A neuropsicologia do
desenvolvimento, mais especificamente a neuropsicologia escolar, é uma área do
conhecimento teórico e prático que procura identificar e explicar as razões
pelas quais algumas crianças não aprendem na escola bem como auxiliar na
formulação de estratégias pedagógicas eficazes para superar as dificuldades.
Cerca de 5 a 10% das
crianças não aprendem a ler as palavras ou têm dificuldades persistentes com a realização
de operações mais simples de adição, subtração e multiplicação e,
principalmente, não memorizam os fatos de multiplicação. Quando essas
dificuldades mais graves são persistentes e não podem ser explicadas por
fatores secundários tais como deficiência neurosensorial ou intelectual, falta
de motivação ou estimulação, falta de oportunidade de aprendizagem etc., pode
ser realizado um diagnóstico de dislexia ou discalculia do desenvolvimento.
Um contingente populacional
um pouco maior - de cerca de 25% nos países do Hemisfério Norte, mas certamente
maior nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento – apresenta problemas
mais leves porém persistentes até a vida adulta. São adolescentes que conseguem
ler as palavras, mas não conseguem compreender textos. Ou que conseguem
realizar as três o perações mais básicas e memorizaram os fatos de multiplicação,
mas não conseguem aprender a divisão, fracção, decimais, juros etc. Ou a
utilizar essas habilidades para resolver os problemas aritméticos que surgem na
vida cotidiana e profissional. As
dificuldades de leitura desse contingente maior não corresponde a nenhuma
categoria nosológica, sendo referida como analfabetismo funcional. Não existe
um termo semelhante em português para as dificuldades em aritmética. Em inglês
fala-se em iliteracy e inumeracy.
Os indivíduos com
dificuldades persistentes de aprendizagem das habilidades escolares básicas da
cidadania, quer sejam mais graves ou mais leves, representam um motivo de
preocupação clinica, social e econômica. As informações disponíveis indicam
que, como o próprio nome diz, as ferramenteas escolares da cidadania são
indispensáveis para a obtenção e manutenção de um emprego e renda. As
dificuldades persistentes de aprendizagem escolar constituem também um fator de
risco para desadaptação psicossocial, manifestando-se sob a forma de
psicopatologia internalizantes nas mulheres e exetrnalizantes nos homens. Na
sociedade da informação, as habilidades escolares da população constituem um
dos principais ativos econômicos. Fala-se, inclusive, em capital cognitivo.
Enquanto o capital cognitivo do Brasil for baixo, o gigante continuará
adormecido.
As causas das
dificuldades persistentes de aprendizagem são múltiplas e podem ser
sistematizadas em fatores relacionados à criança, à família, à escola e ao
contexto sócio-cultural mais amplo. O interesse principal da neuropsicologia
diz respeito às causas de dificuldades de aprendizagem inerentes ao indivíduo.
O neuropsicólogo está interessado em compreender, diagnósticar e ajudar
crianças com diagnóstico de dislexia, dislexia, TDAH, autismo, deficiência intelectual
etc. que apresentam dificuldades de aprendizagem.
Mas nenhum indivíduo
é uma ilha. Até as crianças com dificuldades de aprendizagem vivem em condições
ecológicas com potencial para afetar seu desempenho escolar. Apesar de a
neuropsicologia estar mais interessada na variabilidade interindividual
inerente, causada por transtornos do desenvolvimento ou lesões cerebrais, a
dimensão ecológica não pode ser negligenciada no diagnóstico e intervenção.
Nesse pequeno ensaio serão discutidos algumas interações entre variáveis
neuropsicológicas e ecológicas com potencial para afetar o desempenho escolar.
A discussão será
contextualizada na experiência do Ambulatório Número, uma clinica especializada
em dificuldades de aprendizagem da aritmética e síndromes genéticas que
funciona no Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG (tel.
31/34096295). O Numero é um ambulatório de pesquisa no qual os atendimentos são
conduzidos no âmbito de projetos de pesquisa aprovados pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da UFMG e financiados por entidades públicas de fomeneto à pesquisa,
tais como FAPEMIG, CNPq e CAPES. No âmbito das pesquisas são realizadas atividades
de formação de recuros humanos (iniciação científica, mestrado, doutorado e
pós-doutorado) e atendimento clinico à comunidade carente, incluindo
diagnóstico, aconselhamento e intervenções neuropsicológicos.
Os atendimentos no
Número são realizados em três fases: 1) Avaliação neuropsicológica breve; 2)
Avaliação neuropsicológica geral; e 3) Avaliação das habilidades
cognitivo-numéricas e intervenções.
A avaliação
neuropsicológica breve é usada como um processo de triagem para selecionar casos nos quais haja a suspeita
diagnóstica de discalculia do desenvolvimento. As mães ou responsáveis realizam
uma entrevista clinica e respondem a questionários sobre o comportamento e
sintomas psicopatológicos das crianças. As crianças realizam uma bateria
neuropsicológica breve consistindo de testes de inteligência e de desempenho escolar
padronizado em aritmética e ortografia. Após a realização da avaliação
neuropsicológica é fornecido um relatório para as mães, sendo realizada uma
entrevista de aconselhamento. Os casos nos quais foi levantada a hipótese de
discalculia são indicados para a segunda fase de avaliação. Os outros casos são
encaminhados para os recursos diagnósticos e terapêuticos disponíveis na
comunidade, sempre que necessário. A avaliação neuropsicológica breve é
realizada em uma sessão simultânea com a mãe e com a criança e uma sessão de
devolução com a mãe.
A segunda fase de
avaliação se estende por quatro a cinco sessões individuais. São selecionadas
para a segunda fase as crianças que apresentam quadros sugestivos de
discalculia do desenvolvimento. São critérios de exclusão a presença de
deficiência intelectual, autismo e transtornos de conduta. A segunda fase
compreende uma anamnese mais aprofundada e abrangente com a mãe testes nos
domínios cognitivos geral (inteligência, destreza motora, habilidades
visoespaciais e visoconstrutivas, memoria de trabalho e funções executivas,
leitura e processamento fonológico) e numéricas (senso numérico,
transcodificação entre notações numéricas, operações aritméticas simples, fatos
aritméticos, problemas aritméticos verbalmente formulados e ansiedade
matemática). A segunda fase de avaliação encerra-se novamente com o
fornecimento de um relatório e uma entrevista de aconselhamento com a mãe.
A segunda fase de
avaliação neuropsicológica permite confirmar o diagnóstico de discalculia do
desenvolvimento e identificar comorbidades associadas, tais como ansiedade
matemática ou generalizada, hiperatividade, dislexia etc. Os casos
identificados como discalculia do desenvolvimento são então encaminhados para a
terceira fase do atendimento. O objetivo da terceira fase é caracterizar o
subtipo de discalculia do desenvolvimento, orientando assim e iniciando o
processo de intervenção.
Na terceira fase, o
perfil de habilidades numéricas comprometidas e preservadas é analisado, sendo
realizados testes complementares quando necessário. Essa análise mais aprofundada
é conduzida à luz dos modelos cognitivo-neuropsicológicos dspóniveis,
permitindo caracterizar o desempenho da criança em função de domínios do
processamento numérico e da aritmética: senso numérico, processamento
simbólico, operações simples ou mais complexas, problemas verbais etc. É
possível caracterizar também os fatores
cognitivos potencialmente implicados nas dificuldades tais como problemas
motivacionais (ansiedade, impulsividade)ou cognitivos (dificuldades com a
memória de trablao e funções executivos, com o senso numérico, com o
processamento fonológico, com o processamento visoespacial etc.).
A partir da caracterização
mais detalhada do perfil de processos psicológicos comprometidos e preservados
é possível formular programas de intervenção para o senso numérico, domínio do
sistema arábico, conceitos e procedimentos operacionais, fatos aritméticos e
problemas verbais. Os aspectos emocionais e motivacionais são atendidos através
de programas de treinamento comportalmental para pais e programas de
treinamento cognitivo-comportamental para ansiedade matemática para as
crianças.
As intervenções com
as crianças e com os pais são formuladas em moldes cognitivo-comportamentais,
incluindo ingredientes de análise dos componentes das habilidades e instrução
das habilidades mais simples para as mais complexas, uso dew representações concretas
de apoio, individualização curricular e aprendizagem dsem erro, exercícios e
prática repetidos e distribuídos com feedback, auto-controle e auto-instrução, reforçamento
diferencial e auto-reforçamento.
O atendimento no
Ambulatório Número procura ser integral,
considernado as necessidades da criança e da família. Mas é fortemente
influenciado pelo modelo assistencial de saúde, por utilizar categorias
nosológicas e formular diagnósticos. O modelo de saúde tem sido criticado como “medicalização
do ensnio” e algumas alternativas foram propostas para resolver as dificuldades
de aprendizagem no âmbito da própria escola, sem recorres a profissionais de
saúde.
Um dos modelos alternativos
preconizados é a resposta à intervenção ou (RTI, response to intervention). O
modelo de RTI consiste em empregar instrumentos de rastreio no último ano da
educação e identificar crianças que apresentam dificuldades cognitivas
sugestivas de problemas ulteriores de aprendizagem, quer seja na leitura quer
seja na aritmética. As crianças identificadas como estado sob risco recebem
então intervenções pedagógicas adicionais e mais intensivas, sendo
posteriormente avaliadas. Se a criança persistir com dificuldades um novo ciclo
de intervenção é iniciado e assim ucessivamente.
O modelo de RTI tem
vários atrativos, mas também se caracteriza por alguns problemas. As principais
vantagens da RTI são a ênfase no diagnóstico e intervenção precoce e o manejo
preventivo das dificuldades no próprio âmbito escolar. Sem haver a necessidade de
recrutar outros profissionais ou encaminhar a criança para serviços fora da
escola.
Uma das dificuldades
com a RTI é que o seu sucesso depende da qualidade da intervenção bem como do
engajamento das professoras e alunos. O maior problema talvez seja, entretanto,
que algumas crianças vão continuar apresentando dificuldades graves e resistentes
às intervenções sucessivas. Provavelmente a RTI é adequada para melhorar as
dificuldades de crianças cujas dificuldades são mais leves, temporárias e mais
relacionadas a causas ambientais do que a fatores intrínsecos. Um grupo
reduzido porém significativo de crianças vai permanecer com dificuldades apesar
de todos os esforços pedagógicos. São essas as crianças que apresentam transtornos
de aprendizagem.
Essas crianças com
dificuldades mais graves e persistentes têm um risco maior de apresentar
problemas médicos associados, tais como deficiência intelectual, lesões
cerebrais, síndromes genéticas, transtornos psiquiátricos ou doenças clinicas
em geral. Essas crianças geralmente necessitam também de intervenções mais
intensas e individualizadas. Uma dos potenciais problemas com a RTI é retardar
o acesso dessas crianças aos serviços especializados que as beneficiariam.
Um dos maiores
problemas do modelo biomédico dos transtornos de aprendizagem é a
arbitrariedade dos critérios diagnósticos. Como não existem marcadores
biológicos ou genéticos específicos dos diversos transtornos de aprendizagem, o
diagnóstico se baseia em critérios estatísticos arbitrários.
O diagnóstico se
baseia na pressuposição de que se a criança apresenta Inteligência normal e um
desempenho acadêmico em uma oumais disciplinas inferior ao percentil 5, é
grande a probabilidade de que, além de grave o problema seja constitucional e
persistente. Um ponto de corte mais elevado, no percentil 35, p. ex., identifica
crianças com problemas menos graves e maior probabilidade de apresentar
dificuldades temporárias e influenciadas por fatores ambientais.
O modelo nosológico
ou biomédico funciona relativamente bem, permitindo identificar crianças cujas
dificuldades são mais graves, persistentes, com maior probabilidade de
comorbidades associadas e que requerem internveções mais intensivas e individualizadas.
Obviamente, o modelo tem suas falhas, as quais ocorrem sob a forma de falsos
positivos e falsos negativos.
Um grupo de crianças
que representa um desafio diagnóstico e terapêutico considerável são aquelas
crianças com inteligência normal porém baixa, oriundas de famílias pobres e com
nível educacional baixo e freqüentando escolas de má qualidade. Muitas dessas
crianças preenchem os critérios formais para o diagnóstico de um transtorno
específico de aprendizagem, mas transmitem a impressão clinica de que o
problema pode ser mais de natureza ecológica do que constitucional.
São crianças oriundas
de famílias pobres, nas quais os pais poucas condições têm de estimular os
filhos ou de auxilá-los nas atividades escolares. Os pais podem, inclusive, ser
analfabetos. Essas crianças também freqüentam escolas de má-qualidade, nas quais recebem
pouca ou nenhuma atenção por partedas professoras. As características
individuais podem incluir agitação, desatenção e impulsividade, além de uma inteligência
normal porém baixa. O resultado é que o menino pode chegar à adolescência sem
ser alfabetizado ou sem haver compreendido as operações aritméticas ou com
funciona o sistema numeral arábico.
Sabe-se que crianças
com QI acima de 70 porém abaixo de 85, ou seja, um desvio-padrão abaixo da
média, apresentam risco significativo de apresentar dificuldades de
aprendizagem escolar. Em muitos países essas crianças são identificadas no
primeiro ano do ensino fundamental e passam a receber intervenções pedagógicas
especializadas.
Muitas vezes surgem
dilemas quanto ao diagnóstico diferencial com deficiência intelectual. O
resultados de algumas crianças nos testes de QI pode situar-se abaixo do ponto
de corte de 70 para deficiência intelectual. Nesses casos o mau resultado nos
testes de QI contratas com indicadores clínicos de que a crianção não é
deficiente, tais como o fato de que apresenta boas habilidades de auto-cuidado,
tem boa capacidade para auxiliar nas tarefas domésticas, tem amigos sendo
socialmente bem adaptada e apresenta boas habilidades práticas, tais como
fabricar e empinar uma pipa. O diagnóstico deve então ser baseado no juízo clínico
e não do resultados dos testes de inteligência. Os testes psicométricos falham,
não revelando de forma fidedigna o nível de funcionamento do indivíduo.
As crianças com o
perfil de agitação, inteligência baixa, família pobre e esccola ruim constituem
um desafio para os neuropsicológos. O foco da neuropsicologia é na
identificação de vulnerabilidades individuais, ainda que as mesmas possam ser
nfluenciadas por vulnerabilidades ecológicas e essas últimas devam ser
identificadas e consideradas. Mas se um jovem de 15 anos que ainda não foi
alfabetizado apresenta esse perfil fica muito difícil decidir se ele tem uma
dislexia do desenvolvimento ou se as suas dificuldades são apenas o resultado
de uma ecologia adversa ou da interação de ambos tipos de fatores.
Um indicador valioso
nesses casos vem da análise do desenvolvimento dos irmãos. A mãe pode ser
analfabeta e a escola ruim. Mas se os irmãos mais velhos se encaminharam na
vida, fazendo ensnio médio, arrumando emprego ou até mesmo curansado um faculdade,
então deve ser seriamente considerada a possiblidade de que a criança apresente
alguma vulnerabilidade intrínseca. A avaliação neuropsicológica é importante
mesmo nesses casos porque ajuda identificar as vulnerabilidades individuais e a
mapear como elas interagem com as restrições ecológicas ao desenvolvimento da
criança.
Bem mais difíceis são
os problemas decorrentes da má-qualidade da educação, tanto da escola quanto da
falta de políticas educacionais eficazes. Uma aluna comentou certa vez que o
seu pai é professor de História no Ensino Fundamental II. Ela dá aulas para
turmas do 7º. ao 9º. anos. Sua tarefa inicia-se no início do ano pela alfabetização dos alunos. Não tem
como ensinar História para um jovem que
não sabe ler.
Por que o pai da
aluna consegue alfabetizar os seus alunos, tarefa que fora impossível para os
professores que cuidaram das crianças até o final do Fundamental II? Por que as
crianças são promovidas de ano apesar de não serem alfabetizadas? Tudo indica
que em muitas crianças as dificuldades de aprendizagem refletem um complexo
processo de interação entre vulnerabilidades individuais e cológicas. Em outras
as dificuldades podem decorrer apenas do fracasso da educação escolar.
Identificando as vulnerabilidades e fortitudes individuais a neuropsicologia
pode auxiliar a compensar as dificuldades e promover as facilidades de modo que
a orientar os pais de modo que a criança tenha seu desenvolvimento favorecido.