Wednesday, September 28, 2016

O NEUROPSICÓLOGO DEVE SER UM GRILO FALANTE? MÁXIMAS DO ACONSELHAMENTO NEUROPSICOLÓGICO




Dizer que o neuropsicólogo deve ser um grilo falante significa enfatizar o componente de aconselhamento da avaliação neuropsicológica. Mas é uma metáfora que tem seus riscos. A avaliação neuropsicológica tem muitas finalidades, tais como diagnóstico, prognóstico e aconselhamento etc. O aconselhamento é o modo como o neuropsicólogo auxilia a pessoa a compreender a natureza do seu problema, a  interpretá-lo à luz do conhecimento científico, a identificar quais são as  possibilidades de enfrentamento e os recursos disponíveis, quais são as decisões que precisam ser tomadas e quais consequências possivelmente associadas a cada opção etc. Enfim, o aconselhamento é a intervenção acoplada à avaliação neuropsicológica que permite informar as decisões a serem tomadas pelo cliente, por sua família e por outros profissionais.






O aconselhamento é uma forma de intervenção breve e não diretiva e deve ser um componente obrigatório da avaliação neuropsicológica. Não é de muita serventia fazer uma série de testes, levantar escores e conferir nas normas, se os resultados não são integrados numa hipótese diagnóstica, a qual é então submetida a um escrutínio de validação. Efetuado o diagnóstico, o significado do mesmo precisa ser transmitido aos consumidores do relatório neuropsicólogo. É nisso que consiste o aconselhamento. O aconselhamento é a cereja do bolo e pode ser sistematizado através de algumas máximas:


1.    O ACONSELHAMENTO DEVE SER BREVE.

A avaliação neuropsicológica, incluindo o aconselhamento tem uma duração ótima. A avaliação neuropsicológica não pode ser muito curta. Pode-se pensar assim. Os testes e observações realizados constituem amostragens do comportamento do cliente. Não é recomendável amostrar o comportamento do examinando em apenas uma ocasião. A pessoa pode estar receosa, pode estar cansada, seu comportamento pode ser intermitente, pode variar ao longo do dia ou em função da tarefaetc. A variabilidade de desempenho é uma característica importantíssima do TDAH. Atenção individualizada e tarefas desafiadoras são motivantes e promovem engajamento. Com a repetição e aumento do grau de dificuldade podem vir o tédio ou a ansiedade de desempenho. Então é preciso amostrar o comportamento do probando ao menos umas duas vezes, procurando variar as circunstâncias e o tipo de tarefa apresentada.

Mas a avaliação não pode se prolongar por muito tempo. Os clientes com nível educacional mais baixo não conseguem distinguir bem avaliação de terapia. Freqüentemente as mães relatam que o menino melhorou após começar a avaliação. E isso acontece e decorre da atenção positiva que a criança recebe durante a avaliação. As crianças com dificuldades de comportamento e/ou de aprendizagem recebem pouca atenção de boa qualidade dos adultos. A atenção dos adultos geralmente se fixa no problema de comportamento ou de aprendizagem. Assim, não é surpreendente que a criança mude de atitude ao receber atenção de boa qualidade, individualizada, de um adulto que lhe é simpático e estimulante.

Uma avaliação muito demorada acarreta também consigo problemas relacionados ao aprofundamento do rapport e desenvolvimento de transferência e contratransferência. Pode ficar difícil na hora do desmame. Na hora de encaminhar a criança e a família para algum tipo de tratamento. No início, algumas crianças se mostram receosas frente aos testes. Mas, com o passar do tempo, muitos adquirem gosto pelas atividades. E ficam frustradas quando lhes é comunicado que não precisarão mais retornar.

A duração excessiva do processo de avaliação é um dos principais problemas que enfrentamos quando os alunos de graduação estão na fase inicial da sua aprendizagem. Muitas vezes a anamnese precisa ser refeita porque ficaram faltando informações ou porque as informações obtidas não são conclusivas. Freqüentemente também testes adicionais precisam ser aplicados em função das  hipóteses levantadas, com os quais os alunos não estão familiarizados. Assim, sendo, algumas vezes o processo de avaliação pode se prolongar por um semestre letivo inteiro. Isso é péssimo. Não existe uma regra fixa. Mas uma boa avaliação deve durar de três a cinco ou no máximo seis sessões: uma entrevista de anamnese, três sessões de testes e uma entrevista de aconselhamento.

Uma avaliação muito curta é superficial, amostra inadequadamente o comportamento e induz a erro. Uma avaliação muito prolongada favorece o desenvolvimento de transferência, que precisará ser elaborada posteriormente. E esse não é o objetivo da avaliação neuropsicológica. A intervenção associada à avaliação neuropsicológica é o aconselhamento.


2.    O ACONSELHAMENTO DEVE SER NÃO-DIRETIVO.

O neuropsicólogo não precisa ser uma tela em branco sobre a qual se projetam os anseios do cliente, mas deve procurar ser o menos diretivo possível. Isso nem sempre funciona. Mas é um ideal a ser almejado e perseguido sempre que possível. O ideal contemporâneo é a assistência colaborativa de saúde (Haase, 2009a,b, von Korff et al., 1997). Segundo o modelo colaborativo, o paciente deve funcionar como um membro da equipe multiprofissional. O paciente deve ser informado e deve participar ativamente no processo de tomada de decisões diagnósticas e terapêuticas. O ideal de assistência colaborativa à saúde se coaduna com os princípios bioéticos de autonomia e decisão informada (Beauchamp & Childress, 2002).

A assistência colaborativa de saúde é extremamente importante no caso das doenças crônicas, como é a maioria dos problemas neuropsicológicos. Os problemas de saúde nesses casos têm repercussões multisistêmicas, necessitam atendimento multiprofissional e, frequentemente, decisões difíceis precisam ser tomadas considerando riscos, benefícios, disponibilidade de serviços, custo financeiro, afetivo e esforço etc.

Assim sendo, o aconselhamento deve ser não-diretivo no sentido de que o neuropsicólogo não deve prescrever o que o cliente deve fazer ou deixar o fazer. O papel do neuropsicólogo deve ser mais psicoeducativo, esclarecendo a natureza do problema, mapeando as opções de diagnóstico e tratamento, a disponibilidade de serviços, o prognóstico e o custo e as consequências associadas às decisões eventualmente tomadas.

Esse modelo funciona muito bem com pessoas educadas e com capacidade de insight. Seus resultados podem ser contraproducentes em indivíduos com menor educação formal e menor capacidade de insight. Nesses casos o neuropsicólogo pode e deve ser mais diretivo. O não-intervencionismo excessivo pode causar confusão e aumentar o sofrimento do cliente e da família. Por vezes, as pessoas precisam receber uma orientação mais diretiva para se sentirem mais seguras.

O modelo não-diretivo, colaborativo de assistência se coaduna muito bem ainda com o movimento da psicologia positiva, o qual chegou à neuropsicologia também (Randolph, 2013). A idéia subjacente à psicologia e neuropsicologia positivas é que há necessidade de desenvolver uma agenda positiva para o caso das doenças crônicas, Uma agenda que focalize as possibilidades de desenvolvimento pessoal e promoção da qualidade de vida, retirando atenção das limitações e deficiências.

O movimento da assistência positiva de saúde se baseia  na observação de que muitas vezes e paradoxalmente até, as pessoas mantém ou recuperam sua qualidade vida mesmo face a situações ou condições de  saúde muito adversas. Albrecht e Devlieger (1999) cunharam o termo “paradoxo da incapacidade” ou “paradoxo da felicidade”. Ou seja, a pessoa mantém o nível de funcionamento e o seu bem estar apesar de todas apostas em contrário.

A manutenção da qualidade de vida face a deficiências pode ser explicada por diversos mecanismos de coping, tanto ativos quanto passivos. O engajamento ativo no cuidado da sua própria saúde, a participação na equipe multiprofissional e a ajuda a outros pacientes afetados constituem um importante mecanismo de enfrentamento (Schwartz & Sendor, 1999). Outro mecanismo é a “response shift” ou recalibração dos parâmetros pelos quais o bem estar é aferido. À medida que as incapacidade vão se acumulando, o indivíduo pode ir recablibrando suas expectativas, mudando seus critérios de performance e engajamentos. O engajamento pode ser retirado de uma atividade que se tornou impossível para uma que permanece viável  e promove o desenvolvimento pessoal (Schwartz et al., 2007).

É realmente surpreendente o número de pacientes com doenças crônicas que conseguem manter seu funcionamento e bem estar apesar da adversidade. Mas nem todos conseguem (Vasconcelos et al., 2010). E pode ser inútil e até mesmo desumano desenvolver no paciente a expectativa ou obrigação de manter-se ativo e funcional, de ser um vencedor apesar de toda adversidade (Schwartz, 2000). Algumas pessoas simplesmente não conseguem. Não conseguem porque sua educação, inteligência, regulação emocional, capacidade de insight etc. simplesmente não permitem. Nesses casos, o neuropsicológico precisa ser um pouco mais diretivo, para não sobrecarregar o cliente e sua família.



3.    O ACONSELHAMENTO DEVE SER UMA FORMA DE PSICOEDUCAÇÃO.

Fico muito feliz quando a mãe me fala assim: “Você me ajudou a compreender melhor a minha filha”. O objetivo último da avaliação neuropsicológica é que os diversos consumidores do relatório compreendam melhor o funcionamento do cliente, seus receios, suas limitações e potencialidades.

A dimensão psicoeducativa é intrínseca ao aconselhamento neuropsicológico. A professora encaminha e/ou os pais trazem uma criança à consulta porque a mesma não se comporta ou não aprende conforme a expectativa dos adultos. Modelos e rótulos da psicologia intuitiva são utilizados para se referir   ao  indívíduo e aos sintomas. Freqüentemente se escuta que a criança é lerda, que é burra, que não aprende, que não se esforça, que é preguiçosa, que tem problema de caráter etc. Essas interpretações selvagens, folk-psychologicas, podem ser bem dolorosas para os pais e para a criança, aumentando também o risco de que a professora se sinta desamparada.

A missão do neuropsicólogo é ajudar o indivíduo e a família a reconstruírem sua biografia, de modo que seja pessoal e socialmente aceitável e promotora do crescimento e desenvolvimento pessoal. É muito importante, por exemplo, que a criança, a família e a professora desenvolvam a compreensão de que uma criança com dislexia tem inteligência normal e que seu problema é circunscrito a um sistema neurocognitivo muito delimitado. No caso do TDAH ajuda muito compreender que se trata de uma dimensão da  personalidade associada a dificuldades para postergar a recompensa e não a uma falha de caráter ou déficit cognitivo.

Está muito em voga a crítica da neuropsicologia como medicalização do ensino (Frias & Júlio-Costa, 2013). Ouve-se que os problemas da educação são de natureza sistêmica e política, relacionados à desigualdade social e mecanismos de opressão dos mais pobres etc. etc. Segundo essa cantilena é condenável rotular a criança, atribuindo-lhe responsabilidade por problemas estruturais sociais.

A perspectiva neuropsicológica é distinta. O diagnóstico não deve se restringir à “rotulação”, seja lá o que isso signifique. O aconselhamento é parte inerente ao diagnóstico. E o aconselhamento envolve esse processo de reconstrução da biografia, de criação de uma versão que seja cientificamente informada e pessoal e socialmente aceitável.

A psicoeducação é componente que permite ao indivíduo e à família compreenderem a natureza do problema, aumentarem seu auto-conhecimento, identificarem seus pontos fortes e fracos, tranquilizarem-se quanto ao prognóstico, identificarem os recursos e opções disponíveis quanto ao ao tratamento etc.

A neuropsicologia faz parte sim do aparelho ideológico do estado. A neuropsicologia faz parte do sistema mais amplo de saúde, cuja finalidade é auxiliar as pessoas a enfrentarem suas mazelas. O neuropsicológico está investido sim de um poder e deve assumí-lo. Trata-se do “poder de Esculápio”. Ou seja do poder de absolver culpas e amainar ansiedades à  luz do conhecimento científico e da empatia. A compreensão é o primeiro passo para o alivio do sintoma.


4.    O ACONSELHAMENTO DEVE SE FUNDAMENTAR EM UMA INTERPRETAÇÃO FENOMENOLÓGICA.

Também fico muito feliz quando a mãe me fala assim: “É impressionante como você conseguiu descrever tudo no relatório com fidelidade ao que eu disse. Com as minhas próprias palavras”. A fenomenologia aqui é aquela fenomelogia descritiva dos sintomas de Karl Jaspers e não a fenomenologia de Edmund Husserl (Oyebode, 2015).

O aconselhamento somente vai funcionar se o neuropsicólogo conseguir entender a percepção e compreensão que o cliente tem dos seus próprios problemas, seus sentimentos preocupações, seu interesses, limitações etc. É preciso reconstruir o mundo a partir da perspectiva do cliente para poder ajudá-lo.

Falar isso é uma obviedade. Deveria ser desnecessário. Infelizmente não é.  A julgar pelo número de famílias que passam por diversos neuropsicólogos sem que tenham encontrado um rumo. Uma falácia frequente na neuropsicologia é aquilo que pode ser chamado de a “ilusão dos números”. Ou seja, a crença de que a avaliação neuropsicológica se reduz a um processo objetivo de aplicação de testes, levantamento de escores e conferência de um referencial normativo.

Nada mais errado. Os testes são sujeito a erros, sistemáticos e não sistemáticos. Os escores nos testes não dizem nada, a menos que sejam interpretados à um luz de um referencial neurocognitivo. Os testes neuropsicológicos constituem apenas uma tentativa honesta de aumentar a fidedignidade das medidas e de operacionalizar o teste de hipóteses diagnósticos da maneira mais formal possível.

Mas, por si só, os escores dos testes podem não ter quaisquer implicações para o aconselhamento, para aquilo que o cliente e a família podem ou devem fazer. Para compreender aquilo que pode funcionar e aquilo que pode não funcionar. As intervenções neuropsicológicas são complexas e exigem capacidade de insight e cooperação por parte do cliente e/ou da família. Isso somente é possível quando o neuropsicológico realmente conhece aquela pessoa, sem reduzí-la a um padrão de escores preservados ou deficitários. As ferramentas para isso são clinicas e consistem pura e simplesmente da empatia e da fenomenologia.

A fenomenologia pode ser aprendida através do estudo de livros como o de Oyebode (2015) e supervisão clinica. A grande questão diz respeito à possibilidade de se aprender e desenvolver a empatia, a compaixão e o interesse genuíno. Eu tendo a acreditar que sim.

Os profissionais de saúde precisam também se resguardar contra o desenvolvimento de “calos no coração”, lidando diuturnamente com tanto sofrimento. Tem um estudo muito bacana que explica como isso é possível e se chama: “helping others, helps oneself” (Schwartz & Sendor, 1999). Uma das razões pelas quais as profissões de saúde são tão atrativas é que a melhor maneira de ajudar a si próprio, pode ser ajudar a outrem. A caridade é um componente importante da clinica e precisa ser cultivado. Todo encontro clinico é uma experiência humana. Eu fico satisfeito quando posso gostar dos meus pacientes e quando aprendo alguma coisa com eles. E sempre aprendo muito. Só fico chateado quando não consigo gostar, não consigo empatizar. E, às vezes não consigo. Nesses casos, é melhor que os clientes sejam atendidos por outras pessoas. Vocês podem não acreditar, mas eu também sou humano. Até eu tenho minhas emoções e sentimentos. Agora só falta fazer que nem os alunos do primeiro ano de graduação em psicologia e andar por aí com uma camiseta onde se lê: “Nada do que é humano, me é estranho”.

O neuropsicológo deve ser um grilo falante: Sim, na medida em que conseguir dar bons conselhos. Mas ao mesmo tempo, não pode ser tão chato quanto o grilo falante. O animalzinho irritante, sô!. Mania de dar liçãode moral nos outros. Quando eu era pequeno, eu detestava o grilo falante. O neuropsicólogo não deve ser um moralista.



Referências

Albrecht, G. L., & Devlieger, P. J. (1999). The disability paradozx: high quality of life against all odds. Social Science & Medicine, 48, 977-988.

Beauchamp, T. L., & Childress, J. F. (2002). Princípios de ética biomédica (4ª. ed.). São Paulo: Loyola.

Frias, L., & Júlio-Costa, A. (2013). Os equívocos ea certos da campanha "não à medicalização da vida". Psicologia em Pesquisa UFJF, 7, 3-12.

Haase, V. G. (2009a). O enfoque biopsicossocial na saúde da criança e do adolescente. In V. G. Haase, F. O. Oliveira & F. J. Penna (Orgs.) Aspectos biopsicossociais da saúde na infância e adolescência (pp. 29-65). Belo Horizonte: COOPMED (ISBN: 978-85-7825-003-4).

Haase, V. G. (2009b). O desenvolvimento humano como busca de felicidade. In V. G. Haase, F. O. Ferreira & F. J. Penna (Orgs.) Aspectos biopsicossociais da saúde na infância e adolescência (pp. 601-635). Belo Horizonte: COOPMED (ISBN: 978-85-7825-003-4).

Oyebode, F. (2015). Sims' symptoms in the mind. Textbook of descriptive psychopathology (5th. ed.) Edinburgh: Saunders Elsevier.

Randolph, J. J. (ed.) (2013). Positive  neuropsychology. Evidence-based perspectives on promoting cognitive health. New York: Springer.

Schwartz, B. (2000). Self-determination. The tyranny of freedom. American Psychologist, 55, 79-88.

Schwartz, C. E, & Sendor, R. M. (1999). Helping others helps oneself: response shift effects in peer support. Social Science &  Medicine, 48, 1563-1575.

Schwartz, C. E., Andresenm E. M., Nosekm M. A., Krahnm G. L., & RRTC Expert Panel on Health Status Measurement. (2007). Response shift theory: important implications for measuring quality of life in people with disability. Arch Phys Med Rehabil.  Archives of Physical Medicine and Rehabilitation, 88, 529-636.

Vasconcelos, A. G., Haase, V. G., Limam E. de .P, Lana-Peixoto, M. A. (2010). Maintaining quality of life in multiple sclerosis: fact, fiction, or limited reality? Arquivos de Neuropsiquiatria, 68,  726-730.

von Korff, M., Gruman, J., Schaeffer, J., Curry, S. J. & Wagner, E. D. (1997). Collaborative management of chronic illnesses. Annals of Internal Medicine, 127, 1097-1102.

No comments:

Post a Comment