Você acha que a hipótese de que a dislexia é um transtorno
da lateralização hemisférica cerebral que se associa a anomalias da
lateralidade manual está ultrapassada?
Se você respondeu afirmativamente a essa questão, pode estar
enganado. Alguns avanços na neurobiologia da dislexia do desenvolvimento
sugerem que a mesma pertence a um grupo de doenças chamado ciliopatias, no qual
podem+ existir transtornos da lateralização somática e hemisférica cerebral.
Na década de 1970, Albert Galaburda observou à necrópsia que alguns pacientes com dislexia e epilepsia
apresentavam um transtorno da migração neuronal (Galaburda et al., 2006). Foram
observados focos neuronais ectópicos na substância branca e disgenesias
corticais (p. ex., focos de polimicrogiria e desorganização laminar) principalmente
nas áreas perisilvianas do hemisfério esquerdo.
Posteriormente descobriu-se que vários dos genes implicados
na dislexia estão envolvidos na regulação do desenvolvimento cerebral, incluindo
migração neuronal, formação de espinhas dendríticas, formação e estabilização
de sinapses etc. (Kere, 2014). Funções essas que são relevantes para a
plasticidade neural e aprendizagem.
Uma descoberta sensacional diz respeito ao fato de que
muitos desses genes implicados na dislexia estão envolvidos também na regulação
da sensibilidade, motilidade e tráfico de substâncias no cílio primário. O
cílio primário é uma organela com a forma de flagelo que fica conectada à
membrana celular, comunicando-se com o citoplasma. O cílio está presente na
maioria das células e desempenha papéis importantes na recepção de estímulos
químicos e mecânicos e na motilidade de susbstâncias pelo líquido extracelular.
O cílio está envolvido na regulação da divisão celular e da plasticidade.
A descoberta mais sensacional foi que a motilidade dos
cílios está envolvida no processo de lateralização de diversas funções tais como
a motricidade manual e a linguagem para o hemisfério esquerdo (Brandler &
Paracchini, 2014). P. ex., o gene PCSK6 está implicado na co-ocorrência de
dislexia e transtornos da lateralidade manual relativa. Segundo o modelo de
Brandler-Paracchini, os transtornos da motilidade ciliar primária prejudicam o
transporte no eixo látero-lateral de uma proteína chamada NODAL, a qual é um
importante fator regulador da lateralização hemisférica (vide Figura 1).
Figura 1 – Modelo de Brandler-Paracchini (2014) para a desregulação
do transporte látero-lateral da Nodal, uma proteína envolvida na lateralização
hemisférica cerebral. Segundo essa hipótese, alterações de genes reguladores da
motilidade ciliar estão implicados nas anomalias dalateralização hemisférica manual e da linguagem observadas
na dislexia do desenvolvimento
Transtornos da regulação genética das funções do cílio primário
estão implicados em algumas dezenas de doenças de vários tecidos. Inclusive
malformações cerebrais envolvendo o corpo caloso. Ao que tudo indica, a
dislexia do desenvolvimento vem se integrar a esse grupo das ciliopatias.
Essas descobertas têm um sabor de vingança do nerd. Desde a
década de 1930 neuropsicólogos como
Samuel Orton e Norman Geschwind (McManus & Bryden, 2016) chamavam a atenção
para os transtornos da lateralidade hemisférica, incluindo lateralidade manual,
na dislexia do desenvolvimento. Essas hipóteses acabaram saindo de moda por
vários motivos. Pela falta de um embasamento neurobiológico convincente mas
também pelo fato de que só se usavam medidas categoriais de lateralidade
manual. Novas medidas de lateralidade relativa indicam que as anomalias da
lateralidade manual são freqüente sim na dislexia (Paracchini et al., 2016).
A coisa está chegando a um nível de sofisticação
inacreditável. Os pesquisadores estão começando a fazer correlações
genotípico-fenotípicas mostrando que a regulação epigenética de alguns dos
genes implicados na dislexia, tais como como KIAA0319, são importantes para a aprendizagem
de tarefas associadas à lateralização hemisférica da linguagem (Schmitz et al.,
2018).
As pontas estão se fechando. A aprendizagem da leitura não é
geneticamente pré-programada, mas recicla um hardware neural selecionado
previamente para funções relacionadas à linguagem e visão (Dehaene & Cohen,
20017). Aprender a ler consiste em estabelecer conexões entre os sistemas da
linguagem e visão. Conexões essas que são o resultado de um árduo processo de
aprendizagem cultural. Se for confirmada uma desregulação genética nos
mecanismos de plasticidade neural dependente de atividade, isso explicaria as
dificuldades de aprendizagem da leitura enfrentadas pelos indivíduos com
dislexia.
É um privilégio poder viver para testemunhar o reencontro do
velho com o novo, da clínica com a tecnologia de ponta. É um privilégio
acompanhar há quase 40 anos o progresso da pesquisa sobre a neurobiológica da
dislexia. A sensação é de que os pesquisadores estão na bica descobrir alguma
coisa mais sensacional ainda.
Referências
Brandler WM
& Paracchini S. (2014). The genetic relationship between handedness and
neurodevelopmental disorders. Trends in Molecular Medicine, 20, 83-90.
Dehaene, S.
& Cohen, L. (2007). Cultural recycling of cortical maps. Neuron, 56,
384-398.
Galaburda,
A. M., LoTurco, J. Ramus, F., Fitch, R. H. & Rosen, G. D. (2006). From
genes to behavior in developmental dyslexia.
Kere, J.
(2014). The molecular genetics and neurobiology of developmental dyslexia as
model of a complex phenotype. Biochemical and Biophysical Research
Communications, 453, 236-243.
McManus, I.
C. & Bryden, M. P. (1991). Geschwind’s theory of cerebral lateralization:
developing a formal, causal model. Psychological Bulletin, 110, 237-253.
Mitchell,
K. J. (2011). Curiouser and curiouser: genetic disorders of cortical
specialization. Current Opinion in Genetics and Development, 21(3),
271-277.
Paracchini, S., Diaz, R. & Stein, J. (2016). Advances in dyslexia genetics - New
insights into the role of brain asymmetries. Advances in Genetics, 96, 53-97.
Schmitz, J, Kumsta, R, Mose,r D, Güntürkün, O,
Ocklenburg, S. (2018). KIAA0319
promoter DNA methylation predicts dichotic listening performance in
forced-attention conditions. Behavioral and Brain Research, 337, 1-7.