
principal instrumento heurístico para investigar as bases neurais do
comportamento até um determinado momento. Os pesquisadores perceberam então que
precisavam refinar seu arcabouço teórico e que nem sempre (ou quase nunca?) as
razões pelas quais os sinais e sintomas co-ocorrem nas síndromes são de
natureza funcional. Em muitos casos, tais como fica claro na síndrome de
Gerstmann, as razões são anatômicas. Ou seja, os sintomas podem co-ocorrer
apenas porque áreas geograficamente vizinhas e irrigadas por um determinado
ramo arterial representam as funções comprometidas.
As
limitações das síndromes como um método inferencial para estabelecer correlações
cérebro-comportamento estão sendo superadas graças a desenvolvimentos teóricos
e metodológicos representados pela ciência cognitiva e pela neuroimagem
funcional. Inicialmente, os neuropsicólogos cognitivos caracterizaram os
padrões de funções comprometidas e preservadas em pacientes neuropsicológicos
em termos de modelos de processamento de informação. Os resultados mostraram
que os modelos cognitivos poderiam fazer uma ponte entre o nível neural e o
comportamento. Posteriormente, com o surgimento da neuroimagem funcional, foi
possível utilizar os modelos cognitivos para caracterizar as correlações
estrutura-função também em indivíduos neurologicamente normais.
A
neuroimagem funcional é cerceadas por fontes distintas de restrições do que a
neuropsicologia cognitiva. P. ex., a neuroimagem funcional permite um acesso mais
direto a considerações funcionais e não depende dos caprichos da natureza que
constituem os padrões de lesão cerebral observados em pacientes. Dessa forma,
neuropsicologia cognitiva e neuroimagem funcional se complementam.
A principal restrição dos métodos de
neuroimagem funcional atualmente disponíveis é que eles não conseguem mostrar
as áreas que são necessárias para um determinado exercício funcional. A
neuroimagem funcional mostra padrões de ativação potencialmente relevantes.
Mas, como a variabilidade interindividual é muito grande e como as tarefas empçregadas
são complexas fica difícil identificar quais áreas são cruciais para a
implementação de um dado processo psicológico. Apenas os estudos com pacientes
conseguem estabelecer a necessidade de uma área para uma função. Assim sendo,
apesar de redimensionado, o estudo de pacientes e a caracterização das
síndromes continua sendo importante em neurociência como uma ferramenta
inferencial.
Após
essa excursão pela história da neuropsicologia estamos em posição de responder
às indagações iniciais. As síndromes neuropsicológicas são do mal ou do bem? Elas
são do mal e precisam ser problematizadas na medida em que sua validade interna
e acurácia diagnóstica são baixas e na medida em que elas não constituem mais o
principal método para realizar inferências sobre correlação estrutura-função. Por
outro lado, as grandes síndromes são do
bem e merecem ser desproblematizadas porque constituem-se em ferramentas
clinicas indispensáveis à prática profissional. Mas, sobretudo, as síndromes e
os estudos com pacientes continuam sendo o único caminho para identificar a
necessidade funcional de um determinado sistema neural.
Hoje eu falei bastante
sobre a problematização e a validade interna e externa das síndromes
neuropsicológicas. Em um próximo post vou falar sobre a desconstrução das
síndromes e sua utilidade clinica. Problematização e desconstrução são a versão
contemporânea das discussões escolásticas sobre o sexo dos anjos. Haja
paciência. É por causa disso que eu vou me divertindo com as síndromes
neuropsicológicas.