Friday, May 20, 2016

Como as crianças aprendem aritmética?

A aritmética básica consiste nas habilidades de contar, fazer contas e memorizar os fatos aritméticos. A maioria das crianças adquire essas habilidades de modo intuitivo e às custas de muita prática.


CONTAR

Contar é a primeira atividade explicitamente matemática demonstrada pelas crianças. A contagem começa a partir dos dois ou três anos. Primeiro as crianças aprendem a recitar a série dos numerais verbais, p. ex., um, dois, três... até dez ou mais. Inicialmente isso é feito de forma não quantitativa. Ou seja, a criança não associa os numerais verbais a quantidades. A série de numerais verbais funciona como uma espécie de moldura seqüencial que vai gradualmente sendo associada às respectivas magnitudes numéricas. A criança vai aprendendo a contar aos pouquinhos. Apesar de poder recitar os números até dez, no início a criança pode fazer um uso quantitativo do numeral um apenas. Depois do dois, do três, até o quatro. À razão de um numeral por ano. A partir do cinco a criança começa a entender que cada número a mais acrescenta uma unidade numérica (princípio sucessor) e que o número final resultante da contagem corresponde à quantidade de itens no conjunto (princípio cardinal).  A contagem é geralmente efetuada com a ajuda dos dedos. As crianças aprendem a mostrar a idade com auxílio dos dedos e a série vai aumentando, à medida que os anos passam, que a habilidade sensoriomotor se aperfeiçoa e que a criança desenvolve o conceito de número. Os dedos constituem uma importante ferramenta para contar. Os dedos ajudam a estabelecer uma ordem fixa, a criar correspondências um para um entre os dedos e numerais e, à medida que se fixa o padrão de contagem nos dedos prevalente em um cultura, a ordem canônica, os dedos adquirem uma dimensão simbólica, passando a representar os números. As crianças com dificuldades de aprendizagem da aritmética são mais lentas para aprender a contar.



FAZER CONTAS

A partir do momento em que a criança intui o princípio de cardinalidade, ela está em posição para usar esse conhecimento na realização de operações aritméticas, iniciando pela adição. As operações começam a ser resolvidas no momento em que a criança entende que, além de acrescentar, somar significa contar dois ou mais conjuntos em sucessão. Uma série de estratégias é empregada de forma mais ou menos sistemática porém temporãmente sobreposta na resolução dos problemas por meio da contagem. No início a criança começa a contar a partir de qualquer número, independentemente da sua magnitude. Depois a criança aprende que é mais vantajoso contar a partir do maior. Algumas crianças passam por uma fase de contar sistematicamente a partir do primeiro, independentemente de ser o maior ou o menor. Inicialmente a resolução por contagem também se serve dos dedos. Na maioria das crianças o uso dos dedos fornece um apoio concreto à realização das operações, aliviando a carga de memória de trabalho. Numa segunda fase as crianças não precisam mais usar os dedos e contam verbalmente para resolver os problemas. Adquirida a adição simples, a conseqüência lógica é intuir a multiplicação (adição repetida) e a subtração (inverso da adição). Com a experiência a criança começa a memorizar as associações entre problemas e soluções, adquirindo os fatos aritméticos para as operações simples de adição e multiplicação. A expansão dos repertório de operações aritméticas conhecidas permite utilizar a estratégia de decomposição para resolver problemas mais complexos. A divisão é mais difícil e sua aprendizagem geralmente requer algum tipo de intervenção pedagógica. As crianças com dificuldades de aprendizagem da aritmética começam a usar a contagem para resolver problemas mais tarde e persistem usando a contagem por mais tempo.


FATOS ARITMÉTICOS

A prática com a resolução de problemas aritméticos simples com um algarismo leva à memorização das associações entre problemas e respostas como fatos aritméticos. Apenas os fatos de adição e subtração são memorizados. Não existem fatos de subtração e de divisão porque essas operações não são comutativas. Ou seja, para realizar a subtração e divisão é sempre necessário determinar qual número é o maior. Assim as associações problemas-respostas para subtração e divisão não podem ser armazenadas em formato puramente verbal.

Os fatos aritméticos passam então a constituir um domínio especializado da memória semântica verbal. Quando automatizados, podem ser resgatados rapidamente e auxiliar na resolução de problemas progressivamente mais complexos.

Os fatos aritméticos ou tabuadas constituem uma das maiores realizações civilizatórias. A aprendizagem dos fatos exige algum tipo de intervenção pedagógica porque requer muita prática e motivação. A aquisição dos fatos é um processo difícil, laborioso e lento. Para ter uma idéia da dificuldade envolvida na tarefa, tente memorizar a lista abaixo:

João é carteiro e mora na rua das Hortênsias
Pedro é padeiro e mora na rua das Camélias
Pedro é professor e mora na rua das Hortênsias
José é pedreiro e mora na rua das Rosas
Roberto é padeiro e mora na rua das Margaridas
Paulo é carteiro e mora na rua das Camélias
Joaquim é padeiro e mora na rua das Rosas
Mário é padeiro e mora na rua das Rosas
Tiago é professor e mora na rua das Margaridas
Samuel é professor e mora na rua das Rosas
Manuel é pedreiro e mora na rua das Rosas
Pedro é pedreiro e mora na rua das Hortênsias

É extremamente difícil memorizar essa lista. A tarefa demandaria horas e dias de trabalho exaustivo. A dificuldade deriva do fato de que os itens ocorrem de forma recorrente e não se associam a um significado inerente. A memorização dos fatos é uma situação parecida. As associações problemas-respostas não são arbitrárias apenas porque resultam dos procedimentos de contagem. O significado então é inferido a partir dos conceitos e procedimentos envolvidos em cada operação. E o processo pecisa ser repetido inúmeras vezes até que as associações se consolidem na memória de longo prazo.

A alternativa ao exercício é a decoreba verbal. A qual é mais difícil ainda. Estudos de neuroimagem mostram que a aprendizagem estratégica, resolvendo os problemas, é mais eficiente do que a decoreba. Entretanto, os padrões de ativação cerebral entre as duas são complementares. A decoreba ativa um padrão mais localizado de áreas corticais em torno da região perisilviana esquerda da linguagem. A aprendizagem estratégica ativa uma rede mais complexa de áreas corticais, incluindo áreas parietas envolvidas na imaginação e representação visoespacial. A utilização dos dois métodos de forma complementar pode ser vantajosa.

A dificuldade na aquisição dos fatos aritméticos é causada pelas demandas impostas ao processamento na memória de trabalho. Como os itens dos problemas e de muitas soluções são recorrentes, além de manter as associações problemas-respostas na memória é preciso inibir as respostas concorrentes errôneas. A aprendizagem ineficiente ou errônea dos fatos é um dos principais empecilhos à aprendizagem da aritmética e constitui o sintoma cardeal da discalculia do desenvolvimento.

As pesquisas neurocognitivas estão permitindo desenvolver um modelo da aprendizagem dos fatos aritméticos pela criança. Inicialmente a aprendizagem demanda processamento controlado. O processo é lanto, laborioso, exige atenção consciente, é muito propenso a erro e demanda esforço mental. O processamento controlado inicial ativa áreas do córtex pré-frontal esquerdo, principalmente na superfície dorsolateral.

Nessa fase inicial ocorre ainda ativação de áreas do sulco parietal esquerdo responsáveis pela avaliação da magnitude numérica e manipulação dos símbolos numéricos.

A consolidação das associações entre problemas e respostas depende de sua elaboração no hipocampo. A ativação hipocampal durante a aquisição dos fatos aritméticos tem sido obsevada apenas em crianças e não em adultos.

Finalmente, com a experiência o processo vai se automatizando, tornando-se mais rápido, eficiente, menos laborioso e menos sujeito a erro. Com a automatização o foco de ativação cerebral move-se para áreas corticais posteriores, concentrando-se na região do giro angular.


BOOTSTRAPPING CONCEITUAL

Como as crianças aprendem a aritmética? Ninguém sabe. Os conhecimentos disponíveis são apenas descritivos e não explicativos. É possível afirmar que a aprendizagem da aritmética envolve intuição e prática. O papel desempenhado pela prática é fácil de compreender. A prática automatiza um  procedimentos, transformando-o em segunda natureza.

O papel da intuição é mais difícil de compreender. Um modelo especulativo para o desenvolvimento do coneito de número e muitas outras categorias é o bootstrapping conceitual. Literalmente, bootstrapping significa erguer-se levantando-se pelos cadarços das próprias botas. O termo é usado em ciência cognitiva para descrever processos auto-organizatórios, nos quais um sistema vai se construindo à medida que funciona. O desenvolvimetno cognitivo pode ser comparado a um avião que vai sendo construído em pleno vôo.

De acordo com a hipótese de bootsrapping conceitual, a aprendizagem da aritmética resulta da interação entre primitivos conceituais e procedimentais. As operações realizadas com os conceitos levam à emergência de novos conceitos e novas operações e assim sucessivamente. De uma certa forma, a hipótese de bootstrapping representa uma solução de compromisso entre a perspectiva inatista e construtivista.

Os primitivos conceituais são a habilidade de quantificar de forma precisa pequenos conjuntos (subitizing) e a habilidade de estimar de forma aproximada grandezas maiores (sistema numérico aproximado). O primitivo operacional é a habilidade de adquirir a recitação da série dos numerais  verbais.

Com a prática, a criança vai aprendendo a associar a série dos numerais verbais com o seu significado quantitativo. Isso ocorre de forma lenta, à razão de um algarismo por ano, e envolve apenas as grandezas pequenas. Até chegar ao número cinco, quando ocorre uma explosão conceitual e a criança capta os princípios da sucessão e cardinalidade, generalizando-os e associando o processo com todas as grandezas numéricas possíveis. Assim, o significado numérico representado no sistema numérico aproximado vai sendo conectado aos numerais simbólicos e tornadno o conceito de número progressivamente mais exato e abstrato.

Um processo semalhante ocorre com as operações e os fatos aritméticos. A criança pratica com primitivos conceituais inatos. Pratica e pratica até que ocorre uma mudança qualitativa e ela intui um princípio novo, um conceito derivado, o qual é generalizado para outras situações. Outras situações essas que são praticadas e praticadas até que...

Segundo a perspectiva do bootstrapping conceitual não existe oposição entre conhecimento conceitual e conhecimento procedimental. Um leva ao outro. A interação de primitivos conceituais e operacionais leva à emergência de uma série sucessiva e integrativa de conceitos e procedimentos derivados cada vez mais complexos.

Segundo essa perspectiva não existe, então, incompatibilidade entre a compreensão conceitual aritmética e a aprendizagem dos algoritmos e fatos. Uma leva a outra. Uma depende da outra. Executar os algoritmos ou memorizar os fatos sem compreendê-los é de pouca utilidade. Mas apenas compreender também não tem utilidade prática alguma.



REFERÊNCIAS CONSULTADAS

Berteletti, I., & Booth, J. R. (2016) Finger representation and finger-based strategies in the acquisition of number meaning and aritmethci. In D. B. Berch, D. C. Geary, & K. M. Koepke (eds.) Development of mathematical cognition. Neural substrates and genetic influences (pp. 109-144). San Diego: Academic

De Smedt, B. (2016). Individual differences in arithmetic fact retrieval. In D. B. Berch, D. C. Geary, & K. M. Koepke (eds.) Development of mathematical cognition. Neural substrates and genetic influences (pp. 219-243). San Diego: Academic.

Dehaene, S. (2011). The number sense. How the mind creates mathematics (Revised and updated edition).Oxford: Oxford University Peess.

Menon, V. (2016). A neurodevelopmental perspective on the role of memory systems in children’s math learning.  In D. B. Berch, D. C. Geary, & K. M. Koepke (eds.) Development of mathematical cognition. Neural substrates and genetic influences (pp. 79-107). San Diego: Academic.

Sarnecka, B. W., Goldman, M. C., & Slusser, E. B. (2015). How counting leads do children's first representations of exact, large numbers. In R. Kadosh & A. Dowker (eds.) The Oxford handbook of numerical cognition (pp. 291-309). Oxford: Oxford University Press.


No comments:

Post a Comment