Ao longo do tempo, o comportamento muda por dois mecanismos: a evolução por seleção natural/sexual, que é mais lenta, e a evolução por seleção cultural, que é bem mais rápida e vem se acelerando. A cultura é um instinto, ou seja, uma estratégia evolutivamente estável. A possibilidade de criar e desenvolver uma dimensão cultural da ecologia, uma herança transmissível de uma geração para outra, é parte da natureza humana. Ela é uma estratégia evolutivamente estável no sentido de que confere vantagem adaptativa para os grupos com "genes culturais" no seu pool, genes esses que predispõem à emergência e manutenção da cultura e que são transmitidos de uma geração a outra.
A ensinagem é a estratégia evolutivamente estável que sustenta a cultura. Ou seja, a transmissão do legado cultural de uma geração para outra. Diferentemente de outros primatas, os humanos têm um instinto de imitar e ensinar. A ensinagem se desenvolve ao longo do ciclo vital da mesma forma que outras habilidades, tais como a linguagem oral. Um ingrediente importante da ensinagem é a teoria da mente. O ensinante precisa compreender que o aprendiz não dispõe de um conhecimento essencial, o qual precisa ser ensinado. Ao mesmo tempo, o ensinante precisa entender as restrições cognitivas que limitam a aprendizagem e o melhor modo de superá-las. A responsabilidade pelo processo de ensino-aprendizagem é do ensinante. Se o processo falha, a responsabilidade é do ensinante e não do aprendiz. Mas, como veremos mais adiante, o instinto tem limites. A partir de um determinado momento é complementado por uma tecnologia.
A relação entre ensinante e aprendiz é hierárquica. De um lado há alguém que sabe uma coisa, do outraouma pessoa que não sabe e precisa aprender. Isso não quer dizer que um aluno não possa ensinar a um professor. Ensinante/aprendiz e professor/aluno não são papéis que se associam biunivocamente de forma rígida. Os recortes entre os papéis de ensinante/aprendiz e professor/aluno são múltiplos e diferenciados no tempo e contextos sociais. Um dos critério que utilizo para aferir o meu sucesso como professor consiste, justamente, em passar a aprender com os meus ex-alunos. A partir de um certo momento, os bons alunos passam a saber mais que eu. E eu tenho um enorme prazer em aprender com eles. Tenho alunos a quem recorro, com o maior respeito e alegria, sempre que preciso aprender alguma coisa.
Mas a evolução cultural acrescentou uma camada adicional de complexidade ao comportamento humano. Ao longo dos milhares de anos, a evolução cultural se acelerou e, ao menos parcialmente, se descolou da evolução natural/sexual. A evolução cultural é avassaladora. Nós vivemos na era do conhecimento. O desempenho cognitivo é, cada vez mais, uma das principais pressões seletivas na evolução da espécie.
O fenômeno da neotenia é um dos sustentáculos da cultura. Em função do aumento do tamanho cerebral, o parto humano ocorre de forma relativamente prematura. O bebê humano nasce imaturo porque as últimas etapas do desenvolvimento cerebral, principalmente do córtex, ainda não aconteceram. O acabamento do desenvolvimento cerebral, representado pela organização citoarquitetônica cortical e sinaptogênese, ocorre sob a influência do ambiente cultural. A criança leva anos até amadurecer e adquirir os conhecimentos que lhe capacitam para a navegação social adulta. Ao longo dos anos, a convivência social e aprendizagem são forças poderosas na modelagem da estrutura anámoto-funciional do cérebro. Esse tempo só tem se espichado nos últimos anos, levando ao fenômeno da adolescência estendida. A pessoa só atinge os graus mais elevados de competência sócio-cognitiva após muitos anos de vida e de estudo. Muitas vezes, isso só acontece bem perto da terceira década de vida.
O descompasso entre a evolução cultural acelerada e a evolução por seleção natural/sexual mais retardada cria um hiato entre as demandas colocadas pelo meio e as possibilidades de resposta oferecidas pela natureza humana. Em sociedades menos tecnológicas e menos historicizadas, as intuições primárias quanto ao tempo, espaço, quantidade, causalidade, vida, self e sociabilidade permitem que o indivíduo se desenvolva quase de forma espontânea, ou ao menos sem muita interferência intencional por parte de outrem, até a maturidade sócio-cognitiva. Nas sociedades mais tecnológicas e mais historicizadas - no sentido de terem acumulado mais história e mais conhecimento - a intuição e o convívio social espontâneo não são suficientes para que o indivíduo adquira os conhecimentos que lhe serão exigidos.
Surge então a pedagogia. O simples instinto de ensinagem não é mais suficiente. Houve a necessidade de desenvolver uma tecnologia que assegurasse a transmissão do legado cultural de uma geração para outra. E que legado cultural é esse? Segundo o psicólogo evolucionista estadounidense David Geary, as habilidades cognitivas podem ser categorizadas em biologicamente primárias e secundárias.
As habilidades biologicamente primárias são aquelas cuja aprendizagem não depende de uma pedagogia. Ou seja, são habilidades adquiridas espontaneamente, através da intuição, prática e convívio social em uma determinada ecologia cultural. A linguagem oral é um dos principais exemplos de habilidades cognitivas primariamente biológicas. As crianças não são ensinadas a falar. A linguagem é adquirida espontaneamente e para isso basta conviver em uma comunidade de falantes de alguma língua.
As habilidades biologicamente secundárias são representadas por aquelas formas de conhecimento cuja aprendizagem depende de forma crucial da pedagogia. Um exemplo notório é a lectoescrita. Algumas crianças, as mais inteligentes, aprendem a ler de forma espontânea e cada vez mais cedo. A aprendizagem da lectoescrita para a maioria das crianças depende, entretanto, de intervenções instrucionais. Intervenções instrucionais que são tão mais necessárias quanto mais dificuldade a criança apresentar.
A aquisição de habilidades cognitivas secundária, tais como a lectoescrita ou aspectos mais formais da aritmética, é um processo complexo para o qual os indivíduos não são dotados de uma preparedness intuitiva ou de uma motivação primária. A aquisição de habilidades secundárias exige esforço e atenção, prática continuada e persistência, sendo muito sujeita a erro. A aprendizagem de habilidades cognitivas secundárias é intrinsecamente aversiva e pode ser muito frustrante devido ao erro. O desafio da pedagogia é desenvolver tecnologias que facilitiem o processo e que permitam ao indivíduo desenvolver uma motivação intrínseca para o estudo e aprendizagem. A motivação intrínseca para o estudo só se desenvolve a partir dos resultados. O indivíduo aprende que existe uma relação entre o esforço dispendido e os resultados, sendo os resultados recompensadores.
Assim sendo, a partir de um determinado ponto, as pressões seletivas impostas pela tecnologização e historicização progressivas da cultura, com o conseqüente acúmulo avassalador de conhecimento, superam em munto as possibilidades do equipamento cognitivo padrão da espécie. A pedagogia é justamente a tecnologia desenvolvida para responder a esse imperativo de transmitir de uma geração para outra as habilidades cognitivas biologicamente secundárias.
Essas considerações evolucionárias têm importantes conseqüências para a pedagogia. A pedagogia contemporânea enfatiza, de uma forma ou de outra, as diversas abordagem construtivistas para o ensino/aprendizagem. A idéia subjacente é que a criança não deve ser ensinada algo se tem condições de aprender por conta própria. O papel do professor deve se restringir a um mínimo de estruturar contextos apropriados nos quais o aprendiz possa intuir os conhecimentos almejados através da descoberta por experimentação com a ecologia física e social.
A principal limitação da abordagem construtivista é que nem todas as habilidades podem ser aprendidas por conta própria e nem todas as crianças têm condições de aprender por conta própria. A aprendizagem de habilidades cognitivas biologicamente secundárias e a aquisição de uma motivação intrínseca para o estudo, principalmente pelas crianças com mais dificuldades, dependem crucialmente da instruição formal, ou seja, da pedagogia.
Respondendo então à pergunta: A pedagogia é e não é um instinto. A pedagogia é um refinamento tecnológico de um instinto de ensinar, baseado na teoria da mente. A cultura se sustenta na capacidade de imitar/ensinar, propiciada pela neotenia, ou seja pela imaturidade relativa do cérebro ao nascer. A historicização da cultura e o acúmulo de conhecimento propiciaram o desenvolvimento de habilidades cognitivas biologicamente secundárias, que somente são aprendidas pela intervenção de uma tecnologia, a pedagogia. As crianças aprendem espontaneamente, pela descoberta e interação social, aquelas habilidades primárias que compõem o equipamente cognitivo padrão da espécie, tais como a linguagem. As habilidades secundárias, tais como a lectoescrita, exigem instrução para serem aprendidas pela maioria das crianças.
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