Monday, July 04, 2016

Como se desenvolve a compreensão leitora?

As dificuldades com a leitura podem ocorrer sob duas formas: a dislexia e as dificuldades com a compreensão leitora. Nas escritas ocidentais, a dislexia consiste basicamente em uma dificuldade com o processamento fonológico, que dificulta a automatização da decodificação das letras para os sons.

O interesse pela compreensão leitora é mais recente, mas muito progresso está sendo realizado. Hà evidências de uma dissociação entre dificuldades de leitura de palavras e compreensão leitora. As dificuldades com a decodificação visual das palavras geralmente interferem com a compreensão. Mas há crianças com dificuldades de decodificação sem dificuldades de compreensão e crianças com dificuldades de compreensão sem dificuldades de decodificação.

No início da aprendizagem de leitura a criança precisa correlacionar cada letra ou conjunto de letras com o fonema correspondente, gerar uma pronúncia plausível e, a partir dessa representação fonológica acessar o significado da palavra. Com a prática, a criança vai automatizando unidades de correlação entre letras, som e significado cada vez maiores, de modo que adquire um “vocabulário de vista” ou léxico de leitura. O léxico de leitura permite um acesso quase direto ao significado, com pouca ou nenhuma mediação fonológica.

As dificuldades com a decodificação fonológica nos indivíduos disléxicos tornam a leitura lenta, laboriosa, impedindo o desenvolvimento de um léxico ortográfico e o conseqüente acesso rápido ao significado. A leitura torna-se ineficiente. Recursos escassos de processamento na memória de trabalho são gastos com a decodificação e sobram menos recursos para a compreensão.

A compreensão é geralmente prejudicada na dislexia. Ao menos no ínicio, a fluência de leitura de palavras é um fator limitante da compreensão. Mas alguns indivíduos conseguem à custa de muito esforço acessar o significado das palavras, desenvolvendo estratégias compensatórias para a leitura com compreensão.

Nas últimas décadas tem aumentado o interesse pelo perfil inverso. Ou seja, crianças que apesar de boas habilidades de decodificação visual, apresentam dificuldades com a compreensão leitora. As dificuldades com a compreensão leitora são  tão ou mais freqüentes do que as dificuldades de decodificação visual e se associam ao analfabetismo funcional.

É possível portanto constatar em alguns casos uma dissociação dupla entre dificuldades com a decodificação e boa compreensão e dificuldades com a compreensão e boa decodificação. A existência dessa dupla dissociação sugere que os mecanismos neurocognitivos subjacentes à decodificação e compreensão são distintos.

A teoria simples da leitura sistematiza o processo de aprendizagem da mesma em duas etapas, as quais são parcialmente superponíveis (Figura 1). A compreensão leitora origina-se da interação entre a compreensão lingüística e a decodificação visual das palavras. A ênfase inicial na leitura é a decodificação. As cartilhas de alfabetização são e precisam ser ralas de significado. A ênfase recai na automatização da decodificação fonológica, a qual exige três anos de árduo trabalho da criança.
  


Figura 1 – Teoria simples da leitura. A teoria simples da leitura pressupõe que a leitura competente depende do entrelaçamento de processos relacionados à compreensão da linguagem e decodficiação visual das palavras (Figura modificacada a partir de Oakhill, Cain Elbro, 2014).

Segundo a teoria simples da aprendizagem a compreensão leitora se desenvolve a partir do entrelaçamento progressivo entre a compreensão da linguagem oral e a decodificação visual de palavras isoladas. Daí a importância das atividades de contar histórias e de ler para as crianças em idade pré-escolar. A experiência previa com a compreensão oral de textos, principalmente narrativos, é um dos precursores da compreensão leitora.

Gradualmente, à medida que a decodificação vai sendo automatizada, a ênfase recai sobre a compreensão leitora. Os textos escolares passam então a trabalhar com um discurso progressivamente mais denso de significado. O foco inicial que era aprender a ler muda para ler para aprender.

A fluência na decodificação visual das palavras é o principal fator limitante para a compreensão leitora nas fases iniciais. À medida que a perícia com a decodificação se desenvolve o vocabulário assume uma importância maior.

A decodificação das palavras é uma habilidade com repertório limitado. Sua aquisição toma cerca de três anos da criança. Uma vez completa, entretanto, a decodificação pouco melhora. A compreensão leitora é bem mais complexa, constituindo um exemplo de habilidade com repertório ilimitado. A compreensão leitora vai se aperfeiçoando ao longo de toda a vida.

A compreensão leitora é um processo bem mais complexo do que a decodificação. O produto final da compreensão leitora é a geração de um modelo mental ou modelo situacional, que representa de forma sumarizada e multimidiática o sentido geral do texto.

O modelo situacional é construído a partir da interação entre processos bottom-up e top-down. Os processos bottom-up consistem no acesso ao significado das palavras ou subcomponentes de palavras (morfemas), compreensão das frases, estabelecimento de conexões entre as sentenças. Os processos bottom-up permitem gerar uma versão preliminar do significado literal do texto. A qual interage com mecanismos top-down. Os mecanismos top-down permitem a geração de inferências a partir do conhecimento dos tipos de estrutura textual e do conhecimento de mundo.

Toda a informação superficial do texto precisa ser mantida na memória de trabalho, de modo que a coerência global possa ser estabelecida. O processo de compreensão precisa ser monitorizado on line, verificando a cada instante se há coesão local e global, se novas inferências precisam ser feitas e se correções, releituras ou buscas adicionais de informação se fazem necessárias. O processo vai se repetindo ciclicamente à medida que a leitura transcorre: construção do sentido literal, realização de inferência, construção do modelo situacional. Todos esses processos são monitorados constantemente e, como a  experiência pessoal de cada um na leitura indica, correções, recomeços, releituras se fazem freqüentemente necessários para construir um modelo situacional coerente e plausível. Por vezes é necessário esclarecer algumas palavras desconhecidas que se repetem no texto e desempenham um papel crucial na sua compreensão.

A compreensão leitora depende crucialmente de dois processos executivos, a memória de trabalho e a monitorização da compreensão. A memória de trabalho se faz necessária, em primeiro lugar, para manter as informações relevantes na mente pelo tempo que se fizer necessário à construção do modelo situacional. Especialmente importantes são os processos executivos na memória de trabalho que permitem a comparção entre os diversos trechos do texto em busca de coesão e a geração de inferências. O papel da memória de trabalho na compreensão de textos é sustentado principalmente pelas regiões dorsolaterais do córtex pré-frontal.

O processo de monitorização da compreensão e correção de erros depende do córtex pré-frontal dorsolateral medial. As dificuldades de monitorização podem ser um problema saliente nas crianças com transtorno do déficit de atenção por hiperatividade (TDAH).

Além das funções executivas discutidas acima, o substrato neural da compreensão leitora também é bastante complexo e começa a ser destrinchado. A decodificação visual das palavras depende de conexões entre o giro fusiforme esquerdo e as porções posteriores da área perisilviana da linguagem também no hesmifério esquerdo. O acesso ao léxico semântico é implementado pelo córtex pré-frontal ínfero-lateral a partir de informações representadas de forma distribuída por amplas regiões do córtex cerebral. A compreensão sintática depende das porções mais anterior da área perisilviana esquerda da linguagem. O processamento textual propriamente dito recruta conexões entre o córtex pré-frontal, parietal posterior e temporal ântero-lateral no hemisfério direito. E, finalmente, a inteligência geral, que se faz necessária para a realização de inferências, depende de interações entre o córtex pré-frontal dorsolateral e o córtex parietal posterior.

A complexidade da rede cognitiva envolvida na compreensão leitura indica que a mesma pode ser comprometida de diversas formas. As dificuldades com a leitura podem ocorrer então sob três formas: dislexia ou dificuldade isolada da decodificação visual das palavras, dificuldade específica da compreensão leitura e dificuldades mistas de decodificação e compreensão.

As dificuldades de compreensão podem ocorrer, portanto, em diversas circunstâncias: a) deficiência intelectual; b) autismo e transtorno semântico-pragmático da linguagem; c) transtornos específicos de aquisição da linguagem oral; d) dislexia; e) TDAH;  f) transtorno não-verbal de aprendizagem; g) seqüelas de lesões hemisféricas direitas em crianças mais velhas; h) falta de estimulação afetando o desenvolvimento do vocabulário, conhecimento de mundo, compreensão da linguagem oral; e i) transtorno específico de aquisição da compreensão leitora.  

A existência de um “transtorno” específico da compreensão leitora é discutível. A maioria dessas crianças também apresenta dificuldades com a compreensão oral. Dessa forma, as dificuldades com a compreensão leitora em crianças sem outros problemas neurológicos poderia representar a seqüela de um transtorno específico de aquisição da linguagem oral. As dificuldades isoladas com a compreensão leitora devem também ser diferenciadasda deficiência intelectual leve e da falta de estimulação e experiência cultural.

Há considerável controvérsia na literatura sobre como promover o desenvolvimento da compreensão leitora e sobre como remediá-la em caso de dificuldades. Basicamente duas abordagens têm sido preconizadas, conforme preconizem interevenções domínio-específicas ou inespecíficas.

Uma corrente domínio-inespecífica defende que as crianças recebem instrução em estratégias de processamento textual, independemente do domínio ou conteúdo ao qual se aplicam. Tais programas preconizam por exemplo, treinamento em memória de trabalho, monitorizaçãoda compreensão, inferências, detecção de coesão local e global etc. Segundo essa perspectiva, o importante não é o conteúdo mas a perícia nas estratégias e procedimentos. O exercício das estratégias e procedimentos em conteúdos distintos promoveria então a generalização.

A outra abordagem é domínio-específica e enfatiza a interdependência entre compreensão leitora e vocabulário ou conhecimento de mundo. O vocabulário é preditor da compreensão leitora e, ao mesmo tempo, a partir de um certo momento, a leitura é o principal veículo para a aprendizagem de novas palavras.

A abordagem domínio-específica preconiza que as estratégias e procedimentos de compreensão leitora sejam trabalhados por um bom tempo em um domínio específico do conhecimento. Quando a criança adquire maestria sobre o vocabulário de um domínio específica e sobre as estratégias e procedimentos relevantes pode-se prosseguir para um novo domínio do conhecimento e assim por diante.

A instrução em vocabulário é um método eficiente para promover a compreensão leitora. A eficácia dos treinamentos de memória de trabalho e monitorização são questionáveis, uma vez que os efeitos são pequenos, temporários e dificilmente se generalizam entre um domínio e outro. Aliar a instrução em vocabulário com treinamentos de memória de trabalho, monitorização e inferências pode potencializar os efeitos de cada abordagem.

A comparação entre a aprendizagem da leitura e da matemática pode ser interessante. A aritmética é hierarquizada em um número muito maior de níveis de complexidade: senso numérico, contagem, operações, fatos aritméticos, cálculo multidigital, problemas verbalmente formulados, divisão, frações etc.

A leitura é hierarquizada em dois níveis, decodificação e compreensão. Mas a simplicidade é enganosa. A compreensão leitora é uma habilidade que se aperfeiçoa pela vida afora e depende da prática de leitura. Basta mencionar, mais uma vez os fatores implicados no desenvolvimento da compreensão leitora: a) inteligência (inferências verbais, imaginação visoespacial); b) linguagem (compreensão oral, semântica lexical, morfologia, sintaxe, processamento textual); c) funções executivas (memória de trabalho, monitorização da compreensão); d) conhecimento de mundo.

Além de ser importante para a aquisição de vocabulário, a compreensão leitora é relevante também para a resolução de problemas aritméticos verbalmente formulados. Os problemas verbais, por outro lado, constituem o modo pelo qual a aritmética se aplica à vida cotidiana.

O desenvolvimento da compreensão leitora é indiscutivelmente um dos principais objetivos da educação escolar. Sua importância pode ser ilustrada pela seguinte anedota.

Há muitos anos atrás nós tínhamos uma vizinha que era professora da educação infantil. Naquela época saiu uma lei que obrigava todas as professoras a terem curso superior, inclusive as professoras da educação infantil. Como essa senhora só tinha o magistério ela começou a se mexer para estudar pedagogia e passou a freqüentar disciplinas isoladas na universidade. Um dia ela contou para a minha esposa que estava super feliz com suas aulas na universidade. Ela estava aprendendo muito e, em função dessas aulas, já estava começando a compreender o que a revista Veja escrevia.

Sempre que me lembro dessa história, fico pensando na minha própria experiência de ler em alemão. Após quatro anos e meio estudando alemão eu conseguia ler tudo quanto é tipo de jornal e revista. Adorava ler um jornal semanário, o Die Zeit. Mas apanhava da revista Der Spiegel. O Spiegel é escrito numa linguagem tão rebuscada com vocabulário e construções frasais tão complexos que ainda me dá uma surra.

Estão certas os pedagogos que se preocupam com a compreensão leitora. Só que devemos ter muito cuidado para não colocar a carroça na frente dos bois. A compreensão leitora é uma habilidade complexa que depende crucialmente de outras mais elementares. A decodidificação visual de palavras isoladas, o vocabulário e a compreensão oral de histórias são habilidades cruciais e limitantes do desenvolvimento da compreensão leitora.

Por outro lado, a necessidade de programas específicos para a promoção da compreensão leitora é ilustrada pelo fenômeno do “fourth grade slump”. Nas últimas décadas, a educação infantil e primária nos Estados Unidos tem investido fortemente na decodificação de palavras isoladas. Como resultado disso as diferenças entre grupos sócio-culturais majoritários e minoritários tendem a desaparecer nos primeiros três anos de escola primária. As dificuldades persistem e se acentuam, entretanto, a partir do quarto ano.

A explicação mais plausível para o fourth grade slump é a demanda crescente por interpretação de texto a partir do momento em que a dedodificação de palavras é adquirida. Isso coloca as crianças que vêm de famílias em pior situação social, educacional e econômica em situação de desvantagem. No Brasil também, as crianças mais pobres têm um vocabulário mais restrito e menores habilidades de compreensão oral. Daí a importância de enfatizar no currículo infantil e primário além da decodificação visual de palavras isoladas, o vocabulário e conhecimento de mundo e a compreensão de textos orais.

Isso nos traz de volta à questão do conhecimento. Pode até ser que a educação não se reduza à mera transmissão de conhecimento. É verdade também que a  leitura é o principal veículo par a expansão do vocabulário e conhecimento de mundo. Mas sem um vocabulário mínimo (conhecimento semântico) e habilidades de decodificação (conhecimento procedimental) não tem como promover a interpretação de textos e o pensamento crítico que caracterizam a cidadania plena. Isso nos traz de volta ao conhecimento.

Um comentário final se faz, entretanto, necessário. A linguagem escrita se utiliza de um registro mais formal do que a linguagem oral ou multimidiática. A linguagem escrita promove assim o desenvolvimento de habilidades de raciocínio mais formal, logicamente complexos. Entretatanto, as outras modalidades discursivas não devem ser menosprezadas. As corrrelaões entre a compreensão leitora, oral e através de vídeos são altíssimas, da ordem de r = 0,9.

Isso me leva a outra reminiscência pessoal. Quando meus filhos eram pequenos, eles freqüentemente me surpreendiam com alguma inusitada que haviam aprendiddo. Alguma coisa que eu, muitas vezes, não sabia. Daí eu perguntava onde eles tinham aprendido aquilo. E eles me respondiam que tinham visto nos Simpsons. Ao longo de muitos anos os Simpson foram uma das principais fonte de conhecimento de mundo para os meus filhos. Depois eles começaram a assistir o South Park e aprenderam mais ainda.


Referência

Oakhill, J., Cain, K., Elbro, C. (2014). Understanding and teaching reading comprehension. A handbook. London: Routledge.


Comentário: Esse livro é fantástico. Foi redigido especialmente para professoras, em linguagem simples e didática. O referencial conceitual e empírico é atualizadíssimo, baseado na psicologia cognitiva do desenvolvimento. É um exemplo de educação baseada em evidências. Mostra o caminho  da roça para aplicar as descobertas da ciência cognitiva na sala de aula. As autoras sugerem dezenas de atividades para serem realizadas em sala de aula ou em programas de intervenção individualizados, para as quais são fornecidas sugestões de respostas.

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